A psicanálise é uma ciência

Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.

No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.

Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:

– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;

– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;

– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.

Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.

Portrait of Sigmund Freud(Freud, Sigmund.) Sternberger, Marcel Edité par London, 1938, printed 2017, 1938

Portrait of Sigmund Freud. Sternberger, Marcel. Edité par London, 1938, printed 2017.

Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.

Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.

Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.

A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.

Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.

Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.

Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.

Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência

No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.

Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.

Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.

Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.

Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.

A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.

Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.

Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.

Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.

As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência

Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.

Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.

O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.

Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.

Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.

Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.

Por fim, a História

Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.

Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.

Referências:

ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.

DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.

MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.

ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.

PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.

ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.

Resenha | Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris

No seminal ensaio A Eficácia Simbólica, parte da obra Antropologia Estrutural (1958), Claude Lévi-Strauss traça um paralelo profundo entre o método freudiano e as práticas xamânicas. Ele argumenta que tanto o psicanalista quanto o xamã atuam como intermediários que utilizam símbolos e narrativas para reorganizar a experiência subjetiva do indivíduo, promovendo a cura. Lévi-Strauss revela que a eficácia de ambos os métodos reside no poder do símbolo em alterar a percepção da realidade interna, evidenciando que as estruturas mentais humanas compartilham semelhanças fundamentais, independentemente do contexto cultural.

Em sua obra Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris nos presenteia com uma reflexão profunda e ao mesmo tempo acessível sobre os labirintos do ofício terapêutico. Endereçada não só aos aspirantes, mas também aos curiosos e profissionais que buscam um olhar crítico sobre a sua prática, o livro se desenrola como uma coleção de cartas que, tal qual confidências entre amigos, nos envolvem em um diálogo íntimo e provocativo.

Afastando-se da tese de Lévi-Strauss, desde as primeiras páginas, Calligaris se empenha em desconstruir a figura quase mítica do terapeuta como um “curador mágico” dos males da alma. Em vez disso, ele nos convida a enxergar o terapeuta como alguém que caminha ao lado do paciente, sem pretensões de superioridade ou infalibilidade. O autor propõe uma postura mais humilde e autocrítica, onde o sucesso terapêutico não se mede pelo aplauso ou reconhecimento, mas pela capacidade de ser o “remédio” que, cumprida sua função, pode ser esquecido sem pesar. Essa ideia de distanciamento ideal entre terapeuta e paciente ecoa a ética psicanalítica, mas também desnuda as armadilhas emocionais e narcísicas que espreitam na profissão.

Um dos grandes méritos da obra é a crítica afiada ao culto à personalidade que permeia o mundo da psicanálise. Calligaris não poupa ironias ao descrever os “chefes de escola”, profissionais que, sedentos por admiração, acabam por transformar o vínculo terapêutico em uma teia de dependências. Em vez de libertar, perpetuam “curas” eternas, aprisionando “discípulos” e pacientes em uma forma de submissão psíquica. Suas palavras são como um espelho que reflete não só as vaidades alheias, mas também nos convida a examinar as nossas próprias, psicanalistas ou não.

O texto ilumina com precisão cirúrgica o perigo das idealizações mútuas. O amor de transferência, esse fenômeno tão fundamental quanto delicado no processo de cura, é analisado com rigor. Calligaris nos alerta sobre a linha tênue que separa a utilização ética desse amor para o crescimento do paciente e a sedução pelo papel idealizado que pode levar o terapeuta a um abismo ético. É um chamado à consciência dos dilemas profundos que habitam a prática clínica.

Outro ponto crucial é a visão de Calligaris sobre a formação do terapeuta. Ele desafia a ideia de que a academia seja o único caminho para a prática terapêutica, enfatizando a importância vital da experiência da análise pessoal e da prática clínica constante. Para ele, a formação é um processo infinito, uma jornada de autoanálise e questionamento contínuo das próprias motivações e métodos. Diplomas e títulos não encerram essa caminhada; são apenas marcos em um percurso muito mais extenso e profundo, que exige do psicanalista implicar-se continuamente em sua prática, em seus casos, ao ponto de revolucionar constantemente o seu próprio Eu no mundo, muito além de técnicas e métodos adotados em seus casos clínicos.

