A engenharia social das Big Techs | Ultraliberalismo, extremismo e as origens do totalitarismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado em 2022, escrevi:

A sociedade globalizada tem nas novas tecnologias a sua infraestrutura racionalizável. Um alicerce cartesiano, técnico, científico e amoral, onde cada avanço é calculado, dando continuidade às disputas geoestratégicas e históricas entre nações, grupos organizados, etnias e corporações, pela primazia política no acesso aos recursos naturais, cada vez mais escassos. É em sua camada mais externa, portanto, visível e perceptível, campo sociocultural da moral e da ética – onde, até poucos anos atrás efetivavam-se as relações sociais numa forma aparentemente mais sólida e estruturada –, que ocorre o terremoto do sujeito das redes sociais virtuais. Fundamentalmente, diante do olhar atônito daqueles nascidos no mundo pré-globalismo.

Devido ao enorme avanço tecnológico em um curto espaço de tempo, em sua lógica micro e exponencial, houve uma alienação quase total das massas quanto às potencialidades e às realizações efetivas disto que chamamos de infraestrutura racionalizável nas novas dinâmicas globais. Alienação, esta, que atinge também setores mais aparentes dos Estados e da política institucional, enquanto possíveis agentes reguladores de ações socialmente temerárias.

Desdobrando o sentido da alienação a qual me referi, diante dos últimos acontecimentos, julgo pertinente o artigo que se segue.

A engenharia social das Big Techs | Ultraliberalismo, extremismo e as origens do totalitarismo

A engenharia social, uma técnica de manipulação psicológica para influenciar comportamentos e decisões de indivíduos e sociedades inteiras, tem sido amplamente utilizada no cenário global contemporâneo. Desde operações de inteligência de serviços secretos até campanhas de desinformação de poderosos grupos político-econômicos em larga escala, essa abordagem explora vulnerabilidades humanas e institucionais para alcançar objetivos estratégicos. Essa prática tem sido utilizada pelas Big Techs, especialmente alinhadas aos interesses da elite dos Estados Unidos, como ferramenta de preservação do poder em meio ao declínio da hegemonia geopolítica do país.

Do neoliberalismo ao ultraliberalismo

A transição do neoliberalismo para o ultraliberalismo representa uma radicalização das premissas econômicas e políticas que surgiram a partir da segunda metade do século XX. Embora ambos os conceitos estejam ancorados em uma defesa do livre mercado, da desregulamentação estatal e da primazia do capital privado, o ultraliberalismo aprofunda essas ideias, resultando em uma forma ainda mais extrema de concentração de poder econômico e de desmantelamento das instituições democráticas e sociais.

O neoliberalismo emergiu como uma reação às políticas intervencionistas do pós-guerra, baseando-se em teorias de economistas como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Ele defendia a limitação da intervenção estatal na economia, a privatização de serviços públicos e a flexibilização das relações de trabalho. Essas ideias ganharam força durante os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, estabelecendo a crença de que o mercado, quando livre de regulações, seria capaz de autorregular-se e gerar prosperidade.

Contudo, o que se observou ao longo das décadas foi o aumento da desigualdade, a concentração de riquezas nas mãos de poucos e o enfraquecimento progressivo das redes de proteção social. As crises financeiras, como a de 2008, evidenciaram as falhas desse modelo ao demonstrar como a desregulamentação excessiva do sistema financeiro levou ao colapso global, afetando principalmente as populações mais vulneráveis, enquanto as elites econômicas continuaram a lucrar e a concentrar renda e poder.

O ultraliberalismo surge como uma resposta ainda mais radical a esse contexto, não apenas aprofundando os princípios do neoliberalismo, mas eliminando qualquer compromisso, ainda que ínfimo, com o bem-estar social e o equilíbrio democrático. No ultraliberalismo, o mercado não é apenas priorizado, mas passa a ser visto como o único regulador legítimo das relações humanas, superando até mesmo o papel de Estados e instituições democráticas. Esse modelo defende a financeirização extrema da economia, a especulação como motor central de acumulação de riqueza e a redução drástica de políticas públicas voltadas para o bem comum.

Diferentemente do neoliberalismo, que ainda operava sob a narrativa de “prosperidade compartilhada”, o ultraliberalismo abraça abertamente a desigualdade como um aspecto não somente inevitável, mas desejável, de uma sociedade onde o suposto mérito individual de bilionários e o acúmulo irrestrito de capital são exaltados, como se não se beneficiassem, historicamente, de desonerações, investimentos diretos de governos e dos avanços científicos oriundos de universidades públicas mundo afora. Esse modelo ultraliberal se manifesta de forma clara em empresas de tecnologia e finanças que operam sob lógicas monopolistas, como as Big Techs, que utilizam algoritmos para manipular mercados e comportamentos sociais, reforçando assim sua concentração de poder e controle informacional.

No plano político, o ultraliberalismo frequentemente se associa ao autoritarismo e ao neofascismo, pois, ao minar os fundamentos do Estado moderno como mediador de interesses sociais plurais, ele fomenta e organiza a extrema-direita, enquanto seu duplo que atua como escudo e capataz. Essa fusão ideológica pode ser observada em figuras como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Giorgia Meloni, que, embora adotem discursos nacionalistas e de “defesa do povo”, implementam agendas econômicas de desmonte de direitos trabalhistas e de enfraquecimento das instituições democráticas.

Assim, a transição do neoliberalismo para o ultraliberalismo não é apenas uma evolução teórica, mas a intensificação de um projeto global de poder que busca consolidar a supremacia de uma elite financeira especulativa, enquanto desmantela progressivamente as conquistas sociais e os mecanismos de participação popular no processo político, conquistadas duramente ao longo do século XX.

Big Techs, controle informacional e ultraliberalismo

As Big Techs controlam os principais fluxos informacionais e, assim, exercem um poder inédito na manipulação de massas. Essa influência tem sido instrumentalizada para promover a ideologia ultraliberal que enfraquece regulações governamentais e deslegitima mecanismos democráticos de controle. A nomeação de figuras como Dana White, presidente do UFC, ao conselho da Meta, reflete essa lógica, pois White é associado a uma retórica extremista e associado aos valores de desregulamentação extrema.

Além disso, a Meta aboliu a checagem de fatos em sua plataforma nos EUA, substituindo-a por um sistema de “notas da comunidade”, inspirado no X de Elon Musk. Essa abordagem, apresentada como uma defesa da liberdade de expressão, enfraquece a verificação de informações e permite a proliferação de conteúdos desinformativos e extremistas.

