Resenha | Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris

No seminal ensaio A Eficácia Simbólica, parte da obra Antropologia Estrutural (1958), Claude Lévi-Strauss traça um paralelo profundo entre o método freudiano e as práticas xamânicas. Ele argumenta que tanto o psicanalista quanto o xamã atuam como intermediários que utilizam símbolos e narrativas para reorganizar a experiência subjetiva do indivíduo, promovendo a cura. Lévi-Strauss revela que a eficácia de ambos os métodos reside no poder do símbolo em alterar a percepção da realidade interna, evidenciando que as estruturas mentais humanas compartilham semelhanças fundamentais, independentemente do contexto cultural.

Em sua obra Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris nos presenteia com uma reflexão profunda e ao mesmo tempo acessível sobre os labirintos do ofício terapêutico. Endereçada não só aos aspirantes, mas também aos curiosos e profissionais que buscam um olhar crítico sobre a sua prática, o livro se desenrola como uma coleção de cartas que, tal qual confidências entre amigos, nos envolvem em um diálogo íntimo e provocativo.

Afastando-se da tese de Lévi-Strauss, desde as primeiras páginas, Calligaris se empenha em desconstruir a figura quase mítica do terapeuta como um “curador mágico” dos males da alma. Em vez disso, ele nos convida a enxergar o terapeuta como alguém que caminha ao lado do paciente, sem pretensões de superioridade ou infalibilidade. O autor propõe uma postura mais humilde e autocrítica, onde o sucesso terapêutico não se mede pelo aplauso ou reconhecimento, mas pela capacidade de ser o “remédio” que, cumprida sua função, pode ser esquecido sem pesar. Essa ideia de distanciamento ideal entre terapeuta e paciente ecoa a ética psicanalítica, mas também desnuda as armadilhas emocionais e narcísicas que espreitam na profissão.

Um dos grandes méritos da obra é a crítica afiada ao culto à personalidade que permeia o mundo da psicanálise. Calligaris não poupa ironias ao descrever os “chefes de escola”, profissionais que, sedentos por admiração, acabam por transformar o vínculo terapêutico em uma teia de dependências. Em vez de libertar, perpetuam “curas” eternas, aprisionando “discípulos” e pacientes em uma forma de submissão psíquica. Suas palavras são como um espelho que reflete não só as vaidades alheias, mas também nos convida a examinar as nossas próprias, psicanalistas ou não.

O texto ilumina com precisão cirúrgica o perigo das idealizações mútuas. O amor de transferência, esse fenômeno tão fundamental quanto delicado no processo de cura, é analisado com rigor. Calligaris nos alerta sobre a linha tênue que separa a utilização ética desse amor para o crescimento do paciente e a sedução pelo papel idealizado que pode levar o terapeuta a um abismo ético. É um chamado à consciência dos dilemas profundos que habitam a prática clínica.

Outro ponto crucial é a visão de Calligaris sobre a formação do terapeuta. Ele desafia a ideia de que a academia seja o único caminho para a prática terapêutica, enfatizando a importância vital da experiência da análise pessoal e da prática clínica constante. Para ele, a formação é um processo infinito, uma jornada de autoanálise e questionamento contínuo das próprias motivações e métodos. Diplomas e títulos não encerram essa caminhada; são apenas marcos em um percurso muito mais extenso e profundo, que exige do psicanalista implicar-se continuamente em sua prática, em seus casos, ao ponto de revolucionar constantemente o seu próprio Eu no mundo, muito além de técnicas e métodos adotados em seus casos clínicos.

A crítica ao conservadorismo de certas instituições de formação ressoa forte nesse livro. Calligaris denuncia os institutos que, em nome da normatividade social e sexual, abafam a autenticidade e a singularidade dos futuros terapeutas. Ele sugere que uma “vida colorida” e experiências fora dos trilhos convencionais não só enriquecem a prática clínica, mas são essenciais para que o terapeuta possa realmente acolher a vastidão da experiência humana sem julgamento. É um apelo à abertura, à empatia sem preconceitos, à compreensão verdadeira do outro em sua totalidade.