A crítica ao conservadorismo de certas instituições de formação ressoa forte nesse livro. Calligaris denuncia os institutos que, em nome da normatividade social e sexual, abafam a autenticidade e a singularidade dos futuros terapeutas. Ele sugere que uma “vida colorida” e experiências fora dos trilhos convencionais não só enriquecem a prática clínica, mas são essenciais para que o terapeuta possa realmente acolher a vastidão da experiência humana sem julgamento. É um apelo à abertura, à empatia sem preconceitos, à compreensão verdadeira do outro em sua totalidade.

Entretanto, a obra não está isenta de críticas. A informalidade com que alguns temas, por vezes fundamentais e estruturais à psicanálise – e, por isso, essenciais aos jovens terapeutas -, são tratados, pode dar a impressão de que esses são menores. Não são. O tom confessional e íntimo enquanto proposta, embora cativante, talvez deixe a desejar nos termos de uma necessária densidade teórica em certas passagens. Psicanalistas ou estudantes mais exigentes podem sentir falta de uma análise mais aprofundada de certos aspectos abordados.

Portanto, que reste nítido: esse livro, assim como os de Freud, Lacan ou quem quer que seja – precisamente no sentido daquilo que é defendido na própria obra – não deve ser lido como se fosse um manual. Afinal, somente Contardo Calligaris foi Contardo Calligaris.

Exatamente por isso, Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura essencial. Não apenas para aqueles que desejam trilhar o caminho da psicoterapia, mas também para os que, já inseridos no campo, buscam uma reflexão sincera sobre sua prática através do olhar de um psicanalista excepcional. Com sagacidade e senso crítico, Calligaris nos oferece um convite à introspecção profissional, à revisão constante dos papéis que terapeuta e paciente desempenham nessa dança delicada. O livro se revela como uma bússola ética e prática orientando o jovem terapeuta que, longe de almejar a perfeição, está disposto a abraçar as suas próprias fragilidades e limites.

Com uma linguagem acessível e sofisticada, Calligaris consegue o que poucos autores alcançam: fazer com que o leitor reflita sobre os dilemas mais profundos da prática terapêutica enquanto se deleita com narrativas pessoais e incisivas. Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura instigante, um convite a pensar a psicanálise e a psicoterapia além das fórmulas convencionais, mergulhando nas águas turvas e fascinantes da condição humana.

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Nascido em Milão, Itália, em 1948, Contardo Calligaris foi um psicanalista, escritor e dramaturgo que deixou uma importante marca no cenário cultural brasileiro.

Formou-se em epistemologia genética e letras na Universidade de Genebra, onde foi aluno, entre outros, do psicólogo suíço Jean Piaget. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, em Marseille, aprofundou os seus conhecimentos em psicanálise em Paris, onde teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. Foi professor de Estudos Culturais na New School, de Nova York, e professor convidado de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Essa formação multidisciplinar e internacional lhe conferiu uma perspectiva única, permitindo-lhe transitar com fluidez entre a psicanálise, a literatura e a crítica social.

Radicado no Brasil desde os anos 1980, tornou-se uma voz influente ao escrever colunas semanais para a Folha de S.Paulo, onde abordava temas contemporâneos com sensibilidade e acuidade intelectual. Publicou diversos livros, incluindo romances e uma peça teatral. Ele também criou a série de televisão intitulada Psi, exibida na HBO.

Calligaris faleceu na cidade de São Paulo, em 30 de março de 2021, aos 72 anos.

Copa do Mundo de 2022, expressão de um tempo na morte do pai

Para escrever sobre uma copa, antes, é necessário saber organizar uma cozinha. Se na primeira há a festa, o circo necessário, na segunda se faz o pão, vital.

Já passou do tempo em que todos deveriam poder desfrutar de um belo banquete (ouro em pó não mata a fome, só a carne), e, também, aprenderem a limpar a própria louça. Isso serve, inclusive, aos pretensos emissários de Deus, Alá, Nhamandu, Olorum, Jeová, YHWH, GADU, do ateísmo, do identitarismo e do proto niilismo de consumo nas redes sociais virtuais. Seja em Doha, Buenos Aires, Paris ou Brasília.