O Google também demonstrou esse comportamento ao manipular, em dezembro de 2024, a cotação do dólar em sua plataforma, informando valores inflacionados durante o feriado, quando o mercado estava fechado. Outra evidência foi o caso de setembro de 2024, quando o Google ocultou informações de determinados candidatos políticos no Brasil, favorecendo candidatos de direita e extrema-direita enquanto ocultava perfis de centro-esquerda, sugerindo interferência algorítmica tendenciosa.

A pressão exercida pelo Google e pela Meta sobre o Congresso brasileiro para derrubar o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News, em 2023, exemplifica o modus operandi dessas empresas ao combater regulação. Durante 14 dias, as empresas promoveram campanhas massivas, incluindo ameaças de remoção de conteúdo e ataques direcionados a parlamentares para evitar a aprovação de uma legislação que buscava maior responsabilidade das plataformas digitais.

Extremismo e manipulação política

A ascensão da extrema-direita global, evidenciada por eventos como a eleição de Donald Trump e o avanço de líderes ultraconservadores na Europa e América Latina, está diretamente ligada à manipulação informacional promovida por essas plataformas. A crise financeira de 2007-2008 desempenhou um papel central nesse processo, pois intensificou políticas de austeridade e precarização social, fatores explorados por movimentos de extrema-direita que canalizaram o descontentamento popular para pautas identitárias e anti-imigratórias, em vez de questionar o neoliberalismo estrutural.

Essa estratégia discursiva não rejeita o neoliberalismo, mas explora ressentimentos em torno da globalização, do multiculturalismo e das imigrações de massas de sobreviventes – desalojados pelas guerras promovidas pelo capital – direcionando a frustração a minorias e enfraquecendo o debate democrático. Episódios como a invasão do Capitólio nos EUA e a destruição da Praça dos Três Poderes no Brasil refletem a ascensão do neofascismo nessa dinâmica global, como um leão de chácara violento, massificado e instrumentalizado para defender os projetos ultraliberais das elites financeiras locais.

No contexto latino-americano, além da retórica contrária ao multiculturalismo na globalização, há o uso de um discurso anticomunista delirante, no qual aqueles que defendem as instituições da democracia liberal, o socialismo democrático, o humanismo, as artes e a regulação do ultraliberalismo, inclusive das Big Techs, são frequentemente rotulados como inimigos da ordem social e da nação. Essa retórica não apenas deslegitima vozes críticas, a educação e a ciência, mas também fomenta um ambiente de violência extrema contra o pensamento crítico, em que qualquer oposição ao domínio corporativo e ao desmonte de direitos sociais é tratada como uma ameaça ao sistema que defendem, ainda que se julguem antissistema.

Esse é um enquadramento decisivo na anotação de que não há mais um neoliberalismo, mas um avanço à forma do ultraliberalismo, que se vale de mentiras e distorções massificadas, para doutrinarem setores das massas e arregimentarem as suas frustrações oriundas do neoliberalismo, que se tornou insustentável, após sua última crise mundial. Ao desviar o foco das consequências da desregulação econômica e da concentração de poder nas mãos de poucas empresas, esse discurso extremista protege interesses financeiros e políticos hegemônicos, enquanto ataca e enfraquece as bases do debate democrático e a busca por uma sociedade mais justa e equilibrada, inclusive com armas nas mãos e organizando o terrorismo doméstico.

O ultraliberalismo e a defesa da elite especulativa global

O ultraliberalismo promovido pelas Big Techs serve aos interesses de uma elite financeira global numericamente ínfima, mas com imenso poder sobre a economia e a política mundial. Essa elite utiliza o controle informacional e a manipulação algorítmica para manter e expandir sua influência, alimentando um ciclo de desigualdade econômica e injustiça social que, por sua vez, fomenta o extremismo e a polarização ideológica. Essa dinâmica reflete os valores e a visão de mundo do establishment WASP (White Anglo-Saxon Protestant), historicamente ligado ao domínio financeiro e cultural no Ocidente.

Imagem criada por “inteligência” artificial, pelo Café com Pepino.

O establishment WASP tem suas raízes profundas nas origens coloniais e racistas dos Estados Unidos e da Europa. No contexto norte-americano, por exemplo, a Ku Klux Klan (KKK) desempenhou um papel fundamental na preservação de uma hierarquia racial profundamente enraizada, defendendo uma sociedade segregada e branca, enquanto no Velho Continente, as potências coloniais europeias, como o Império Britânico e a França, impuseram um sistema de exploração baseado na subordinação racial e cultural das populações nativas. Esse legado colonial e racista, por sua vez, consolidou a supremacia econômica do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, com os Estados Unidos e o Reino Unido emergindo como os centros financeiros do mundo.

A ascensão de movimentos neonazistas e neofascistas, como a Alternativa para a Alemanha (AfD), a Frente Nacional (hoje Rassemblement National) na França, a Lega de Matteo Salvini na Itália e o Fratelli d’Italia-Alleanza Nazionale, liderado por Giorgia Meloni, ilustra a persistência de tais ideologias no cenário atual. Recentemente, em um artigo publicado no Welt am Sonntag, Elon Musk expressou apoio à AfD, partido de extrema-direita alemão que, desde 2021, é classificado pela agência de inteligência doméstica alemã como extremista. Musk, bilionário e dono de empresas como a Tesla e SpaceX, com cidadania americana, afirmou em um post no X (antigo Twitter) que “apenas a AfD pode salvar a Alemanha”. Esse posicionamento provocou a demissão de Eva Marie Kogel, editora de Opinião do jornal, que se afastou em protesto, ressaltando a importância da liberdade de expressão, mas também da responsabilidade jornalística.

O apoio de Musk à AfD se insere em um contexto mais amplo de apoio de figuras ultrarricas a movimentos populistas de direita, que não apenas defendem o desmantelamento das estruturas democráticas, mas também perpetuam um sistema de exploração global que favorece as grandes corporações, como demonstrado por Musk na sua postura em relação ao golpe de Estado na Bolívia em 2019. Ao comentar sobre o interesse de derrubar o governo de Evo Morales para garantir o controle sobre o lítio boliviano, Musk proferiu a frase “Vamos dar golpe em quem quisermos!”, em resposta a uma provocação sobre o impacto de sua influência econômica na região. Musk, ao apoiar uma agenda que almeja a exploração indiscriminada de recursos naturais em países latino-americanos, segue uma lógica de poder baseada no neocolonialismo, onde os interesses das elites financeiras globais se sobrepõem à soberania de nações e aos direitos das populações locais.

