Senor, Señor, Senhor Silvio Santos | Uma suposição analítica do fundo do baú

O que víamos nas telas, o carismático e talentoso Silvio Santos, o maior comunicador da história do Brasil, era somente a ponta de um imenso iceberg.

Nos próximos dias muito será dito, escrito e lembrado a respeito do Silvio Santos. Menos, talvez, sobre o Senor Abravanel. Se o segundo reside na obscuridade da memória popular, o primeiro, oriundo do rádio, foi um dos fundadores da televisão brasileira como a conhecemos. Com um diferencial em relação aos seus contemporâneos: ele foi muitos em um só. Um tipo de síntese de Roquette-Pinto com Assis Chateaubriand, Barão de Mauá, Cid Moreira, Mazzaropi, Roberto Marinho, Barão de Itararé e Boni.

Um daqueles raros fenômenos do século XX – quando o universo privado ainda era valorizado e inegociável -, tal qual o Edson e o Pelé. Longe do diagnóstico de transtorno dissociativo de identidade, Senor cindiu-se conscientemente para libertar o seu gênio publicamente, o Silvio.

Na unidade de tamanha figura, o seu complexo novelo, que ajuda a amarrar o último século da vida sociocultural do Brasil, desponta em muitas linhas caóticas, pelas quais a história fará o favor de nos conduzir ao longo do tempo, no escrutínio da memória e do seu legado.

Tento contribuir nesse texto com uma análise cheia de conjecturas a partir da sua influência e de tudo o que assisti e li ao seu respeito.

Senor Abravanel

Exceção feita ao monoteísmo originado na Pérsia a partir do profeta Zaratustra, que teria vivido 2 mil anos antes de Cristo, judeus, cristãos e muçulmanos consideram o hebreu Abraão (ou Ibrahim), o patriarca original das suas religiões.

Na mitologia da cultura judaico-cristã, Abraão, nascido em Ur, dos Caldeus, no sul da Mesopotâmia, descendente da nona geração de Sem (filho de Noé), teria recebido uma mensagem divina ordenando que ele levasse sua família à terra prometida, de fartura em meio à aridez, Canaã.

A divisão territorial das 12 tribos de Israel, segundo a mitologia judaico-cristã. Clique na imagem para ampliar.

Segundo essa cosmogonia, Abraão foi pai de Isaque, que, por sua vez, foi pai de Jacó, também chamado de Israel. Dos filhos de Jacó, formaram-se os clãs que dividiram Canaã entre 12 tribos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Naftali, Gade, Aser, Issacar, Zebulom e Benjamim. Efraim e Manassés, filhos de José e netos de Jacó, repartiram a mesma tribo. Segundo a Torá e a Bíblia, o clã de Levi recebeu a missão do sacerdócio e, por isso, não recebeu um território próprio, misturando-se com as demais tribos.

Encerrada a mitologia, da qual não há documento histórico, a história conta que Yehuda ben Yitzhak Abravanel (יהודה בן יצחק אברבנאל / Isaac “filho de Judá” Abravanel) viveu entre os séculos XV e XVI, período das grandes navegações. Foi um importante rabino, intelectual e financiador do reinado de Afonso V, rei de Portugal e Algarves. Acusado de conspiração, fugiu para Castela, onde Isabel I, de Castela, e Ferdinando II, de Aragão, haviam se casado há poucos anos. Dom Isaac, então, passou a financiar os monarcas, que almejavam conquistar o califado de Garnatha Alyejud (reino de Granada), já sob o domínio dos nazerís desde Ibn Nasr (Muhammad I), na região de Al Andalus (Andaluzia).

Com o crescente antissemitismo contra judeus e muçulmanos na Europa ocidental, a partir da imposição da conversão de todos os súditos de Castela ao catolicismo em 1492, aos judeus sefarditas restava a perseguição ou a expulsão. Dom Isaac fugiu uma vez mais, com a pretensão de levar sua família para o leste e viver sob o Império Otomano. Parou em Nápoles, onde tornou-se consultor financeiro de Ferdinando I, de Aragão, rei de Nápoles. Morreu em 1530, provavelmente no mesmo lugar.

Algumas gerações depois, seus descendentes chegaram, finalmente, ao destino que ele buscava originalmente, na região da Salonica (سلانيك, em turco otomano e Θεσσαλονίκη, em grego), atualmente, Tessalônica, Grécia. Refúgio dos judeus sefarditas, quando, expulsos da Península Ibérica, se juntaram aos judeus romaniotas que viviam naquela região desde o início da era cristã.