Uma Copa do Mundo só ocorre a cada quatro anos. De tal forma que, se tivermos uma boa sorte e hábitos saudáveis, teremos a oportunidade de assistir conscientemente, e somente talvez, umas vinte Copas ao longo da vida. Dependendo da sua origem e idade, caro leitor, isso pode ser um dado insignificante. Se você tiver nascido no Brasil, em algum momento você realizará a importância dessa conta, ainda que para tentar desprezá-la. Como muitos tentam fazer com o Natal no mundo ocidental, ao longo da vida compreendemos que existem rituais muito grandes para serem ignorados somente pelo nosso imperativo desejo.

Sinto informá-lo, mas nossa cultura nos constitui à revelia. Entretanto, tenho o prazer de noticiá-lo, também, que ela é viva e está sempre em transformação: o limite da mudança é o seu.

Longe de ser o país do futebol, nos termos da adoração irracional própria ao esporte, a Copa do Mundo para o brasileiro é um componente cultural fundamental de uma fantasia coletiva de nação que se conformou no pós Segunda Guerra Mundial quando éramos uma sociedade predominantemente rural. Os títulos de 1958, 1962 e 1970 dizem muito de um tempo, uma conjuntura, um contexto e uma história que hoje se perde em um revisionismo do espetáculo que entorpece análises, discursos e catalisa afetos. Em 1950 a população rural brasileira era de 33.161.506 hab. e correspondia a 63,84% da população total. Vinte anos depois os habitantes das zonas rurais eram 41.037.586, porém, correspondiam a 44% da população total. Como remeter uma experiência de Brasil contemporânea, seja ela qual for, àquela da metade do século passado?

Tomados pelos impactos de uma revolução tecnológica, nascidos sob tais condições, jovens reproduzem, nos mais diversos campos – e o esporte é um deles – um revisionismo que almeja a uma falsa purificação dos presentes, que escrutinam o passado com uma lupa chamada Google. Acontece que no detalhe do aumento, se perde a noção de um contexto, uma ideia de todo, de um sentimento comum a muitos. Entre cancelamentos e julgamentos com regras anacrônicas, como se fosse possível dar cartão vermelho hoje em um jogo de 1958, quando as regras eram outras, e nem cartão havia. A noção de controle pela calculabilidade de tudo e pelo individualismo segregacionista nas telas dá a tônica do jogo no início desse milênio. Na contemporaneidade, enquanto a reificação e o fetichismo da mercadoria imperam sobre o manto da falsa liberdade que o consumismo oferta àqueles que podem, efemérides dessa natureza, uma Copa do Mundo no tempo e no espaço, nos colocam frente à inevitabilidade da morte de forma desconcertante.

Será no dia 18 de dezembro de 2022 que a expressão do novo tomará o corpo e a alma, a churrasqueira e a pia, a copa e a cozinha, o pão e o circo de um mundo que se apresenta enquanto século XXI, no terceiro milênio do calendário gregoriano.

Porque em campo, para além das sagradas escrituras das hashtags, sob os olhares vivos de bilhões de seres humanos, desfilarão mais de duas dezenas de homens encarnados, naquele instante, enquanto artífices de um espetáculo que extrapola a razão, entre pertencimento e desenraizamento no globalismo, nos afetos de uma irrefreável estética globalizada.

Argentina x França. Uma nova tricampeã mundial de futebol nascerá no próximo domingo.

No jogo mais importante, visto e desejado, do esporte mais popular do planeta, as duas horas que separarão o pontapé inicial da entrega da taça da Copa do Mundo de 2022 correrão enquanto síntese de uma revolução sociocultural global em curso nas duas últimas décadas. Muitas camadas simbólicas, caras ao passado, ao presente e ao futuro da humanidade, serão adensadas nesse curto espaço de tempo, após a morte de 6 mil trabalhadores nas obras que ergueram um panteão provisório para as “divindades” que ora habitam as milionárias arquibancadas da FIFA no Catar, e, consequentemente, o Instagram.

Já na arena do coliseu moderno, o choque de culturas se revelará onde, para ser herói, é preciso esforço, suor, risco, trabalho e tragédia.