Entretanto, a obra não está isenta de críticas. A informalidade com que alguns temas, por vezes fundamentais e estruturais à psicanálise – e, por isso, essenciais aos jovens terapeutas -, são tratados, pode dar a impressão de que esses são menores. Não são. O tom confessional e íntimo enquanto proposta, embora cativante, talvez deixe a desejar nos termos de uma necessária densidade teórica em certas passagens. Psicanalistas ou estudantes mais exigentes podem sentir falta de uma análise mais aprofundada de certos aspectos abordados.

Portanto, que reste nítido: esse livro, assim como os de Freud, Lacan ou quem quer que seja – precisamente no sentido daquilo que é defendido na própria obra – não deve ser lido como se fosse um manual. Afinal, somente Contardo Calligaris foi Contardo Calligaris.

Exatamente por isso, Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura essencial. Não apenas para aqueles que desejam trilhar o caminho da psicoterapia, mas também para os que, já inseridos no campo, buscam uma reflexão sincera sobre sua prática através do olhar de um psicanalista excepcional. Com sagacidade e senso crítico, Calligaris nos oferece um convite à introspecção profissional, à revisão constante dos papéis que terapeuta e paciente desempenham nessa dança delicada. O livro se revela como uma bússola ética e prática orientando o jovem terapeuta que, longe de almejar a perfeição, está disposto a abraçar as suas próprias fragilidades e limites.

Com uma linguagem acessível e sofisticada, Calligaris consegue o que poucos autores alcançam: fazer com que o leitor reflita sobre os dilemas mais profundos da prática terapêutica enquanto se deleita com narrativas pessoais e incisivas. Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura instigante, um convite a pensar a psicanálise e a psicoterapia além das fórmulas convencionais, mergulhando nas águas turvas e fascinantes da condição humana.

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Nascido em Milão, Itália, em 1948, Contardo Calligaris foi um psicanalista, escritor e dramaturgo que deixou uma importante marca no cenário cultural brasileiro.

Formou-se em epistemologia genética e letras na Universidade de Genebra, onde foi aluno, entre outros, do psicólogo suíço Jean Piaget. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, em Marseille, aprofundou os seus conhecimentos em psicanálise em Paris, onde teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. Foi professor de Estudos Culturais na New School, de Nova York, e professor convidado de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Essa formação multidisciplinar e internacional lhe conferiu uma perspectiva única, permitindo-lhe transitar com fluidez entre a psicanálise, a literatura e a crítica social.

Radicado no Brasil desde os anos 1980, tornou-se uma voz influente ao escrever colunas semanais para a Folha de S.Paulo, onde abordava temas contemporâneos com sensibilidade e acuidade intelectual. Publicou diversos livros, incluindo romances e uma peça teatral. Ele também criou a série de televisão intitulada Psi, exibida na HBO.

Calligaris faleceu na cidade de São Paulo, em 30 de março de 2021, aos 72 anos.

O alerta de Geoffrey Hinton – o “poderoso chefão da IA” – ao receber o Nobel de 2024 e as ciências humanas

Hoje, dia 08 de outubro de 2024, os físicos Geoffrey Hinton e John Hopfield receberam o Prêmio Nobel de Física de 2024. Eles foram homenageados por suas “descobertas fundamentais e invenções que permitiram o aprendizado de máquina por meio de redes neurais artificiais”.

A recente premiação de Geoffrey Hinton, professor da Universidade de Toronto, no Canadá, não apenas consagra o seu pioneirismo tecnológico, mas também expande uma janela de reflexão crítica que ressoa com algumas das mais profundas questões filosóficas e psicanalíticas da modernidade. Hinton já expressou em diversas oportunidades, de maneira enfática, os seus temores sobre o destino da humanidade diante do progresso descontrolado da inteligência artificial.

O discurso de Hinton, proferido logo após o anúncio de sua premiação, ecoa as preocupações que ele vem manifestando há tempos: a IA, especialmente em sua forma generativa, pode ultrapassar o controle humano, acarretando riscos imprevisíveis à humanidade.

