A psicanálise é uma ciência

Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.

No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.

Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:

– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;

– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;

– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.

Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.

Portrait of Sigmund Freud(Freud, Sigmund.) Sternberger, Marcel Edité par London, 1938, printed 2017, 1938

Portrait of Sigmund Freud. Sternberger, Marcel. Edité par London, 1938, printed 2017.

Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.

Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.

Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.

A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.

Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.

Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.

Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.

Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência

No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.

Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.

Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.

Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.

Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.

A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.

Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.

Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.

Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.

As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência

Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.

Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.

O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.

Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.

Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.

Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.

Por fim, a História

Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.

Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.

Referências:

ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.

DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.

MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.

ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.

PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.

ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.

Resenha | Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris

No seminal ensaio A Eficácia Simbólica, parte da obra Antropologia Estrutural (1958), Claude Lévi-Strauss traça um paralelo profundo entre o método freudiano e as práticas xamânicas. Ele argumenta que tanto o psicanalista quanto o xamã atuam como intermediários que utilizam símbolos e narrativas para reorganizar a experiência subjetiva do indivíduo, promovendo a cura. Lévi-Strauss revela que a eficácia de ambos os métodos reside no poder do símbolo em alterar a percepção da realidade interna, evidenciando que as estruturas mentais humanas compartilham semelhanças fundamentais, independentemente do contexto cultural.

Em sua obra Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris nos presenteia com uma reflexão profunda e ao mesmo tempo acessível sobre os labirintos do ofício terapêutico. Endereçada não só aos aspirantes, mas também aos curiosos e profissionais que buscam um olhar crítico sobre a sua prática, o livro se desenrola como uma coleção de cartas que, tal qual confidências entre amigos, nos envolvem em um diálogo íntimo e provocativo.

Afastando-se da tese de Lévi-Strauss, desde as primeiras páginas, Calligaris se empenha em desconstruir a figura quase mítica do terapeuta como um “curador mágico” dos males da alma. Em vez disso, ele nos convida a enxergar o terapeuta como alguém que caminha ao lado do paciente, sem pretensões de superioridade ou infalibilidade. O autor propõe uma postura mais humilde e autocrítica, onde o sucesso terapêutico não se mede pelo aplauso ou reconhecimento, mas pela capacidade de ser o “remédio” que, cumprida sua função, pode ser esquecido sem pesar. Essa ideia de distanciamento ideal entre terapeuta e paciente ecoa a ética psicanalítica, mas também desnuda as armadilhas emocionais e narcísicas que espreitam na profissão.

Um dos grandes méritos da obra é a crítica afiada ao culto à personalidade que permeia o mundo da psicanálise. Calligaris não poupa ironias ao descrever os “chefes de escola”, profissionais que, sedentos por admiração, acabam por transformar o vínculo terapêutico em uma teia de dependências. Em vez de libertar, perpetuam “curas” eternas, aprisionando “discípulos” e pacientes em uma forma de submissão psíquica. Suas palavras são como um espelho que reflete não só as vaidades alheias, mas também nos convida a examinar as nossas próprias, psicanalistas ou não.

O texto ilumina com precisão cirúrgica o perigo das idealizações mútuas. O amor de transferência, esse fenômeno tão fundamental quanto delicado no processo de cura, é analisado com rigor. Calligaris nos alerta sobre a linha tênue que separa a utilização ética desse amor para o crescimento do paciente e a sedução pelo papel idealizado que pode levar o terapeuta a um abismo ético. É um chamado à consciência dos dilemas profundos que habitam a prática clínica.

Outro ponto crucial é a visão de Calligaris sobre a formação do terapeuta. Ele desafia a ideia de que a academia seja o único caminho para a prática terapêutica, enfatizando a importância vital da experiência da análise pessoal e da prática clínica constante. Para ele, a formação é um processo infinito, uma jornada de autoanálise e questionamento contínuo das próprias motivações e métodos. Diplomas e títulos não encerram essa caminhada; são apenas marcos em um percurso muito mais extenso e profundo, que exige do psicanalista implicar-se continuamente em sua prática, em seus casos, ao ponto de revolucionar constantemente o seu próprio Eu no mundo, muito além de técnicas e métodos adotados em seus casos clínicos.

A crítica ao conservadorismo de certas instituições de formação ressoa forte nesse livro. Calligaris denuncia os institutos que, em nome da normatividade social e sexual, abafam a autenticidade e a singularidade dos futuros terapeutas. Ele sugere que uma “vida colorida” e experiências fora dos trilhos convencionais não só enriquecem a prática clínica, mas são essenciais para que o terapeuta possa realmente acolher a vastidão da experiência humana sem julgamento. É um apelo à abertura, à empatia sem preconceitos, à compreensão verdadeira do outro em sua totalidade.