Poderia Lionel Andrés Messi Cuccittini, nascido na periferia de Rosário – que travou o mais longevo duelo de gênios de origem pobre do milênio, com Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, nascido em Funchal, na Ilha da Madeira -, em sua despedida, ser alçado, de fato e de direito, à dupla de ataque de todos os tempos com Edson Arantes do Nascimento, o Pelé?

Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa se Diego Armando Maradona Franco estivesse vivo, como nas últimas quatro Copas que ele disputou sob sua sombra? Como seria possível ascender ao céu em vida e diante dos fiéis sob a sombra de Dios?

Num truque do destino, Maradona, após ser técnico de Messi na Copa de 2010, morreu em 25 de novembro de 2020, causando uma forte comoção mundial. Ídolo e fã declarados, um do outro, passado e presente. Pai e filho.

Poderia Messi, em seu último tango, dançar leve e genial se não tivesse rompido a resistência dos próprios torcedores argentinos, quando venceu o seu primeiro título pela seleção argentina em 2021, aos 34 anos? Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa do Mundo, se o único título pelo seu país não tivesse vindo após 28 anos de jejum da albiceleste, contra o Brasil, no Maracanã?

Rivalidade entre irmãos na morte do pai.

Brasil, cinco vezes vencedor da Copa, três delas com Pelé – hospitalizado nesse instante, refém de uma metástase – o maior jogador de futebol da história. Ou seria, somente, do século XX? Alguns amigos portenhos diriam que o maior de todos ainda é Maradona. Mas por quem são esses hoje, às vésperas da final, na copa, na Argentina de Messi?

Ou seria a final da Copa “de Maradona” do Messi? Será, simplesmente, a Copa de Messi?

Poderia o jovem francês Kylian Sanmi Mbappé Lottin, filho de uma argelina e de um camaronês, fã de Cristiano Ronaldo, levantar a sua segunda taça do mundo, aos 23 anos? Justamente na mesma competição em que houve a melancólica despedida do ídolo português, no banco de reservas, sem jamais ter vencido o título máximo pelo seu país? Será, justamente, na morte do pai Cristiano que Mbappé saltará duas gerações e herdará o trono no novo século? Justamente com dois anos a mais que Pelé, quando este ganhou o seu bicampeonato no Chile, em 1962? Na cor da pele e na força ancestral da África que luta e sobrevive na periferia de Paris, de uma seleção marroquina histórica que retomou, nesse torneio, a península Ibérica?

O que diria Pelé aos racistas que, no século XXI, ainda abundam na Argentina, na França e no Brasil? Mas ele já disse com a bola nos pés, em 1.283 gols em 1.363 partidas, em um tempo sem fala a um descendente de escravizados, nascido em 23 de outubro de 1940, em Três Corações, Minas Gerais. Um tempo também, insuportavelmente mais machista, patriarcal.

Se mesmo o rei deve reverenciar a Marta, e vice-versa, qual jovem militante antirracista de Instagram ousará dar aulas a Pelé? Ou, qual feminista ou LBGTQIA+ de TikTok dará aulas à rainha Marta? E mesmo a realeza das Copas e seleções deve aprender com as cozinhas. Afinal, o que seriam de atacantes e meias sem zagueiros e goleiros no futebol e na vida?

O que ocorreria na copa se não houvesse louça limpa para desfilarem bifes salpicados de ouro em pó na mesa daqueles que representam milhões de miseráveis com fome?

28º Congresso Brasileiro de Psicanálise – FEBRAPSI

Depois de um longo período, o Café com Pepino volta ao ar. Foram quase dois anos de intenso trabalho fora das redes virtuais. Em meados de 2020 desenvolvemos um projeto de atendimento social, com o apoio de valorosos colegas, que encaminhou e acolheu, ao longo da pandemia, mais de 200 pessoas em situação de vulnerabilidade. A maioria dos acolhidos continua o seu percurso psicoterapêutico.

Voltamos nesse momento – ainda, e cada vez mais conturbado – para transmitir algumas impressões sobre o aguardado 28º Congresso Brasileiro de Psicanálise (FEBRAPSI), o primeiro após o início da pandemia. Planejado desde 2020, o Congresso é realizado a cada dois anos, desde 1969. Que venha o novo.