Sua fala se entrelaça com a ideia heideggeriana de Gestell, apresentada em A Questão da Técnica (1954), onde Martin Heidegger argumenta que a técnica moderna nos captura em um modo de revelar o mundo que instrumentaliza a realidade e transforma tudo, incluindo o ser humano, em meros recursos. A IA, enquanto máquina de guerra contemporânea, com seu potencial para a criação de armas autônomas, reforça essa dimensão instrumentalizadora e alienante da tecnologia.

Tema que nos leva, ainda, ao contemporâneo e fundamental Aílton Krenak, quando, em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), nos alerta para a desconexão entre a humanidade e o próprio planeta em que vivemos. Uma perigosa alienação que também pode ser vista na relação entre o ser humano e as novas tecnologia, como propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Na data de hoje, Hinton destacou, em sua fala, que as máquinas baseadas em redes neurais estão começando a superar a capacidade intelectual humana em muitos aspectos. Essa constatação quando interpretada à luz do conceito de pulsão de morte (Todestrieb), introduzido por Freud em Além do Princípio do Prazer (1920), traz contornos sombrios ao futuro, se não agirmos agora. Se a pulsão de morte, para Freud, é o impulso do ser humano em direção à autodestruição, a IA, conforme descrita por Hinton, pode facilmente se tornar o meio através do qual a humanidade canaliza sua pulsão de aniquilação em larga escala, ao delegar a essas máquinas, cada vez mais presentes em nossas vidas, poderes que transcendem a capacidade de controle humano.

Guardo muitas reservas quanto à própria nomeação “inteligência artificial”, debate que reservo para um futuro artigo. Entretanto, assumindo tal “inteligência” como um paralelo ao psiquismo humano, uma conclusão tão imediata quanto simples nos salta aos olhos, e não é de hoje. Daquilo que muitos, inclusive Hinton, conhecido como “o poderoso chefão da IA”,  sugerem, podemos depreender que, ao contrário da mente humana, que é regulada pela interação entre o Eu e o Supereu, a IA opera sem as barreiras psíquicas, o que pode permitir que ela adote comportamentos completamente inesperados e saia do controle. Como em um Eu estilhaçado pela psicose, tomado de assalto pelo Id, onde há uma lógica interna muito bem amarrada àquela “inteligência”/psiquismo, enquanto que, para o Outro, de fora, não há nada, senão uma profunda desorganização fantasiosa e caótica.

Além disso, a crítica de Hinton sobre o uso militar da IA, como “robôs soldados”, levanta questões sobre a ética no desenvolvimento da tecnologia, tema abordado por Hannah Arendt em A Condição Humana (1958). Nesse texto, Arendt, aluna de Heidegger, discute o perigo da tecnicização da ação humana, quando o uso das máquinas para o domínio do Outro se torna uma extensão da violência política. Hinton, que rejeitou o financiamento do Pentágono nos anos 1980, encarnou esse dilema que Arendt identificou: a tecnologia, quando utilizada sem uma reflexão ética, pode se tornar um agente da tirania e da desumanização.

No entanto, há um aspecto ainda mais profundo em jogo aqui: a própria capacidade da IA de criar e manipular a linguagem. Algo que Hinton e muitos vemos como uma potencial ameaça. Os seres humanos, de criadores da IA, paulatinamente, já estamos sendo convertidos em criaturas formadas e “informadas” pela IA desregulada. O psicanalista Jacques Lacan, em seu Seminário XI (1964), explora a centralidade da linguagem no processo de estruturação do sujeito. Para Lacan, o sujeito é “falado” pelo Outro e o inconsciente é estruturado enquanto linguagem. No entanto, se sistemas de IA podem produzir e manipular a linguagem sem a dimensão do inconsciente humano e sem as barreiras psíquicas, o que restaria do sujeito humano falado pelo grande Outro-IA?

