O lugar nenhum

O homem que diz: “dou”, não dá / Porque quem dá mesmo, não diz / O homem que diz: “vou”, não vai / Porque quando foi, já não quis / O homem que diz sou, não é / Porque quem é mesmo é, não sou / O homem que diz tô, não tá / Porque ninguém tá quando quer…

(Baden Powell / Vinícius de Moraes)

Às vezes tomamos as pessoas que estão em um mesmo lugar como semelhantes.

Aqui, falo de lugares da geografia do mapa, mas também daquela dos territórios simbólicos. Da visão de mundo, das artes, das leis, da política, da ideologia, dos discursos, das práticas, da mente, dos desejos ou do coração. Do psiquismo, pra resumir.

Então, quando ouço algo dessa natureza das coisas, mais comezinhas e do dia-a-dia, me pergunto qual é a desse olhar estrangeiro que diz, dessa cornucópia de demandas.

De onde vem esse atestado do que nos habita, infantil. Aquele que diz sem saber, fala e age sem refletir sobre aquilo, de fora. Olhar lúdico, eventualmente, imponderado que, em um instante, pode ser inconsequente. Porque se julga em-poderável naquilo que acusa, enquanto enredado na malha dos significantes e entregue à tempestade que desaba das nuvens dos significados.

Aquele viés apaixonado, subitamente, que se apavona em mania, eufórico ou catastrófico, cordial. Retina vidrada que sumariza tomos de coleções em segundos e aponta dedos com a mesma facilidade com que abraça e chora. E ri. Ou, pior, aquela que define pontos sem tocar o corpo e a alma das linhas.

Então, me lembro que o apaixonado não é o poeta, e que a recíproca tampouco é verdadeira.

Quando miro e escuto esse olhar, me pergunto de onde ele vem, mas, também, por onde passou, o que viu, comeu, ouviu e cheirou. Porque ele não pertence a nada, como supõe apontar, senão – como lhe escapa – apenas é, numa humanidade de milênios.

Não há posição comum entre dois. Na melhor das hipóteses, há posição simultânea, que, no caso, não resiste a cinco minutos de escuta verdadeira ou conversa honesta.

A identificação é onça arisca. Organiza a vida social no longo prazo, mas pode, num instante, desorganizar a vida do sujeito.

Sejam pessoas que estão no lugar no qual não estamos, sejam aquelas no lugar em que nos encontramos.

Então, faz-se necessário um chamado ao narcisismo das pequenas diferenças. Aquele que, na contramão do que defendia o excelente Arjun Appadurai, talvez seja a escapatória às armadilhas do globalismo, reino maior dos discursos inconscientemente desalinhados das práticas, porque terreno privado sob o jugo permanente dos likes do social virtual.

Esse estranho que nos habita, esse estrangeiro criança nas redes sociais virtuais, cada vez mais busca identificações totais. Positivas ou negativas. Ele busca um Deus. O que ele ainda não diz é que a busca é por uma divindade particular, só dele.

Às vezes tomo uma pessoa, que está no mesmo lugar em que estou, enquanto semelhante.

Então, pergunto o que ela disse, discursou e fez pra chegar até aqui.

Não busco a falsa função purificadora daquilo que julgo meu ou do dito “cancelamento”, expressão perigosa do fascismo contemporâneo. Anseio, talvez, somente a necessidade de uma busca pela identificação que me aproxima do outro enquanto me posiciona narcisicamente.

Porque sempre precisaremos tentar entender quem somos a partir de onde viemos, tarefa cada vez mais árdua. Em alguns momentos com desconfiança. Noutros, com desejos de partilha e comunhão.

No entanto, sempre com respeito. Ao menos, até à página dois.

Afinal, por quaisquer que sejam as linhas sinuosas de infinitos pontos, naquele instante estamos no mesmo lugar.

Onde está Wally? | A juventude transviada e o poder da citação

“…e ambos vieram de boas famílias”.

Uma prática muito comum nos colegiais e cursinhos, ao menos, antigamente, era aquela de mandar bilhetinhos para que o professor lesse. Essencialmente, em voz alta. Por mais que, eventualmente, chegassem também cantadas e brincadeiras não lidas.

Os bilhetes eram, geralmente, referentes a alguma tola brincadeira ou piada adolescente, própria a um nexo muito particular daquele grupo, turma ou geração, mas que serviam como pontos de alívio na extenuante obrigação educacional, conforme chegava o momento de escolher o futuro aos que tinham a sorte de estar ali.

Não me lembro de ter enviado bilhete algum, sequer uma vez. Talvez, esse seja um arrependimento a elaborar futuramente. Entretanto, guardo comigo alguns que presenciei. Melhor, vivi, enquanto estudante.

Como quando, em um inverno, numa sala de cursinho com uns cem alunos, vi um querido professor abrir um dos tantos bilhetes que recebeu e gargalhar alto, numa sala silenciosa, enquanto fazíamos exercícios. Todos os chamamentos adolescentes à atenção haviam sido sumariamente silenciados por ele, até então. Devidamente, em prol do bom andamento da matéria e dos interesses de todos, no longo prazo, professor e alunos.

Porém, incontido, ao reagir espontaneamente àquele bilhetinho, ele disse no microfone, subvertendo sua proposição e intento: “esse eu preciso ler”. Naquele momento, mais ou menos 200 olhos fugiram das apostilas e o miraram em excitação. O que viria?