 

 

 

O outro, o inferno palaciano, o canalha e o drama brasileiro

O outro

O outro, essa pessoa, categoria analítica ou entidade fenomenológica, está sempre por aí. Na verdade, por aí, por aqui, por ali. Eu sou o seu outro, aqui. Você, caro leitor, é o meu outro neste momento em que escrevo.

Porém, convenhamos, o mundo é muito grande para que tenhamos somente um ao outro. Cada um de nós tem muitos outros outros.

Sim, porque o outro está presente mesmo quando estamos sozinhos. Ele é um inquilino permanente que nos habita. Nesta relação nada mercantil o pagamento vem em diversas moedas. Por vezes ele nos persegue, censura, entristece, fustiga, noutras ele nos acolhe, alegra, acalma, liberta, inspira. Dependendo do outro, recebemos um pouco de cada, em proporções variáveis.

O fato é que o outro sempre nos estimula. Quando este estímulo não vem do outro no mundo exterior, vem do outro no mundo interior.

Do ponto de vista das ciências sociais o outro é a instância fundamental de constituição do sujeito, porque somente a partir do outro ele pode se reconhecer por diferenciação, erigindo a sua subjetividade.

Para a psicanálise freudiana, na vida adulta o outro é mais um dos múltiplos objetos do mundo exterior no qual investimos nossa libido. Porém, antes, ele nos constitui desde o primeiro momento, nas relações parentais. Destino inalcançável das nossas fantasias, mas também das identificações, o outro é a última instância da realização e da interdição dos nossos desejos.

Por isso, buscamos a repetição de beijos e abraços dados e não escapamos às fantasias com aqueles nunca dados.

Há, também, o outro dentro de nós com quem repetimos discussões e ensaiamos arrependimentos pelo dito e pelo não dito.

Ah, se arrependimento matasse, diria o outro. Não mata, não. Nos constitui.

Mas há, aqui, duas importantes distinções: sentir arrependimento é diferente de sentir culpa. Esta última, por sua vez, difere-se também de responsabilidade. Voltaremos a estas diferenças mais a frente.

 

O inferno palaciano

Napoléon Ier à Fontainebleau le 31 mars 1814. Óleo sobre tela, 138 x 180 cm. Paul Delaroche,1840.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre não foi escrita em nenhum dos seus tantos livros, ensaios ou em uma entrevista. Ela veio a público no Théâtre du Vieux-Colombier, em maio de 1944, na première da peça Huis Clos (De portas fechadas), pela boca de Garcin, personagem criada pelo filósofo francês.

A trama, em ato único, desenrola-se a partir de três desconhecidos entre si, Inès, Estelle, Garcin, e O Garçom (ou O Criado na tradução brasileira). Este último, representante do Diabo, faz as vias de apresentar às demais personagens a sua nova morada eterna: o inferno.

Diferentemente daquilo que imaginamos, o cenário assemelha-se pouco ao inferno bíblico, exceções feitas ao calor escaldante e à iluminação total do ambiente. Não há torturadores, grelhas, estacas, castigos físicos. Antes, é um salão imperial, ao estilo do regime bonapartista, com móveis, uma lareira e uma estátua de bronze. Não há janelas, espelhos, nem nada que seja frágil.

A força e a solidez napoleônica são invocadas no cenário, na atemporalidade da eternidade onde não se dorme, nem se pisca, mas também no enfrentamento do qual não se escapa, dos erros cometidos, da má-fé que não pode mais ser mascarada, mas que deve ser paga.

Ali, sem espelhos, cada qual só pode ver a si mesmo no reflexo no olho do outro. Onde, para além do reflexo, encontra o julgamento deste outro, o carrasco que reflete a sua própria consciência da má-fé, a sua culpa.

As traduções do título da peça, em português, Entre quatro paredes, e em inglês, No exit, complementam o amplo sentido da reflexão de Sartre.

Há uma clausura intransponível na existência, jamais saímos de nós mesmos. Se somos vocacionados para a liberdade, ela não vem sem escolhas e à revelia do olhar dos outros.