O risco é que a inteligência artificial, se não for fortemente regulada, suplante definitivamente o sujeito enquanto criador da linguagem, destruindo o espaço da subjetividade, expandindo os efeitos da sua verve “psicótica” à própria espécie humana. Não faltam exemplos recentes de como grupos organizados têm sido radicalizados facilmente nas dinâmicas das redes sociais virtuais, reproduzindo discursos e práticas delirantes, violentas e destrutivas.

Por fim, ao falar sobre o possível impacto da IA no mercado de trabalho e a inundação de informações falsas, Hinton nos coloca diante de uma nova forma de mal-estar, semelhante à crise cultural descrita por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930). A tecnologia, ao invés de nos libertar, pode se tornar um fator determinante de opressão psíquica e social, dissolvendo a distinção entre o real e o falso e corroendo as bases da verdade factual que sustentam as interações sociais. Assim como Freud via o avanço da civilização como fonte de novas formas de sofrimento, podemos afirmar que Hinton soma-se a tantos que veem a IA como um catalisador para novos tipos de desorientação e alienação humana.

O histórico discurso de Hinton não é apenas um alerta técnico do principal criador, estudioso da IA do mundo e prêmio Nobel, mas um profundo chamado à reflexão sobre a natureza e os limites da nossa própria humanidade. Ao transcendermos as fronteiras da ciência de laboratório e entrarmos no terreno da ética, da filosofia, da sociologia, da política e da psicanálise, entendemos que Hinton nos convida a uma introspecção sobre os destinos possíveis que aguardam uma civilização que, como Freud já advertia, pode estar criando suas próprias formas de destruição. Mais, sua fala é um chamado à ação pela conscientização massiva da população acerca dos riscos envolvidos no desenvolvimento das novas tecnologias, bem como à organização e pressão popular para que elas sejam fortemente reguladas pelos Estados e por organismos internacionais que não sucumbam aos poderosos lobbies do setor.

Entre espelhos e labirintos | O narcisismo das pequenas diferenças e o medo ao pequeno número no globalismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado no livro A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual, e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social, propus uma análise multidisciplinar e sucinta sobre a contemporaneidade visando àquilo que conceituei como as redes sociais virtuais, as distinguindo e articulando com o conceito de redes sociais. No ensaio, evidentemente citei diversos autores. Agora, contados mais de quatro anos da sua escrita, aqui no blogue – cuja proposta é a aproximação do leitor interessado com algumas análises a partir de construções e conceitos da psicanálise e das ciências sociais – julgo pertinente apresentar três noções fundamentais para nos aprofundarmos numa compreensão possível acerca das redes sociais e das redes sociais virtuais.  

A contemporaneidade se revela como um palco de paradoxos intensos: ao mesmo tempo em que a globalização aproxima povos e culturas, desmantelando fronteiras geográficas e simbólicas, emergem sentimentos profundos de hostilidade e intolerância direcionados a minorias, grupos marginalizados e maiorias subjugadas por elites locais. Essa dicotomia entre conectividade e fragmentação identitária exige uma investigação meticulosa sobre os mecanismos psíquicos e sociais que alimentam tais tensões. Para adentrar nesses labirintos, esse artigo pretende apresentar a ideia freudiana de narcisismo das pequenas diferenças com as reflexões de Pierre-André Taguieff sobre o medo ao pequeno número e a análise de Arjun Appadurai em “O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva”.

O narcisismo das pequenas diferenças: O Eu no espelho do Outro

Sigmund Freud, em sua obra “O mal-estar na civilização” (1930), introduz o conceito de narcisismo das pequenas diferenças para explicar a tendência humana de enfatizar e exacerbar distinções mínimas entre indivíduos ou grupos culturalmente próximos. Esse mecanismo psíquico atua como uma defesa contra a ameaça que o outro semelhante representa à identidade do Eu. Ao projetar hostilidade sobre diferenças sutis, o indivíduo reforça a sensação de unicidade e superioridade, evitando confrontar a inquietante proximidade com o outro.