Em paralelo, o movimento neonazista na Alemanha, personificado pela AfD, segue em uma trajetória de negação da diversidade cultural e racial, mirando não apenas na desconstrução do Estado de bem-estar social, mas também na criação de um ambiente ideológico favorável à supremacia branca e ao ultranacionalismo. Esses movimentos têm ganhado força, particularmente com o respaldo de figuras como Musk, que, ao defender posturas antidemocráticas, alimenta uma narrativa global que visa consolidar ainda mais a elite especulativa global à custa dos povos marginalizados.

Ainda, a ideologia ultraliberal, impulsionada por figuras como Balaji Srinivasan, promove uma agenda ainda mais extrema: a substituição dos Estados modernos por feudos corporativos privados. Srinivasan defende a criação de microestados digitais e físicos, onde empresas e elites financeiras deteriam controle absoluto, abolindo a soberania estatal e os direitos garantidos pelas democracias constitucionais.

Esse conceito de “Estados em Rede”, promovido no Vale do Silício, não apenas despreza os princípios fundamentais dos Estados modernos, como os propostos por Rousseau em O contrato social, mas também retrocede ao modelo feudal de governança, no qual o poder era centralizado em poucas mãos e os direitos dos cidadãos eram praticamente inexistentes.

Essa filosofia, além de utópica e perigosa, já começa a se materializar em práticas como o projeto Próspera em Honduras, uma cidade privada que busca impor leis próprias em detrimento das legislações nacionais, gerando um ambiente de exploração e autoritarismo empresarial.

Essa aliança entre interesses financeiros e movimentos de extrema-direita é uma expressão do que pode ser entendido como uma globalização das elites, onde, ao contrário da globalização econômica que prometia falsamente prosperidade para todos, o que se consolida é um sistema ainda mais excludente, desigual e violento. Em um mundo onde o poder econômico está nas mãos de poucos, a manipulação de informações e a organização do extremismo se tornam instrumentos fundamentais para o controle social e político, criando condições para um ciclo interminável de concentração de riqueza e poder.

As origens do totalitarismo e as práticas das Big Techs

O projeto das Big Techs reflete as dinâmicas descritas por Hannah Arendt em As origens do totalitarismo. Arendt destacou como regimes totalitários promovem a distorção sistemática da verdade, criando realidades paralelas em que os fatos são manipulados para favorecer estruturas de poder. Essa manipulação, segundo ela, não é apenas uma forma de controle, mas parte essencial da desintegração da realidade objetiva, um processo fundamental para a manutenção de sistemas autoritários.

A recente alegação de Mark Zuckerberg sobre “cortes secretas” e censura na América Latina, bem como sua declaração sobre uma suposta “institucionalização da censura” na Europa, refletem uma estratégia retórica para escapar da regulação. No entanto, o histórico das Big Techs, incluindo a manipulação de informações, a interferência política e as campanhas contra regulações como o PL 2630 no Brasil, evidencia que essas alegações são tentativas de autopreservação em um setor cada vez mais fora de controle.

A engenharia social contemporânea conduzida por essas empresas não apenas distorce fatos, mas incentiva a fragmentação da realidade coletiva. As técnicas descritas por Arendt, como o isolamento informacional e a desintegração da percepção da verdade, são visíveis na forma como as Big Techs operam. A manipulação algorítmica, ao priorizar conteúdo polarizador e desinformativo, atomiza o debate público e desmobiliza o pensamento crítico.

Arendt analisou como o totalitarismo desarticula o espaço público ao substituir o debate racional por uma enxurrada de narrativas fabricadas e contraditórias, um fenômeno que encontra eco no funcionamento das plataformas digitais. As Big Techs, por meio de algoritmos opacos, não apenas amplificam informações falsas, mas também criam bolhas informativas que isolam os usuários em realidades alternativas, minando os fatos inexoráveis e o conceito de verdade compartilhada.

A desinformação massiva promovida por essas plataformas reflete a noção arendtiana de que o totalitarismo depende da destruição do juízo crítico. A exposição contínua a versões contraditórias da realidade, segundo Arendt, não visa convencer, mas desorientar e enfraquecer a capacidade de julgamento autônomo dos indivíduos. De forma semelhante, o modelo de negócios das Big Techs, baseado no engajamento por polarização, incentiva a confusão informacional e a passividade diante de narrativas distorcidas.

Outro aspecto central na análise de Arendt sobre o totalitarismo é o papel da burocracia despersonalizada e das estruturas de poder difusas, que tornam a responsabilização quase impossível. As Big Techs replicam essa lógica ao fragmentar sua atuação por meio de complexas redes de subsidiárias e seus respectivos e infindáveis algoritmos cujo funcionamento e impacto são mantidos deliberadamente obscuros. Assim como nos regimes totalitários descritos por Arendt, a concentração de poder se dá ao mesmo tempo em que a responsabilidade individual é diluída.

Portanto, a crítica de Arendt ao totalitarismo ilumina a forma como as Big Techs operam atualmente: ao manipular informações, distorcer a percepção coletiva da realidade e fragmentar o espaço público, essas empresas não apenas ameaçam a democracia, mas também se aproximam perigosamente das práticas de dominação descritas em sua obra. Suas táticas não são meramente falhas de um mercado desregulado, mas sim estratégias estruturais que concentram poder ao custo da autonomia e do discernimento crítico da sociedade.

O futuro

O avanço das Big Techs em manipular o fluxo global de informações sob uma lógica ultraliberal e antidemocrática demanda uma resposta urgente e coordenada. Inspirando-se nas reflexões de Hannah Arendt, é possível identificar as dinâmicas totalitárias que emergem quando o controle sobre a informação é concentrado em poucas corporações.

É imperativo que governos, sociedade civil e instituições multilaterais atuem juntos para estabelecer regulações que limitem o poder dessas plataformas. A imposição de responsabilidade e transparência, especialmente no uso de algoritmos e IA, é essencial para preservar a soberania informacional e garantir um ambiente digital mais ético, plural e verdadeiramente democrático. Somente com essas medidas será possível enfrentar os desafios de uma ordem multipolar e resistir à manipulação ideológica promovida pelas Big Techs em escala global.

Trump e Musk – O declínio do império americano e da democracia liberal

Mas certamente para esta época que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a fantasia à realidade, a aparência à essência, é esta transformação, exatamente por ser uma desilusão, uma destruição absoluta ou uma pérfida profanação, porque sagrada é somente a ilusão, mas profana a verdade. Sim, esta sacralidade aumenta na mesma proporção em que a verdade diminui e a ilusão aumenta, de forma que o que é o mais alto grau de ilusão é também o mais alto grau de sacralidade. – Ludwig Feuerbach em A essência do cristianismo, ed. Vozes, 2007, p.25.