Entretanto, a obra não está isenta de críticas. A informalidade com que alguns temas, por vezes fundamentais e estruturais à psicanálise – e, por isso, essenciais aos jovens terapeutas -, são tratados, pode dar a impressão de que esses são menores. Não são. O tom confessional e íntimo enquanto proposta, embora cativante, talvez deixe a desejar nos termos de uma necessária densidade teórica em certas passagens. Psicanalistas ou estudantes mais exigentes podem sentir falta de uma análise mais aprofundada de certos aspectos abordados.

Portanto, que reste nítido: esse livro, assim como os de Freud, Lacan ou quem quer que seja – precisamente no sentido daquilo que é defendido na própria obra – não deve ser lido como se fosse um manual. Afinal, somente Contardo Calligaris foi Contardo Calligaris.

Exatamente por isso, Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura essencial. Não apenas para aqueles que desejam trilhar o caminho da psicoterapia, mas também para os que, já inseridos no campo, buscam uma reflexão sincera sobre sua prática através do olhar de um psicanalista excepcional. Com sagacidade e senso crítico, Calligaris nos oferece um convite à introspecção profissional, à revisão constante dos papéis que terapeuta e paciente desempenham nessa dança delicada. O livro se revela como uma bússola ética e prática orientando o jovem terapeuta que, longe de almejar a perfeição, está disposto a abraçar as suas próprias fragilidades e limites.

Com uma linguagem acessível e sofisticada, Calligaris consegue o que poucos autores alcançam: fazer com que o leitor reflita sobre os dilemas mais profundos da prática terapêutica enquanto se deleita com narrativas pessoais e incisivas. Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura instigante, um convite a pensar a psicanálise e a psicoterapia além das fórmulas convencionais, mergulhando nas águas turvas e fascinantes da condição humana.

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Nascido em Milão, Itália, em 1948, Contardo Calligaris foi um psicanalista, escritor e dramaturgo que deixou uma importante marca no cenário cultural brasileiro.

Formou-se em epistemologia genética e letras na Universidade de Genebra, onde foi aluno, entre outros, do psicólogo suíço Jean Piaget. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, em Marseille, aprofundou os seus conhecimentos em psicanálise em Paris, onde teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. Foi professor de Estudos Culturais na New School, de Nova York, e professor convidado de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Essa formação multidisciplinar e internacional lhe conferiu uma perspectiva única, permitindo-lhe transitar com fluidez entre a psicanálise, a literatura e a crítica social.

Radicado no Brasil desde os anos 1980, tornou-se uma voz influente ao escrever colunas semanais para a Folha de S.Paulo, onde abordava temas contemporâneos com sensibilidade e acuidade intelectual. Publicou diversos livros, incluindo romances e uma peça teatral. Ele também criou a série de televisão intitulada Psi, exibida na HBO.

Calligaris faleceu na cidade de São Paulo, em 30 de março de 2021, aos 72 anos.

O alerta de Geoffrey Hinton – o “poderoso chefão da IA” – ao receber o Nobel de 2024 e as ciências humanas

Hoje, dia 08 de outubro de 2024, os físicos Geoffrey Hinton e John Hopfield receberam o Prêmio Nobel de Física de 2024. Eles foram homenageados por suas “descobertas fundamentais e invenções que permitiram o aprendizado de máquina por meio de redes neurais artificiais”.

A recente premiação de Geoffrey Hinton, professor da Universidade de Toronto, no Canadá, não apenas consagra o seu pioneirismo tecnológico, mas também expande uma janela de reflexão crítica que ressoa com algumas das mais profundas questões filosóficas e psicanalíticas da modernidade. Hinton já expressou em diversas oportunidades, de maneira enfática, os seus temores sobre o destino da humanidade diante do progresso descontrolado da inteligência artificial.

O discurso de Hinton, proferido logo após o anúncio de sua premiação, ecoa as preocupações que ele vem manifestando há tempos: a IA, especialmente em sua forma generativa, pode ultrapassar o controle humano, acarretando riscos imprevisíveis à humanidade.

Sua fala se entrelaça com a ideia heideggeriana de Gestell, apresentada em A Questão da Técnica (1954), onde Martin Heidegger argumenta que a técnica moderna nos captura em um modo de revelar o mundo que instrumentaliza a realidade e transforma tudo, incluindo o ser humano, em meros recursos. A IA, enquanto máquina de guerra contemporânea, com seu potencial para a criação de armas autônomas, reforça essa dimensão instrumentalizadora e alienante da tecnologia.