A liberdade, para Sartre, certamente inspirado por Freud, é um constante vir-a-ser que só pode ser experimentado pela autorresponsabilização perante os nossos desejos, pela atitude de assumirmos as ações tomadas e as escolhas feitas que, sempre, envolvem o outro.

Caso contrário, quando nos desresponsabilizamos na busca pela satisfação dos nossos desejos, padecemos no inferno, fadados a nos reconhecermos eternamente e somente no olhar do outro. Nos enxergando no carrasco que nos julga, tortura e do qual não conseguimos escapar. No carrasco que nos descobre, desvenda, desnuda e revela aquilo que sempre escondemos: a nossa covardia diante da liberdade.

Esse olhar infernal do outro somos nós mesmos, quando somos obrigados a reencontrar, como culpa, a responsabilidade da qual acreditávamos estar desviando, deliberadamente, por má-fé.

Neste sentido, esta peça, encenada pela primeira vez quando a II Guerra Mundial caminhava para o seu desfecho, é uma alegoria que marca o início da transição pela qual passaria o próprio filósofo que já havia escrito o colossal O ser e o nada, considerada por muitos a sua obra máxima.

A partir dali, paulatinamente, para Sartre o conceito de liberdade expandiria de um imperativo ontológico para um destino do ser social e político.

Sua atuação política transbordou da sua filosofia, das linhas herméticas do existencialismo para as ruas de Paris, e o transformou em uma das referências da geração que marcou a história francesa e ocidental com as manifestações de maio de 1968.

 

O canalha

Samuel Johnson, um intelectual britânico do século XVIII disse que o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Sendo um conservador monarquista e anglicano devoto, devemos supor que ele sabia bem do que estava falando.

Obviamente, ele não se dirigiu aos patriotas, mas aos canalhas. Não são todos os patriotas que são canalhas. Mas o último reduto possível a um canalha, para Johnson, é o patriotismo ou o nacionalismo.

É com esta macroidentidade última que pode transitar aquele cuja canalhice já foi desmascarada em todos os outros enredos e esferas da vida social. Poderíamos, também, expandir a noção de patriotismo para a de moralismo.

O canalha, enquanto sujeito vil e grosseiro é um narcisista contumaz porque sabe que é insignificante para a maioria das pessoas. Assim, só lhe cabe destinar grande parte do seu amor a si próprio.

Não há problema no narcisismo, uma vez que todos necessitamos dele como um recurso permanente de sobrevivência. Tampouco, nada decorre de grave em excedermos eventualmente no nosso narcisismo.

Capa da 1ª edição de O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1943.

Ainda, mesmo alguém excessivamente narcisista na busca pela satisfação dos seus desejos pode não ser um canalha, uma vez que estas são dinâmicas psíquicas predominantemente inconscientes.

O que define um canalha é que além de ser excessivamente narcisista ele tem consciência e age de má-fé. Prejudicar o outro, para ele, é uma escolha. Mais, uma escolha trivial e recorrente.

Ao canalha há um certo espaço social, onde ele sempre encontrará amantes e cúmplices conscientes ou inconscientes das suas canalhices, contudo, ele não hesitará em prejudicar estas mesmas pessoas para satisfazer os seus desejos e empreender as suas fantasias.

O que geralmente decorre das suas canalhices é que ele não vai longe nas múltiplas realidades sociais, uma vez que poucas serão as redes sociais parciais que o aturarão por muito tempo.

Alguns poderiam apontar nestas características os traços da psicopatia, o que seria correto, não fosse o fato de que o psicopata domina plenamente, no mais das vezes com elegância, o trânsito das normas.

Ao psicopata, o exercício da empatia tende a ter uma baixa modulação, fazendo com que ele precise se apegar, dominar e transitar com extrema perícia pela normatividade para satisfazer os seus desejos. (Um adendo necessário: aqui não tratamos do serial killer estereotipado dos filmes. Algo que, inclusive, faz muito mal à compreensão coletiva da psicopatia).

Já ao canalha o que não costuma faltar é empatia, paixão. Ele é regredido como uma criança que busca o perdão da mãe, no pior sentido possível, porque ele tem a força e as armas de um adulto.