Na madrugada da última quarta-feira, 06.11.2024, Donald Trump – um criminoso bilionário e famoso por ter participado de um reality show patético – foi extraoficialmente eleito, novamente, para presidente dos Estados Unidos da América. No conservador sistema eleitoral daquele país, um candidato do Partido Republicano voltou a vencer as eleições também no voto popular. O último havia sido George W. Bush, em sua reeleição, após o 11 de setembro de 2001.

Elon Musk cumprimenta Donald Trump em evento oficial de campanha. Imagem: Jim WATSON / 31.out.2024-AFP.

Mesmo sem nutrir qualquer esperança de que um mal menor aconteceria à América Latina – fosse eleita Kamala Harris -, assisti, ainda assim incrédulo, um mitômano golpista, racista e misógino fazendo uma propaganda de outro bilionário – Elon Musk – durante muitos minutos, no microfone em que discursava para o planeta. Naquele palco de extremistas encontravam-se, também, Dana White, dono do UFC , que proferiu algumas palavras aos gritos e Joe Rogan, ex-lutador de MMA, comediante de stand-up e maior podcaster do mundo.

O retorno de Donald Trump à Casa Branca e a indireta coroação de Elon Musk (sim, porque ele acaba de se tornar o ser humano mais poderoso do mundo sem nenhum voto) são uma consequência do declínio do império americano e, concomitantemente, a própria representação dessa derrocada geopolítica. O tempo mostrará se essa eleição também será percebida como um marco da falência da democracia liberal e o início de uma consolidação de autocracias, ditaduras e um totalitarismo do capital tecnológico em escala mundial.

Abaixo, analiso como a eleição de Trump – também pelo voto popular – representa a trajetória desse Titanic na geopolítica, assumindo que o iceberg que leva ao seu consequente naufrágio na própria geopolítica já está bastante visível a você, caro leitor.

Nesse artigo, você lerá:

Capitão Trump e o marujo Musk
Do liberalismo ao ultraliberalismo – o desespero diante do iceberg
A política ultraliberal é o extremismo
O X do problema: a alienação no não-sentido
Capitão Musk e o marujo Trump
Anexo| Editorial Bloomberg – Por que os contribuintes deveriam dar 83 bilhões de dólares por ano aos grandes bancos?

Capitão Trump e o marujo Musk

Donald Trump e Elon Musk são raros vendedores sem escrúpulos, porque, também, megalomaníacos. Ou seja, ambos são salafrários narcisistas e exibicionistas, daqueles que não se escondem após um golpe. Ao contrário, correm para os holofotes. Agora, unidos, como se fossem um Noé vendendo uma arca para as massas do globalismo quando precipita o dilúvio no império.

Trump e Musk não são somente herdeiros de fortunas erguidas da exploração imoral de miseráveis; eles são herdeiros do racismo, da misoginia, do ódio, de crimes e, ainda, usurpadores de dinheiro público. A base dos seus impérios não é o mérito, mas uma herança construída pela amoralidade inerente ao capitalismo, pelo oportunismo e transgressões às próprias regras do inescrupuloso mercado financeiro. Ambos, agora juntos, representam uma só necroliderança a quem resta avançar de forma sádica, violentando quem está abaixo, ou seja, 99% da população mundial.

“Eu sou um grande defensor do livre mercado, e o governo precisa sair do caminho”. Donald, o autor dessa frase, deve sua fortuna à exploração imobiliária do pai, Fred Trump, que construiu prédios populares durante a Segunda Guerra Mundial, em Nova Iorque, com subsídios públicos e práticas discriminatórias. Ao obterem contratos lucrativos com o governo para a construção de moradias estabeleceram um império marcado pelo racismo e por fraudes. Ambos foram processados por barrarem pessoas pretas de alugarem os seus imóveis.

Elon é filho de Errol Musk, negociante de terrenos valorizados na África do Sul durante o apartheid e dono de uma mina de esmeraldas na Zâmbia – território saqueado por interesses estrangeiros. Esse capital familiar financiou Elon. Longe de ser o “self-made” visionário que muitos celebram, ele construiu o seu império com pesados subsídios de dinheiro público. Empresas como Tesla, SpaceX e SolarCity receberam bilhões em apoio governamental, uma contradição gritante para alguém que se diz contra “interferência estatal”.

Imagem autoral do site Café com Pepino, gerada por ‘inteligência’ artificial.

A Tesla já recebeu mais de US$2 bilhões em incentivos fiscais e subsídios para construir suas fábricas e para produzir. Suas empresas prosperaram com o respaldo estatal, em um modelo onde o público assume os riscos, enquanto os lucros vão para o bolso de Musk e seus acionistas. Esse modelo é um exemplo do “capitalismo de compadrio”, onde empresas como as de Musk e Trump se sustentam com dinheiro público enquanto promovem um discurso de “livre mercado”.

De fato, Trump e Musk carregam uma herança de fraudes. Trump ampliou o seu império com práticas imobiliárias predatórias e falências estratégicas, deixando para trás comunidades empobrecidas e burlando a lei para se esquivar de dívidas, sem qualquer remorso aparente. Ainda, a Trump Organization, por exemplo, foi proibida de realizar novos negócios em Nova Iorque. Musk já foi punido por manipulação de mercado com a Tesla, práticas de vendas enganosas, propaganda enganosa e manipulação do mercado de criptomoedas.

Trump profere discursos racistas ao falar de “DNA ruim” de imigrantes e ao chamar mexicanos de “estupradores”, aprofundando divisões e propagando o ódio. Musk, por sua vez, promove contas racistas e neonazistas no X e fomenta o crescimento do discurso de ódio com suas declarações, acobertado pelo falso manto de “liberdade de expressão”, além de promover uma cultura na Tesla em que funcionários pretos já relataram ser chamados de “escravos” e mulheres foram assediadas.

Trump e Musk são mais do que empresários e, agora, escolhidos como comandantes de um império no seu ocaso; eles são símbolos da própria decadência de um sistema que explora, desumaniza e perpetua o racismo e a desigualdade. Ambos se apoiam em práticas que visam à ampliação de suas heranças a partir do Estado, para depois buscarem destruí-lo para reinarem com seus sócios. São aspirantes a ditadores de um regime totalitário onde eles são a lei às custas da vida, da dignidade e da justiça social.