Freud postula que essa agressividade dirigida às pequenas diferenças é fundamental para o sentimento de coesão dos grupos sociais. Ao identificar e antagonizar nuances no outro, o grupo reafirma seus próprios valores e fronteiras identitárias. Esse processo permite a manutenção de uma ilusão de homogeneidade interna, mascarando conflitos e contradições inerentes à própria comunidade.

No contexto contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pela circulação massiva de pessoas e informações, o narcisismo das pequenas diferenças adquire novas configurações. A proximidade virtual com o outro culturalmente similar, mas ligeiramente diferente, intensifica o desconforto e a necessidade de demarcação. Esse fenômeno é visível nas rivalidades entre grupos étnicos, religiosos ou nacionais que compartilham raízes históricas comuns, mas que se engajam em conflitos acirrados baseados em distinções aparentemente superficiais.

O medo ao pequeno número: a paranoia do minoritário

A força do preconceito: Ensaio sobre o racismo e seus duplos

Pierre-André Taguieff, filósofo e sociólogo francês, de certa forma aprofunda essa discussão ao explorar o medo ao pequeno número. No ensaio La Force du préjugé: Essai sur le racisme et ses doubles, publicado em 1988, ele analisa como sociedades majoritárias desenvolvem uma aversão irracional a minorias numéricas, percebendo-as como ameaças desproporcionais à ordem social e à identidade coletiva. Essa paranoia social não se fundamenta em perigos reais ou objetivos, mas em construções imaginárias que atribuem ao pequeno número um poder desestabilizador exagerado.

Taguieff argumenta que esse medo está enraizado em ansiedades profundas sobre a pureza identitária e a coesão social. Minorias são transformadas em bodes expiatórios, carregando projeções das inseguranças e contradições internas da maioria. O pequeno número, paradoxalmente, torna-se um gigante simbólico que precisa ser controlado ou eliminado para restaurar a sensação de segurança.

Esse mecanismo se manifesta em diversas formas: discriminação sistêmica, políticas de exclusão, violência física e simbólica. A minoria é frequentemente desumanizada, retratada como portadora de valores ou práticas que ameaçam a integridade moral, cultural ou econômica da sociedade dominante. Essa narrativa justifica ações repressivas e legitima a negação de direitos fundamentais.

Arjun Appadurai e a geografia da raiva: globalização e violência contra minorias

Arjun Appadurai, renomado antropólogo indiano, em sua obra “O Medo ao Pequeno Número: Ensaio sobre a Geografia da Raiva” (2006), oferece uma perspectiva inovadora sobre como a globalização intensifica esses fenômenos. Ele argumenta que a modernidade global produz uma sensação de incerteza e ansiedade em relação à identidade nacional e cultural. As fronteiras tradicionais são borradas, e as narrativas unificadoras do Estado-nação são desafiadas por fluxos transnacionais de pessoas, ideias e capital.

Ele introduz o conceito de “ansiedade de incompletude”, sugerindo que as nações modernas temem não alcançar uma identidade completa e coesa. Nesse contexto, minorias étnicas ou religiosas são vistas como obstáculos à realização dessa completude imaginada. A raiva e a violência dirigidas a esses grupos são, portanto, expressões de uma tentativa desesperada de eliminar elementos que simbolizam a fragmentação interna.

A globalização, ao mesmo tempo em que conecta, também acentua diferenças e promove comparações constantes. As comunidades são expostas a uma pluralidade de modos de vida, gerando questionamentos sobre seus próprios valores e tradições. Essa exposição pode levar a uma reafirmação agressiva da identidade, na qual o outro é visto como uma ameaça à estabilidade e à continuidade cultural.

Appadurai destaca que a violência contra minorias não é apenas um fenômeno local, mas está inserida em uma geografia da raiva que se espalha globalmente. Eventos em uma parte do mundo podem influenciar atitudes e ações em outras, através da mídia e das redes transnacionais. Essa interconexão potencializa a disseminação de ideologias extremistas e xenófobas.