Tema que nos leva, ainda, ao contemporâneo e fundamental Aílton Krenak, quando, em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), nos alerta para a desconexão entre a humanidade e o próprio planeta em que vivemos. Uma perigosa alienação que também pode ser vista na relação entre o ser humano e as novas tecnologia, como propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Na data de hoje, Hinton destacou, em sua fala, que as máquinas baseadas em redes neurais estão começando a superar a capacidade intelectual humana em muitos aspectos. Essa constatação quando interpretada à luz do conceito de pulsão de morte (Todestrieb), introduzido por Freud em Além do Princípio do Prazer (1920), traz contornos sombrios ao futuro, se não agirmos agora. Se a pulsão de morte, para Freud, é o impulso do ser humano em direção à autodestruição, a IA, conforme descrita por Hinton, pode facilmente se tornar o meio através do qual a humanidade canaliza sua pulsão de aniquilação em larga escala, ao delegar a essas máquinas, cada vez mais presentes em nossas vidas, poderes que transcendem a capacidade de controle humano.

Guardo muitas reservas quanto à própria nomeação “inteligência artificial”, debate que reservo para um futuro artigo. Entretanto, assumindo tal “inteligência” como um paralelo ao psiquismo humano, uma conclusão tão imediata quanto simples nos salta aos olhos, e não é de hoje. Daquilo que muitos, inclusive Hinton, conhecido como “o poderoso chefão da IA”,  sugerem, podemos depreender que, ao contrário da mente humana, que é regulada pela interação entre o Eu e o Supereu, a IA opera sem as barreiras psíquicas, o que pode permitir que ela adote comportamentos completamente inesperados e saia do controle. Como em um Eu estilhaçado pela psicose, tomado de assalto pelo Id, onde há uma lógica interna muito bem amarrada àquela “inteligência”/psiquismo, enquanto que, para o Outro, de fora, não há nada, senão uma profunda desorganização fantasiosa e caótica.

Além disso, a crítica de Hinton sobre o uso militar da IA, como “robôs soldados”, levanta questões sobre a ética no desenvolvimento da tecnologia, tema abordado por Hannah Arendt em A Condição Humana (1958). Nesse texto, Arendt, aluna de Heidegger, discute o perigo da tecnicização da ação humana, quando o uso das máquinas para o domínio do Outro se torna uma extensão da violência política. Hinton, que rejeitou o financiamento do Pentágono nos anos 1980, encarnou esse dilema que Arendt identificou: a tecnologia, quando utilizada sem uma reflexão ética, pode se tornar um agente da tirania e da desumanização.

No entanto, há um aspecto ainda mais profundo em jogo aqui: a própria capacidade da IA de criar e manipular a linguagem. Algo que Hinton e muitos vemos como uma potencial ameaça. Os seres humanos, de criadores da IA, paulatinamente, já estamos sendo convertidos em criaturas formadas e “informadas” pela IA desregulada. O psicanalista Jacques Lacan, em seu Seminário XI (1964), explora a centralidade da linguagem no processo de estruturação do sujeito. Para Lacan, o sujeito é “falado” pelo Outro e o inconsciente é estruturado enquanto linguagem. No entanto, se sistemas de IA podem produzir e manipular a linguagem sem a dimensão do inconsciente humano e sem as barreiras psíquicas, o que restaria do sujeito humano falado pelo grande Outro-IA?

O risco é que a inteligência artificial, se não for fortemente regulada, suplante definitivamente o sujeito enquanto criador da linguagem, destruindo o espaço da subjetividade, expandindo os efeitos da sua verve “psicótica” à própria espécie humana. Não faltam exemplos recentes de como grupos organizados têm sido radicalizados facilmente nas dinâmicas das redes sociais virtuais, reproduzindo discursos e práticas delirantes, violentas e destrutivas.

Por fim, ao falar sobre o possível impacto da IA no mercado de trabalho e a inundação de informações falsas, Hinton nos coloca diante de uma nova forma de mal-estar, semelhante à crise cultural descrita por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930). A tecnologia, ao invés de nos libertar, pode se tornar um fator determinante de opressão psíquica e social, dissolvendo a distinção entre o real e o falso e corroendo as bases da verdade factual que sustentam as interações sociais. Assim como Freud via o avanço da civilização como fonte de novas formas de sofrimento, podemos afirmar que Hinton soma-se a tantos que veem a IA como um catalisador para novos tipos de desorientação e alienação humana.

O histórico discurso de Hinton não é apenas um alerta técnico do principal criador, estudioso da IA do mundo e prêmio Nobel, mas um profundo chamado à reflexão sobre a natureza e os limites da nossa própria humanidade. Ao transcendermos as fronteiras da ciência de laboratório e entrarmos no terreno da ética, da filosofia, da sociologia, da política e da psicanálise, entendemos que Hinton nos convida a uma introspecção sobre os destinos possíveis que aguardam uma civilização que, como Freud já advertia, pode estar criando suas próprias formas de destruição. Mais, sua fala é um chamado à ação pela conscientização massiva da população acerca dos riscos envolvidos no desenvolvimento das novas tecnologias, bem como à organização e pressão popular para que elas sejam fortemente reguladas pelos Estados e por organismos internacionais que não sucumbam aos poderosos lobbies do setor.