Do liberalismo ao ultraliberalismo – o desespero diante do iceberg

Para os autores clássicos – por exemplo, o contratualista inglês John Locke e o pensador francês Alexis de Tocqueville – entre muitas diferenças, a democracia liberal seria uma estrutura que equilibraria a liberdade individual e o poder político, fundamentada no respeito aos direitos individuais e na proteção contra eventuais abusos do Estado. Tais entendimentos são perfeitamente compreensíveis quando levamos em conta que eles foram aristocratas que viveram nos séculos XVII e XIX, respectivamente; separados, em suas análises, pelos impactos da Revolução Francesa.

Suposto iceberg que afundou o Titanic, fotografado pelo chefe de serviço do navio SMS Prinz Adalbert /Crédito: Wikimedia Commons

Já os pensadores contemporâneos da teoria crítica – como o alemão Jürgen Habermas e a norte-americana Nancy Fraser – complexificam essa visão essencialista da democracia liberal, destacando os seus limites nos desafios associados à desigualdade econômica, à necessária proteção ao pluralismo cultural e à prevalência do neoliberalismo a partir dos anos 1980, com a consolidação do globalismo. No debate público do primeiro quarto desse século XXI até a grande crise do capital de 2007-8, parecia inquestionável a necessidade de uma democracia efetiva que não só deveria proteger as liberdades individuais, mas que também respondesse às demandas crescentes por justiça social e por uma real inclusão de bilhões de pessoas abandonadas pelo capitalismo.

No entanto, desde então, grandes agentes do capital – em seu inerente aprofundamento das contradições que gera – não retrocederam diante dos limites ou buscaram dirimir os efeitos desumanos do neoliberalismo. Valendo-se do ecossistema das redes sociais virtuais, fabricados pelas Big Tech, eles promoveram a alavancagem – um investimento sem lastro, mas aqui pode ser compreendido como um investimento naquilo que não possui lastro na realidade – do discurso de expoentes de um pensamento mítico do liberalismo, muito mais próximos do misticismo do que das bases de sua própria doutrina original: os ultraliberais.

O ultraliberalismo é a radicalização do neoliberalismo, o avanço amoral do capital sobre a esfera pública, a tomada explícita do Estado para os seus interesses. Ele é uma força que distorce o sentido de liberdade e autonomia – esvaziando o espaço público e a solidariedade social – ao impor políticas econômicas para si em detrimento de políticas sociais de redistribuição e acesso às riquezas. Ele criou uma cultura violenta de competição extrema e do individualismo exacerbado, na qual os riscos e as perdas são de todos, menos daqueles que a modelam. Aliás, seus agentes não correm risco algum, porque esse sempre é assumido pelo Estado e pelos contribuintes.

A política ultraliberal é o extremismo

Para imporem tamanha violência contra os interesses e demandas vitais de bilhões de pessoas, tais agentes e ideólogos precisam, necessariamente, de figuras públicas com aspirações messiânicas, místicas e totalitárias. Aqueles que encarnam o valor do individualismo, enquanto concentram o poder decisório que deveria ser regido pelas instituições democráticas.

Nesse sentido, a primeira vitória do extremismo econômico e político nas democracias liberais foi o deslocamento do debate público, a partir de um ataque simbólico massivo àquilo que era consensual, pactuado e sobre o qual não havia discussão alguma. Incluso o eixo do conhecimento acumulado pela espécie humana ao longo da sua história e da sua sobrevivência. Isso é o negacionismo.

No entanto, para deslocar o debate público não é necessário adentrá-lo com argumentos, teses, expressões artísticas ou raciocínios sofisticados. Não é preciso demonstrar nenhuma construção ou pensamento. Basta deslocar o meio onde ele acontece.

Logotipo do extinto programa argentino ‘CQC’, que foi transmitido no Brasil de 2008 a 2015, pela TV Bandeirantes. Ele e o programa da socialite Luciana Gimenez, na TV Gazeta, popularizaram a figura grotesca de Jair Bolsonaro.

No Brasil, por exemplo, posso afirmar que esse ataque inicial do ultraliberalismo partiu da deep web, através do finado astrólogo e maníaco Olavo de Carvalho, que formou gerações de “influencers” que jamais haviam aberto um livro na vida, mas que hoje possuem milhões de seguidores e doutrinaram outros milhares de “influencers”.

Olavo foi um farsante chulo travestido de ideólogo messiânico autoexilado na Virgínia, que atuou dos Estados Unidos – desde o início dos anos 2000 – para desestabilizar o país; como tantas outras figuras tropicais que sempre encontraram amparo, apoio e incentivo no império, sobretudo, na Flórida. Entre delírios e palavrões, o discurso do astrólogo era o de um ressentido para ressentidos, sobretudo jovens. Assim, sua influência foi financiada e amplificada no Brasil após a internalização – à força – da crise de 2007-8, em 2013. Naquele ano, as bases do neofascismo brasileiro já estavam semeadas há muito tempo e apenas frutificaram aos pés do ultraliberalismo, como um escudo materializado, em um primeiro momento, no Movimento Brasil Livre – MBL (sic).

Porém, ao ultraliberalismo não basta acusar de doutrinador um intelectual do porte de Paulo Freire, enquanto ele próprio doutrina crianças e jovens com o jogo Banco Imobiliário, filmes, desenhos ou compra alguns servidores de carreira pública, como juízes, promotores, policiais ou escolhe diretores de bancos centrais e ministros da fazenda. Agora, ele precisa adentrar no Estado com alguma legitimidade popular tanto para atuar sem amarras em seu benefício, quanto para controlar o monopólio da violência sem limites legais, contra a própria população. Nos legislativos, esse nunca foi um problema, já que vereadores, deputados e senadores podem, facilmente, ser fabricados pelo dinheiro. O próprio, nos casos dos grandes empresários e fazendeiros, ou o de outrem (não todos os políticos, evidentemente).

A questão é que chefes do executivo federal são figuras altamente expostas e ficam à mercê do escrutínio público na sociedade do espetáculo. Fabricá-los não basta mais, eles precisam ter uma liderança carismática e popular, como demonstraram Max Weber, na teoria, e José Serra, na prática.

Na simbiose entre o capital e o fascismo, a estratégia de promover figuras midiáticas às presidências mundo afora tornou-se muito mais fácil após a era Ronald Reagan – ator de Hollywood, republicano, 40º presidente dos Estados Unidos e pai político do neoliberalismo (a mãe foi a primeira ministra inglesa, Margareth Tatcher, conhecida como a “Dama de Ferro”).