Então, ele continuou com a brevidade humorística dos grandes chistes: “Onde está Wally?”.

Quando todos se entreolharam, naquele emaranhado de moletons em moles e fáceis tons pastéis e escuros de adolescentes que pretendiam sumir na coletividade, rapidamente, os olhos saltaram para um colega que trajava uma bela blusa de lã, com largas listras na horizontal, vermelhas e brancas.

Havia ali, entre nós, alguém único, que, diferente, se destacava naquele dia e ninguém tinha notado, salvo o autor do bilhete. E o rapaz, de quem não me lembro o nome, cuja blusa era o objeto do riso, ria conosco, ciente de aquilo não era uma violência, mas um congraçamento.

Só faltava o gorro para que ele fosse o próprio Wally.

Imagine o professor, de frente, ao ler e ver aquele anfiteatro lotado. O autor foi genial e o momento, às vésperas do vestibular, sensacional. Todos rimos muito e nos aliviamos em meio aos exercícios. Cada qual com suas questões objetivas e existenciais.

Lembro-me, também, de um bilhete endereçado a outro querido professor que, no caso, faz-se necessário ressaltar, era, sabidamente por todos, gay. Ao ler o bilhete, ele fez questão de relê-lo em voz alta, parando a aula: “Onde termina essa seta?”.

Naquele dia, ele tinha ido com uma camiseta da Dolce & Gabanna estampada que, nas costas, tinha somente o desenho de uma grande seta, apontada para baixo. Frequentemente, ele respondia às provocações homofóbicas citando suas roupas e perfumes, com bom humor. Depois de um tempo compreendi que tais respostas eram suas únicas defesas, diante das tantas violências que certamente sofreu. Sobretudo, em escolas da elite econômica do interior de São Paulo.

Sua ação imediata foi simples e eficaz. Como todos os professores com um pouco de experiência já intuíram a essa altura, ele dobrou o bilhete, devolveu ao aluno na primeira fileira que lhe entregou originalmente e disse: “volta para quem te passou”.

Então, em um silêncio sepulcral, o auditório acompanhou lentamente o retorno do bilhete ao autor, sentado lá em cima, no fundão, na diagonal oposta do anfiteatro. Outrora um bravo, popular, carismático e corajoso, desmascarado em sua covardia violenta, sua cara foi ao chão e, ainda que com certa distância, pude notar suas bochechas rosas tremerem levemente.

A voz do professor ecoou nas caixas do anfiteatro: “Em primeiro lugar, essa é uma camisa Dolce & Gabanna de muito bom gosto, coisa que o senhor e, provavelmente, a sua família, não têm. E não deve ser por falta de dinheiro. Em segundo lugar, e o senhor um dia vai descobrir, cada um goza por onde sente tesão, e isso não é da conta de ninguém. Mas o senhor, provavelmente virgem, ainda não descobriu isso”.

A sala veio abaixo. Ao menos que eu me lembre, essa foi uma das ocasiões em que mais ri em minha vida. Todos nós. Risos enquanto respostas. Cada qual com as suas. Nesse dia não houve um congraçamento total, porque somente uma pessoa não deu risada: o autor do bilhete. Até hoje me pergunto se ele aprendeu a lição.

Mais de um quarto de século depois, pautando o universo das redes sociais virtuais, enchendo o saco com suas insignificâncias adolescentes no real e necessário debate público de adultos, desestabilizando, manipulando, derrubando, elegendo governos mundo afora e, consequentemente, piorando a vida de todo mundo, estão os piores “meninos do fundão”. Geralmente, os que menos estudaram e que faziam as brincadeiras mais sem graça pra chamar a atenção de todos. Atraindo cliques com postagens estridentes, cheias de manipulações, com gritos fraudulentos, apelativos, sem fontes ou, ainda, em um anonimato covarde.

Porém, agora, muito além do humor que ri dos reais opressores, daquele de congraçamento, ou mesmo daquele reacionário, dito “politicamente incorreto”, a juventude transviada contemporânea, guiada por velhacos, defende os opressores, dissemina distorções, negacionismos, mentiras e perpetra crimes diariamente, servindo ao velho fascismo que quer achar o Wally para matá-lo com as setas que usam como lanças.

Você, jovem ou velho, quando se deparar com algum texto ou vídeo que soe uma informação, algo que você não sabia, ainda que elementar, travestida de opinião ou de pergunta, busque o autor da citação, a fonte fidedigna daquele texto, daquela ideia ou raciocínio apresentado. De onde veio aquilo, de fato, e qual é a intenção do autor real, que, na imensa maioria das vezes não é a mesma daquele que compartilhou com você. Ainda, quem orientou aquela disseminação artificialmente? Por quê?

Por sua vez, quando você se deparar com um desinformado por ocasião ou um neofascista assumido que saiba, minimamente, dialogar, aprofunde a conversa, o argumento. Peça para ele citar suas fontes, elaborar o seu raciocínio. Coloque a prova na mesa. Mande, educadamente, ele voltar o bilhete e acompanhe até onde ele vai.

Com muita sorte ele chegará até o fundão da internet, todavia, o conteúdo não passará da página dois. Ao menos aos que se importam não só consigo, mas com o restante da turma, com os professores e todos os funcionários do colégio.