Uma leitura das tensões contemporâneas

A intersecção entre o narcisismo das pequenas diferenças, o medo ao pequeno número e a geografia da raiva oferece um arcabouço teórico robusto para compreender as tensões que permeiam as sociedades atuais. Esses conceitos revelam como processos psicológicos individuais se refletem e se amplificam nas dinâmicas sociais e políticas.

O narcisismo das pequenas diferenças explica a necessidade de demarcar fronteiras identitárias mesmo em contextos de grande semelhança cultural. Essa demarcação é fundamental para a construção do “nós” em oposição ao “eles”, mesmo que as diferenças sejam mínimas. Quando combinado com o medo ao pequeno número, essa dinâmica se intensifica, pois a minoria é vista não apenas como diferente, mas como uma ameaça existencial.

A contribuição de Appadurai situa esses fenômenos no contexto da globalização, mostrando como as ansiedades identitárias são exacerbadas pelas transformações globais. A sensação de perda de controle e a percepção de que a identidade nacional está em risco levam a reações violentas contra minorias, vistas como obstáculos à realização de uma fantasiada identidade plena.

Essa articulação permite compreender por que, em muitos casos, a hostilidade é direcionada precisamente a grupos que são numericamente insignificantes ou que possuem laços culturais próximos aos da maioria. A ameaça não está na capacidade real de subversão desses grupos, mas na sua representação simbólica das incertezas e fragilidades internas da sociedade dominante.

Desafiando os labirintos da identidade no globalismo: caminhos para além da raiva

Compreender esses mecanismos é crucial para o desenvolvimento de estratégias que visem reduzir a violência e promover a convivência pacífica. Reconhecer que a hostilidade direcionada a minorias tem raízes profundas em ansiedades identitárias nos permite abordar o problema de maneira mais robusta e abrangente.

Políticas que promovam a inclusão e valorização da diversidade cultural podem contribuir para diminuir o medo ao pequeno número. Educação para uma cultura digital e intercultural, visando à pluralidade e espaços de diálogo são fundamentais para desconstruir estereótipos e reduzir os efeitos engendrados pela necropolítica na geopolítica da raiva.

Além disso, é necessário enfrentar as inseguranças geradas pela globalização. Isso implica em repensar seriamente modelos econômicos e sociais que produzem desigualdades, marginalização e a catástrofe ambiental. Fortalecer redes de proteção social e promover o desenvolvimento sustentável pode reduzir a sensação de ameaça e a falsa saída na acusação de bodes expiatórios.

A psicanálise, certamente, é uma das práticas que oferecem ferramentas valiosas para compreender e trabalhar essas questões individual e coletivamente. Ao explorarmos os processos inconscientes que alimentam a hostilidade, é possível promover uma maior autoconsciência e responsabilidade ética do sujeito em sua relação tanto com os seus próprios desejos, quanto com o outro.

A era da globalização apresenta desafios complexos à compreensão da identidade e da alteridade. Os conceitos de Freud, Taguieff e Appadurai nos permitem começar a mapear os labirintos da raiva que emergem nesse contexto, revelando como mecanismos psíquicos e sociais se entrelaçam para produzir hostilidade e violência contra minorias ou mesmo maiorias subjugadas por variadas elites econômicas locais.

Desvendar esses processos é o primeiro passo para construir sociedades mais justas e inclusivas. Esse é um convite urgente à reflexão sobre quem somos e como nos relacionamos com o outro. Reconhecer a riqueza que reside nas diferenças, por menores que sejam, pode transformar o narcisismo e o medo em oportunidades de crescimento coletivo a partir do diálogo e da essencial política.

Em última instância, superar os labirintos da raiva requer coragem para enfrentar as próprias inseguranças e abrir-se ao desconhecido. Esse é um processo contínuo de desconstrução e reconstrução de uma identidade que, no limite, reconhece a interdependência global e a necessidade de coexistência pacífica em um mundo cada vez mais interconectado.

 

O lugar nenhum

O homem que diz: “dou”, não dá / Porque quem dá mesmo, não diz / O homem que diz: “vou”, não vai / Porque quando foi, já não quis / O homem que diz sou, não é / Porque quem é mesmo é, não sou / O homem que diz tô, não tá / Porque ninguém tá quando quer…

(Baden Powell / Vinícius de Moraes)

Às vezes tomamos as pessoas que estão em um mesmo lugar como semelhantes.