Desde então, para ficarmos em alguns exemplos, tivemos o Terminator e republicano Arnold Schwarzenegger, como governador da Califórnia, o humorista Volodymyr Zelensky, eleito presidente da Ucrânia após um golpe promovido pelos Estados Unidos. Temos, ainda, um político brasileiro fascista, expulso das FFAA, com três décadas de carreira anônima no esgoto do Congresso, mas que foi alçado à popularidade pela mídia brasileira – ávida pelo grotesco e por audiência – para, depois de mais um golpe promovido pelos Estados Unidos, ser lapidado pelo capital nas redes sociais virtuais, como o novo presidente da República Federativa do Brasil.

O fato inexorável é que um perfil de líder carismático tornou-se cada vez mais essencial aos interesses do capital na sociedade de consumo e do espetáculo. Até ao ponto em que o líder não é mais, somente, um fantoche; ele é a personificação que coincide com o – outrora anônimo – interesse do ultraliberalismo. Esse é Donald Trump, que não seria presidente novamente sem Elon Musk. Momentaneamente faces da mesma moeda, sócios em um empreendimento, numa necroliderança movida à pulsão de morte, exatamente para que ambos possam continuar lucrando e dando vazão à megalomania. Porque, para tanto, agora precisam destruir a democracia, as esferas públicas e os interesses populares, custe o que custar – ‘CQC’, diria Javier Milei na TV argentina, onde se tornou popular.

A propósito, não seria um disparate intuirmos que Javier Milei é um balão de ensaio do ultraliberalismo a ser adotado por Trump. Algo que o binômio Paulo Guedes – Bolsonaro tentou, mas não conseguiu. Assim como o ditador Augusto Pinochet foi o vetor do neoliberalismo que testou a doutrina do choque da escola de Chicago, que posteriormente foi implementada por Reagan e Tatcher e imposta ao restante do mundo, com a queda do muro de Berlim.

O X do problema: a alienação no não-sentido

Assim, o debate público foi deslocado – de questões sobre como reverter e superar os limites e as contradições do neoliberalismo – por uma ruptura com o eixo estabilizador dos discursos em torno de pressupostos básicos da cultura ocidental. Nesse sentido, as novas linguagens hiperestimuladas pelos algoritmos das Big Tech (que impactaram diretamente as TVs) se tornam chave para compreendermos como deixamos de discutir a política, para ter que defendê-la – enquanto único meio possível de convivência – diante de tantos defensores de golpes militares e torturadores.

Mais, ao invés de as redes se transformarem em poderosos espaços para a população pressionar os rumos das políticas social, econômica e monetária, passamos a ter que defender que vacinas são um avanço da ciência e que a Terra não é plana. Isso revela como o grotesco e o absurdo foi instaurado enquanto uma estratégia – que envolve o uso tático de bombas semióticas e a disseminação massiva de mentiras – do ultraliberalismo. Quanto maior for o absurdo, a atrocidade, a mentira e a violência simbólica que tais dispositivos perpetram, maior o alcance e visibilidade eles terão no ecossistema das redes sociais virtuais.

Por isso, os agentes do binômio ultraliberalismo-fascismo se vendem como “antissistema”, porque eles são, antes de mais nada, meios daquilo que era o inaceitável à cultura e à mínima civilidade no capitalismo pré-crise. Habitando os dois polos do binômio que representam, de fato, eles são um concentrado de tudo o que anteriormente havia de podre no neoliberalismo – suas patologias socioeconômicas.

Tudo isso, claro, com o objetivo de controlar o destino material da massa de seres humanos que representa 99% da população mundial e detém somente 1/3 da riqueza.

Ampliando o caráter e o papel da alienação na obra de Karl Marx, o absurdo que norteia o debate público contemporâneo – e o não-sentido, em um segundo momento – extrapola a dimensão de uma desconexão do trabalhador com a sua própria natureza social, econômica e política. O alienado pelas redes sociais virtuais é praticamente imune àquilo que o filósofo prussiano da economia política chamou de consciência de classe. Porque tal alienação é, antes, um meio de reconexão com a sua natureza primitiva, bárbara. Ela opera como uma libertação do neurótico através de uma psicotização sociopolítica.

O não-sentido – pensado e posto em pratica racionalmente pelos agentes do ultraliberalismo – libertou à força o reprimido em largas fatias das massas. Especialmente naquele indivíduo desejante e ressentido pelas promessas não entregues pela sociedade de consumo e pela democracia liberal, cuja maior manifestação é o império dos Estados Unidos da América, anteparo maior e, até aqui, o organizador dos interesses do capital.

Naqueles em que essa nova forma de alienação é bem sucedida, nada resta de potencial criador da transformação, senão a sua perpetuação alienada na efeméride consumista. Seja ao trabalhador comum, ao desempregado, ao precarizado, ao terceirizado e aos uberizados sem garantia social alguma. Porque não lhes foi deixada margem à elaboração crítica, um mínimo espaço lógico para a mobilização da sua consciência coletiva; somente lhes é ofertada a dissipação da sua energia direcionada aos objetos especificamente apontados na cultura de massas. O consumo, o ódio, o gozo, a morte.

No entanto, diferentemente dos objetos de consumo, os objetos apontados ao ódio não são aqueles representados pelos agentes ultraliberais, mas aqueles tantos nos quais ainda reside alguma energia potencial, não esvaziada, não instrumentalizada por completo. Aqueles cada vez mais fundamentais que carregam um vir-a-ser força transformadora que engendra um verdadeiro nexo coletivo e popular.

Capitão Musk e o marujo Trump

Na primeira seção desse artigo, me detive por algum tempo refletindo se a intitularia Capitão Trump e o marujo Musk ou Capitão Musk e o marujo Trump. Até o momento em que realizei o óbvio: não importa, porque tratamos da representação de um só algo – um grande algo – que está em declínio, o qual é representado por ambos, isoladamente ou somados.

Imagem autoral do site Café com Pepino, gerada por ‘inteligência’ artificial.

Ainda assim, precisamos distinguir os agentes do ultraliberalismo que dele se beneficiam, daqueles que reproduzem inconscientemente o campo simbólico e os interesses dos primeiros. Os agentes, de fato, referem-se, predominantemente, ao espectro em torno do 1% da população mundial que detém 2/3 da riqueza. Já aqueles que reproduzem tais interesses são muitos e cada vez mais numerosos nas massas.

Porém, não há, entre o 99%, uma só ideologia organizada ou visão de mundo estruturante de um determinado grupo que seja mecanicamente aderente a tais interesses.