Senor Abravanel, o Silvio Santos, bisneto de Señor Abraham Abravanel (1800 – sem registro) e neto do homônimo Señor Abraham Abravanel (1850 – 1933), foi o primogênito dos seis filhos dos imigrantes otomanos Alberto Abravanel (1897 – 1976) e Rebecca Caro (1907 – 1989), que chegaram ao Brasil em 1924.

Sua mãe nasceu na região de Izmir (Esmirna), atualmente, Turquia. Seus irmãos foram nomeados Beatriz, Perla, Sara, Leon e Henrique.

Silvio Santos

Senor Abravanel nasceu em 1930, pouco mais de um século após a independência do Brasil, na travessa Bem-Te-Vi, da Vila Rui Barbosa, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, capital federal.

Judeu sefardista, diferentemente dos seus antepassados no Império Otomano, foi nomeado sem o acento no “n”, que, se houvesse, facilmente levaria à estranha significação original do seu nobre nome na língua portuguesa, “Senhor” Abravanel. Algo que poderia demandar indesejáveis explicações naquele período extremamente conturbado da Primeira República. A homenagem e o orgulho familiar estavam postos no nome do primogênito; todavia, balizado também pela trajetória da família na longa história de um povo perseguido.

Senor era chamado de Silvio por sua mãe. Talvez, tentando preservar algo da sonoridade original e, ao mesmo tempo, preparar propositalmente o que viria a ser o nome público do filho, em função dos riscos históricos sofridos por todos os judeus mundo afora, sobretudo naquele entreguerras.

Camelô aos 14 anos, começou vendendo plásticos para proteger títulos de eleitor, no final da ditadura Vargas e às vésperas da eleição do general Eurico Gaspar Dutra como presidente da república, em 1945. Ano do término da Segunda Guerra Mundial, da derrota, até então, do nazifascismo e da primeira eleição presidencial na qual as mulheres brasileiras puderam votar. Elas, que tiveram o acesso exclusivo, por décadas, aos auditórios dos seus programas.

Radialista, paraquedista do exército, vendedor, empresário, banqueiro, magnata da comunicação, apresentador, candidato à presidência da república. O que víamos nas telas, o carismático e talentoso Silvio Santos, o maior comunicador da história do Brasil, era somente a ponta de um imenso iceberg.

Senor Abravanel foi, antes de mais nada, um negociante excepcional. Arrisco escrever que naquele único Eu, as capacidades de observação e comunicação, estruturadas cognitivamente a partir da sua subjetivação familiar no centro do poder de um Brasil dos anos 1940 – 50, pavimentaram uma trajetória na qual reconhecer o seu próprio desejo nos outros, para ele, passou a ser muito mais fácil do que revelar os seus próprios, mais íntimos.

Apesar de se expor mais, conforme se aproximava dos 90 anos de idade, sobretudo nas redes virtuais das suas seis filhas, ele deu raríssimas entrevistas ao longo da vida.

Por isso, suponho que tal clivagem – do Senor, o Silvio – expressou uma demanda inconsciente, elaborada enquanto estratégia de uma vida particular protegida e blindada, contraposta por uma vida pública arrojada, voraz e de extrema exposição, na qual assumir determinados riscos, que para quase todos seriam demais, não significaria a possibilidade de uma frustração precipitada pelo medo, senão, somente, a possibilidade de um ganho.

Senhor Silvo Santos, o patrão

Em 1971, no período da renovação do seu contrato com a TV Globo, Silvio comprou 50% da TV Record. Roberto Marinho, então, condicionou a sua renovação à proibição da compra de concorrentes. Silvio Santos aceitou, desfez o negócio e renovou. Entretanto, ainda sob contrato, comprou parte da Record usando o nome de um amigo, TV da qual ele foi dono até 1989, quando ela foi comprada pelo bispo Edir Macedo.

Em 1975, Silvio ganhou, do ditador Geisel, a concessão para criar a TVS – TV Studios Silvio Santos. Em 1981, recebeu de outro ditador, o Figueiredo, a concessão de uma rede composta pelas extintas TV Tupi (São Paulo), a TV Marajoara (Belém do Pará), a TV Piratini (Porto Alegre) e a TV Continental (Rio de Janeiro). Assim, surgiu o Sistema Brasileiro de Televisões – SBT.