Aqui, falo de lugares da geografia do mapa, mas também daquela dos territórios simbólicos. Da visão de mundo, das artes, das leis, da política, da ideologia, dos discursos, das práticas, da mente, dos desejos ou do coração. Do psiquismo, pra resumir.

Então, quando ouço algo dessa natureza das coisas, mais comezinhas e do dia-a-dia, me pergunto qual é a desse olhar estrangeiro que diz, dessa cornucópia de demandas.

De onde vem esse atestado do que nos habita, infantil. Aquele que diz sem saber, fala e age sem refletir sobre aquilo, de fora. Olhar lúdico, eventualmente, imponderado que, em um instante, pode ser inconsequente. Porque se julga em-poderável naquilo que acusa, enquanto enredado na malha dos significantes e entregue à tempestade que desaba das nuvens dos significados.

Aquele viés apaixonado, subitamente, que se apavona em mania, eufórico ou catastrófico, cordial. Retina vidrada que sumariza tomos de coleções em segundos e aponta dedos com a mesma facilidade com que abraça e chora. E ri. Ou, pior, aquela que define pontos sem tocar o corpo e a alma das linhas.

Então, me lembro que o apaixonado não é o poeta, e que a recíproca tampouco é verdadeira.

Quando miro e escuto esse olhar, me pergunto de onde ele vem, mas, também, por onde passou, o que viu, comeu, ouviu e cheirou. Porque ele não pertence a nada, como supõe apontar, senão – como lhe escapa – apenas é, numa humanidade de milênios.

Não há posição comum entre dois. Na melhor das hipóteses, há posição simultânea, que, no caso, não resiste a cinco minutos de escuta verdadeira ou conversa honesta.

A identificação é onça arisca. Organiza a vida social no longo prazo, mas pode, num instante, desorganizar a vida do sujeito.

Sejam pessoas que estão no lugar no qual não estamos, sejam aquelas no lugar em que nos encontramos.

Então, faz-se necessário um chamado ao narcisismo das pequenas diferenças. Aquele que, na contramão do que defendia o excelente Arjun Appadurai, talvez seja a escapatória às armadilhas do globalismo, reino maior dos discursos inconscientemente desalinhados das práticas, porque terreno privado sob o jugo permanente dos likes do social virtual.

Esse estranho que nos habita, esse estrangeiro criança nas redes sociais virtuais, cada vez mais busca identificações totais. Positivas ou negativas. Ele busca um Deus. O que ele ainda não diz é que a busca é por uma divindade particular, só dele.

Às vezes tomo uma pessoa, que está no mesmo lugar em que estou, enquanto semelhante.

Então, pergunto o que ela disse, discursou e fez pra chegar até aqui.

Não busco a falsa função purificadora daquilo que julgo meu ou do dito “cancelamento”, expressão perigosa do fascismo contemporâneo. Anseio, talvez, somente a necessidade de uma busca pela identificação que me aproxima do outro enquanto me posiciona narcisicamente.

Porque sempre precisaremos tentar entender quem somos a partir de onde viemos, tarefa cada vez mais árdua. Em alguns momentos com desconfiança. Noutros, com desejos de partilha e comunhão.

No entanto, sempre com respeito. Ao menos, até à página dois.

Afinal, por quaisquer que sejam as linhas sinuosas de infinitos pontos, naquele instante estamos no mesmo lugar.

Assédios e importunação: violência, pulsão e a falha na simbolização do desejo

O assédio moral, o assédio sexual e a importunação sexual – tipificados distintamente no direito penal brasileiro – representam dimensões sombrias da vida social que, além de constituírem atos de violência, revelam as complexidades do inconsciente humano em sua relação com o desejo e o poder. Esses comportamentos não surgem de um simples impulso. Eles são a expressão de dinâmicas psíquicas profundas que envolvem a pulsão, a violência e, em muitos casos, o fracasso da simbolização dos conflitos internos.