De tal forma, se podemos facilmente notar discursos instrumentalizados pelo ultraliberalismo na fonte do pensamento místico – portanto, aquela dos fundamentalistas religiosos, membros de seitas e afeitos às teorias da conspiração -, não poderíamos deixar de atestar que tal serventia também brota do cientificismo estéril que busca, em contrapartida, legitimar somente aquilo que é possível de ser visto em um microscópio.

Os exemplos de pares de opostos poderiam ser muitos, desde que compreendamos que eles não mais se opõem em uma disputa por sentidos, mas se complementam nessa nova etapa de um capitalismo hipertecnológico e extremo. Em uma sociedade imagética, a psicotização sociopolítica soergue da radicalização-do-discurso-oposto em função da sua forma, da sua performance e da sua estética, não do seu conteúdo.

No espaço virtual dos algoritmos das Big Tech, a atuação (performance) calcada na estridência e na contundência aumentam a audiência, independentemente de noções e valores associados a um sentido público, ético, moral ou sociopolítico. Precisamente, porque tais gritos de ‘certeza’ oferecem uma boia de sobrevivência simbólica e de gozo ao sujeito entrópico, cuja gênese propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Assim, rompendo a pedra fundamental da filosofia grega – o método socrático – reinam o absurdo e o não-sentido na ágora (ἀγορά) contemporânea. O absurdo diz da nossa defesa psíquica, enquanto o não-sentido diz do nosso desejo. Ambos, nos tempos atuais, propiciam a ascensão política de representantes do ultraliberalismo-fascismo com apoio popular, como podemos notar no Brasil, com a eleição de inúmeros influenciadores digitais – muito além do bolsonarismo – e, também, com os representantes máximos dessa estratégia do capital: Donald Trump e Elon Musk.


Anexo ilustrativo | Editorial da revista norte-americana, sobre o mercado financeiro, Bloomberg News, em 20 de fevereiro de 2013.

Por que os contribuintes deveriam dar 83 bilhões de dólares por ano aos grandes bancos?

Na televisão, em entrevistas e reuniões com investidores, executivos dos maiores bancos dos EUA – especialmente o CEO do JPMorgan Chase & Co., Jamie Dimon – defendem que o tamanho é uma vantagem competitiva. Eles argumentam que ser grande os ajuda a reduzir custos e a competir por clientes em escala internacional. Limitar esse tamanho, alertam, prejudicaria a lucratividade e enfraqueceria a posição do país nas finanças globais. E se disséssemos que, segundo nossos cálculos, os maiores bancos dos EUA não são realmente lucrativos? E se os bilhões de dólares que alegadamente geram para seus acionistas fossem quase totalmente um presente dos contribuintes americanos? Certo, é um conceito difícil de aceitar. Mas é crucial para entender por que os grandes bancos representam uma ameaça tão grande à economia global.

Comecemos com um pouco de contexto. Os bancos têm um forte incentivo para crescer e se tornar desajeitadamente grandes. Quanto maiores, mais desastrosa seria sua falência e mais certa a possibilidade de um resgate governamental em uma emergência. O resultado é um subsídio implícito: os bancos potencialmente mais perigosos conseguem empréstimos a taxas mais baixas, pois os credores os percebem como “grandes demais para falir”. Recentemente, economistas tentaram calcular exatamente quanto esse subsídio reduz os custos de financiamento dos grandes bancos. Em um esforço relativamente abrangente, dois pesquisadores – Kenichi Ueda, do Fundo Monetário Internacional, e Beatrice Weder di Mauro, da Universidade de Mainz – estimaram que essa redução seja de cerca de 0,8 ponto percentual. O desconto se aplica a todas as suas obrigações, incluindo títulos e depósitos de clientes.

Pequeno, mas Impactante

Pode parecer pouco, mas uma diferença de 0,8 ponto percentual faz uma enorme diferença. Multiplicada pelo total das obrigações dos 10 maiores bancos dos EUA em ativos, equivale a um subsídio dos contribuintes de 83 bilhões de dólares por ano. Para contextualizar, é como se o governo desse aos bancos cerca de 3 centavos de cada dólar arrecadado em impostos. Os cinco maiores bancos – JPMorgan, Bank of America Corp., Citigroup Inc., Wells Fargo & Co. e Goldman Sachs Group Inc. – representam 64 bilhões desse total, um valor aproximadamente igual aos seus lucros anuais típicos. Em outras palavras, os bancos que dominam o setor financeiro dos EUA – com quase 9 trilhões de dólares em ativos, mais da metade do tamanho da economia americana – apenas se equilibrariam sem esse “bem-estar corporativo”. Em grande parte, os lucros que relatam são essencialmente transferências dos contribuintes para seus acionistas.

Nem os executivos dos bancos nem os acionistas têm muitos incentivos para mudar essa situação. Pelo contrário, a indústria financeira gasta centenas de milhões de dólares em cada ciclo eleitoral com doações de campanha e lobby, grande parte destinado a manter o subsídio. O resultado é um setor financeiro inchado e ciclos recorrentes de crédito excessivo. Se nada for feito, os super-bancos podem eventualmente exigir resgates que excedam os recursos do governo. Imagine um colapso em que o Tesouro esteja impotente para agir como fez em 2008 e 2009.

Os reguladores podem mudar esse jogo reduzindo o subsídio. Uma opção é exigir que os bancos financiem suas atividades com mais capital dos acionistas, o que os tornaria menos propensos a precisar de resgates (sugerimos 1 dólar de capital para cada 5 dólares de ativos, muito mais do que a proporção de 1 para 33 exigida pelas novas regras globais). Outra ideia é chocar os credores, fazendo com que alguns deles assumam perdas quando os bancos enfrentarem problemas. Uma terceira opção é impedir que os bancos usem o subsídio para financiar operações especulativas, o objetivo da regra Volcker nos EUA e da separação bancária no Reino Unido.

Uma vez que os acionistas compreendam totalmente o quão mal os maiores bancos operam sem o apoio do governo, eles se veriam motivados a exigir melhorias. Isso poderia incluir desde a redução dos pacotes de pagamento até o desmembramento de gigantes financeiros em unidades mais gerenciáveis. A disciplina de mercado pode não agradar aos executivos, mas certamente seria uma melhora em relação a pagar bancos para nos colocar em perigo.

 

O alerta de Geoffrey Hinton – o “poderoso chefão da IA” – ao receber o Nobel de 2024 e as ciências humanas

Hoje, dia 08 de outubro de 2024, os físicos Geoffrey Hinton e John Hopfield receberam o Prêmio Nobel de Física de 2024. Eles foram homenageados por suas “descobertas fundamentais e invenções que permitiram o aprendizado de máquina por meio de redes neurais artificiais”.