Negociações que demandaram quais promessas? Não é difícil presumir.

No início da “década perdida”, a pobreza avançava num regime ditatorial em frangalhos, atingindo 52,6 milhões de pessoas – 43% da população, em 1980. Enquanto isso, Silvio começava a eternizar o seu tema de abertura na alma de um país:

Agora é hora, de alegria / Vamos sorrir e cantar / Da vida não se leva nada / Vamos sorrir e cantar

Negociando o entretenimento e vendendo alegria em um país miserável, Silvio Santos criou um circo popular com exímia destreza onde faltava o pão. Estruturou o seu projeto de poder, ergueu o seu próprio império, tornou-se bilionário enquanto, segundo relatos, cultivava hábitos modestos em suas mansões. Extremamente influente nos bastidores do poder, sempre se manteve próximo à situação na política nacional, tal qual o seu ancestral Dom Isaac. Com uma diferença chave que, entendo, foi a sua primeira condição: ele e a sua família jamais precisaram fugir.

Em 1988, em uma das suas raríssimas entrevistas, à Folha de São Paulo, se descreveu como um “concessionário, um office boy de luxo do governo”. Completou: “Faço aquilo que posso para ajudar o país e respeito o presidente, qualquer que seja o regime”.

Em 1989, Silvio teve a sua candidatura à presidência do Brasil impedida a seis dias do 1º turno, por ter exercido sua concessão pública a menos de 6 meses do pleito. Além disso, o seu partido de aluguel, extinto após a eleição, não fez o número mínimo de convenções necessárias à candidatura. O obscuro PMB (Partido Municipalista Brasileiro) foi usado pelo PFL (atual DEM – Democratas). O herdeiro do ARENA – extinto partido da, então recém derrotada, ditadura militar, que concedeu as concessões ao Silvio e ao Roberto Marinho – não conseguia alavancar uma candidatura própria e “alugou” o PMB para lançar Silvio como candidato à presidência do país. Ele “roubava” votos principalmente de Fernando Collor, o então candidato da Rede Globo. Nos cenários da pesquisa Gallup às vésperas da votação, sem Silvio, Collor aparecia na liderança, com 27,5% das intenções de voto; com Silvio, Collor caía para o segundo lugar, com 18,6%, enquanto Silvio aparecia em primeiro, com 29%.

Silvio Santos jamais desafiou o poder e o status quo, como fez o departamento artístico da Rede Globo (o jornalismo, nunca), em muitos momentos da sua história. Antes, ele foi um defensor assíduo do poder constituído. O SBT nunca foi vanguardista, mas um espaço do caos e do improviso com os elementos do conservadorismo. Numa ditadura enfraquecida, caminhando para a democracia, “o patrão”, como gostava de ser chamado, impingiu um tom controlador e anárquico, reflexo do embate entre o Senor e o Silvio. Um tom divertido e popular que o integralizou em cada canto da sua obra máxima, o SBT. Como um déspota esclarecido no seu próprio reino, um patriarca ameaçador, mas querido por sua própria tribo, que marcou a vida de todos nós e desenhou uma estética indelével na memória coletiva nacional.

Carpe diem

Senor Abravanel deixou de fazer os seus programas sem alarde, em 2022. Morreu nesse shabbat – período entre o pôr-do-sol das sextas-feiras e o anoitecer dos sábados – de 17 de agosto de 2024, às 4h30. Poucos minutos antes da metade do período aproximado de 24h de descanso sagrado àqueles que professam a fé judaica.

Horas antes de um horrível Fluminense 0 x 0 Corinthians. O tricolor carioca, do Senor. O alvinegro paulista, do Silvio. Tá tudo bem. No final das contas, me parece mesmo é que eles empataram, só que com muito mais ação do que o jogo de futebol dessa noite. Talvez, num 4 a 4.

Senor Abravanel expressou à família o seu desejo íntimo de que os ritos envolvendo a sua despedida fossem discretos, sem qualquer cerimônia pública, câmeras, palcos ou holofotes. Afinal, da vida não se leva nada: fama, dinheiro, propriedades, concessões, poder. Nem mesmo a imortalidade do Silvio Santos.

Por isso, vamos todos comer, beber, sorrir e cantar.

Shabbat Shalom.