Sigmund Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), nos alerta para a força avassaladora das pulsões, especialmente da pulsão sexual, que, longe de ser uma força controlada e civilizada, muitas vezes irrompe em formas destrutivas, seja a partir do indivíduo, seja a partir de um grupo de pessoas.

A sexualidade reprimida pode retornar de maneiras inesperadas, revelando-se em um comportamento transgressivo, como ocorre nas importunações e assédios moral e sexual. A pulsão sexual, quando impedida de encontrar formas sublimadas de expressão, pode emergir como um ato de violência, em que o outro não é visto como um sujeito, mas como um objeto a ser usado para satisfazer uma necessidade que, no fundo, carrega as tintas da frustração através da agressividade.

A violência inerente aos assédios, da perspectiva psicanalítica – e não da jurídica -, é indissociável da dinâmica do poder. Ela é a manifestação do desejo de subjugar, de dominar, de impor a própria vontade ao outro, em geral, ao seu corpo. Nesse ponto, ocorre a passagem ao ato.

Jacques Lacan, em O Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963), explora a passagem ao ato como um ponto de ruptura na experiência subjetiva. Quando a angústia atinge níveis intoleráveis, o sujeito que comete o assédio pode experimentar uma quebra na sua capacidade de mediar seus impulsos através da linguagem e da simbolização. Essa falha culmina em uma ação impulsiva, que interrompe o campo do pensamento e se manifesta diretamente como ato investido em direção ao outro – uma violência que não é apenas física, mas profundamente psíquica.

Ao explorar a passagem ao ato, Lacan nos oferece uma chave fundamental para compreender o assédio. No momento em que esses crimes são perpetrados, o sujeito escapa da trama simbólica, do jogo de significantes que normalmente organiza a vida psíquica. Ao invés de lidar com o seu desejo de forma simbólica ou metafórica, ele age. Não há palavras, não há elaboração. O ato de assediar ou importunar surge, então, como um curto-circuito na capacidade do sujeito, na sua incapacidade de integrar o seu desejo e, consequentemente, a sua angústia no campo da linguagem.

O conceito de violência também desempenha, aqui, um papel central. Não é apenas a violência física que está em questão, mas a violência psíquica que destrói a alteridade do outro, transformando-o em um objeto de satisfação pulsional. Essa redução do outro a um objeto é, em si, uma forma de destruição simbólica, uma aniquilação da subjetividade que se reflete nos atos de assédio.

Melanie Klein, em Amor, Culpa e Reparação (1937), ao tratar da relação entre o desejo, a culpa e a reparação, nos mostra que a agressividade é intrínseca ao desejo humano, e que essa própria agressividade, quando não elaborada, se manifesta em ações que visam à destruição do outro.

Assim, as manifestações de assédios e a importunação sexual devem ser compreendidos não apenas como transgressões morais ou sociais, mas como sintomas de um tipo de falha mais profunda no psiquismo daquele que perpetra o crime.

O agressor, incapaz de simbolizar os seus conflitos e desejos, age de maneira direta, violenta.

Freud já havia nos mostrado como o recalque e a supressão, quando fracassam no indivíduo, retornam em formas inesperadas, muitas vezes destrutivas, e, em geral, assustadoras aos olhos da cultura. Lacan complementa, ao nos lembrar que, quando a palavra falha, o ato toma o seu lugar – e o ato, nesses casos, é uma violência.

Nesse sentido, a importunação e os assédios não são, somente, uma questão de poder, ou um tipo de investimento da pulsão sexual mal direcionado. São, antes, um colapso psíquico no qual a meta pulsional co-incide com a própria agressividade e se lança ao outro, no mundo exterior, enquanto violência. Como um modo de lidar com a própria incapacidade de simbolizar o desejo. Como uma falha no campo da linguagem e da subjetivação, na qual o sujeito age – destruindo o outro, porque, antes, visa destruir a si mesmo, na tentativa de escapar de uma angústia intolerável.