A recente premiação de Geoffrey Hinton, professor da Universidade de Toronto, no Canadá, não apenas consagra o seu pioneirismo tecnológico, mas também expande uma janela de reflexão crítica que ressoa com algumas das mais profundas questões filosóficas e psicanalíticas da modernidade. Hinton já expressou em diversas oportunidades, de maneira enfática, os seus temores sobre o destino da humanidade diante do progresso descontrolado da inteligência artificial.

O discurso de Hinton, proferido logo após o anúncio de sua premiação, ecoa as preocupações que ele vem manifestando há tempos: a IA, especialmente em sua forma generativa, pode ultrapassar o controle humano, acarretando riscos imprevisíveis à humanidade.

Sua fala se entrelaça com a ideia heideggeriana de Gestell, apresentada em A Questão da Técnica (1954), onde Martin Heidegger argumenta que a técnica moderna nos captura em um modo de revelar o mundo que instrumentaliza a realidade e transforma tudo, incluindo o ser humano, em meros recursos. A IA, enquanto máquina de guerra contemporânea, com seu potencial para a criação de armas autônomas, reforça essa dimensão instrumentalizadora e alienante da tecnologia.

Tema que nos leva, ainda, ao contemporâneo e fundamental Aílton Krenak, quando, em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), nos alerta para a desconexão entre a humanidade e o próprio planeta em que vivemos. Uma perigosa alienação que também pode ser vista na relação entre o ser humano e as novas tecnologia, como propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Na data de hoje, Hinton destacou, em sua fala, que as máquinas baseadas em redes neurais estão começando a superar a capacidade intelectual humana em muitos aspectos. Essa constatação quando interpretada à luz do conceito de pulsão de morte (Todestrieb), introduzido por Freud em Além do Princípio do Prazer (1920), traz contornos sombrios ao futuro, se não agirmos agora. Se a pulsão de morte, para Freud, é o impulso do ser humano em direção à autodestruição, a IA, conforme descrita por Hinton, pode facilmente se tornar o meio através do qual a humanidade canaliza sua pulsão de aniquilação em larga escala, ao delegar a essas máquinas, cada vez mais presentes em nossas vidas, poderes que transcendem a capacidade de controle humano.

Guardo muitas reservas quanto à própria nomeação “inteligência artificial”, debate que reservo para um futuro artigo. Entretanto, assumindo tal “inteligência” como um paralelo ao psiquismo humano, uma conclusão tão imediata quanto simples nos salta aos olhos, e não é de hoje. Daquilo que muitos, inclusive Hinton, conhecido como “o poderoso chefão da IA”,  sugerem, podemos depreender que, ao contrário da mente humana, que é regulada pela interação entre o Eu e o Supereu, a IA opera sem as barreiras psíquicas, o que pode permitir que ela adote comportamentos completamente inesperados e saia do controle. Como em um Eu estilhaçado pela psicose, tomado de assalto pelo Id, onde há uma lógica interna muito bem amarrada àquela “inteligência”/psiquismo, enquanto que, para o Outro, de fora, não há nada, senão uma profunda desorganização fantasiosa e caótica.

Além disso, a crítica de Hinton sobre o uso militar da IA, como “robôs soldados”, levanta questões sobre a ética no desenvolvimento da tecnologia, tema abordado por Hannah Arendt em A Condição Humana (1958). Nesse texto, Arendt, aluna de Heidegger, discute o perigo da tecnicização da ação humana, quando o uso das máquinas para o domínio do Outro se torna uma extensão da violência política. Hinton, que rejeitou o financiamento do Pentágono nos anos 1980, encarnou esse dilema que Arendt identificou: a tecnologia, quando utilizada sem uma reflexão ética, pode se tornar um agente da tirania e da desumanização.

No entanto, há um aspecto ainda mais profundo em jogo aqui: a própria capacidade da IA de criar e manipular a linguagem. Algo que Hinton e muitos vemos como uma potencial ameaça. Os seres humanos, de criadores da IA, paulatinamente, já estamos sendo convertidos em criaturas formadas e “informadas” pela IA desregulada. O psicanalista Jacques Lacan, em seu Seminário XI (1964), explora a centralidade da linguagem no processo de estruturação do sujeito. Para Lacan, o sujeito é “falado” pelo Outro e o inconsciente é estruturado enquanto linguagem. No entanto, se sistemas de IA podem produzir e manipular a linguagem sem a dimensão do inconsciente humano e sem as barreiras psíquicas, o que restaria do sujeito humano falado pelo grande Outro-IA?

O risco é que a inteligência artificial, se não for fortemente regulada, suplante definitivamente o sujeito enquanto criador da linguagem, destruindo o espaço da subjetividade, expandindo os efeitos da sua verve “psicótica” à própria espécie humana. Não faltam exemplos recentes de como grupos organizados têm sido radicalizados facilmente nas dinâmicas das redes sociais virtuais, reproduzindo discursos e práticas delirantes, violentas e destrutivas.

Por fim, ao falar sobre o possível impacto da IA no mercado de trabalho e a inundação de informações falsas, Hinton nos coloca diante de uma nova forma de mal-estar, semelhante à crise cultural descrita por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930). A tecnologia, ao invés de nos libertar, pode se tornar um fator determinante de opressão psíquica e social, dissolvendo a distinção entre o real e o falso e corroendo as bases da verdade factual que sustentam as interações sociais. Assim como Freud via o avanço da civilização como fonte de novas formas de sofrimento, podemos afirmar que Hinton soma-se a tantos que veem a IA como um catalisador para novos tipos de desorientação e alienação humana.

O histórico discurso de Hinton não é apenas um alerta técnico do principal criador, estudioso da IA do mundo e prêmio Nobel, mas um profundo chamado à reflexão sobre a natureza e os limites da nossa própria humanidade. Ao transcendermos as fronteiras da ciência de laboratório e entrarmos no terreno da ética, da filosofia, da sociologia, da política e da psicanálise, entendemos que Hinton nos convida a uma introspecção sobre os destinos possíveis que aguardam uma civilização que, como Freud já advertia, pode estar criando suas próprias formas de destruição. Mais, sua fala é um chamado à ação pela conscientização massiva da população acerca dos riscos envolvidos no desenvolvimento das novas tecnologias, bem como à organização e pressão popular para que elas sejam fortemente reguladas pelos Estados e por organismos internacionais que não sucumbam aos poderosos lobbies do setor.