Ele pode até circular com certa perícia nas relações, mas sempre, invariavelmente, cairá em suas próprias tramas. Porque lhe falta uma dose de compreensão sobre os próprios afetos e uma certa inteligência social, uma vez que é tomado pelas suas fantasias e delírios de grandeza.

Assim, o canalha aproxima-se mais do psicótico, do paranoico, porque orienta o mundo ao seu redor a partir da sua culpa, do seu inferno particular.

Portanto, ao contrário do que o senso comum tende a acreditar, as esferas pública, midiática e de políticas institucionais não são um ambiente propício ao canalha. Estes não são espaços que favorecem a sua camuflagem, por serem posições de muita exposição e escrutínio público onde é necessária a interlocução permanente com muitos outros.

Ao menos era assim, quando compartilhava-se socialmente a noção de que canalhas não merecem ser os depositários de desejos, esperanças e anseios coletivos.

 

O drama brasileiro

Voltamos às distinções entre o responsável, o arrependido e o culpado.

Enquanto o responsável, movido pelos seus desejos inconscientes, orienta-se pela boa-fé e pela ética, o arrependido é o responsável que fez uma escolha de boa-fé, mas percebeu que foi a escolha errada.

Já o culpado é aquele que agiu deliberadamente, conscientemente, de má-fé. Quando ele atua reencenando a sua culpa cotidianamente em prejuízo dos outros, o chamamos de canalha. No entanto, se este prejuízo, dano ou dor causada no outro for a própria meta dos seus desejos, o chamamos de sádico.

Como falta capacidade e coragem de se responsabilizar e, nos termos de Sartre, se comprometer com a sua própria liberdade, ao canalha encerrado em seu palácio bonapartista só restam duas saídas falsas para tentar fugir do seu inferno particular: acreditar que é Napoleão Bonaparte ou exterminar o olhar do outro.

A saída napoleônica ocorre após o estágio da paranoia, quando esta ergue uma defesa mitomaníaca que, não raramente, envolve espadas, armas de grosso calibre e cavalos. Assim, batendo bumbo, o canalha tenta diluir o seu inferno particular no mundo exterior, para compensar a sua pequenez. Desta forma, ele consegue um alívio pessoal ao angariar provisoriamente seguidores que se identificam com ele, mas que logo se devorarão uns aos outros neste inferno expandido.

A outra falsa saída do seu inferno particular é, simplesmente, tentar aniquilar o mundo exterior, inclusos os adeptos que não o seguirem cegamente em uma identificação total. Isso se faz, como apontou Johnson, travestido de nacionalista, último espaço social e simbólico possível para tentar camuflar a sua canalhice, enquanto tenta silenciar e exterminar o olhar do outro. Porque ali, no outro, o canalha vê refletida a sua culpa, a sua má-fé, os seus erros e a sua insignificância.

Acontece que falsos napoleões e verdadeiros canalhas não costumavam chegar às altas esferas do poder desde o fim da II Guerra Mundial. Em momentos de aparente continuidade histórica, canalhas e sádicos costumam ser contidos naturalmente nas linhas mais baixas das instituições, exatamente porque não hesitam em colocar populações, a coisa pública e o próprio país em risco. Seja no exército, nos partidos políticos, no congresso, na igreja ou no aparato judiciário.

Quando ocorre um processo de anomia, geralmente provocado por duros embates geopolíticos após graves crises econômicas, forças deste submundo das instituições começam a emergir com os seus bumbos, estimulados por poderosos interesses organizados interna e externamente. Nesta empreitada, como antes, esta ascensão conta com muitos outros cúmplices poderosos, agora arrependidos ou culpados.

Este processo, obviamente, gera uma resposta que tende a se organizar também através das instituições e na sociedade civil.

São momentos em que os infernos particulares e as fantasias transbordaram em violência, paranoia e, no século XXI, em um negacionismo, princípio de psicose coletiva instigada por mentiras pulverizadas e a destituição de referenciais e das verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas.

Eis o retorno do reprimido, agora nas versões WhatsApp e YouTube. Eis uma sociedade em que massas se reconheceram pela via do consumismo, ao invés de terem um Estado de bem-estar social. Eis uma pandemia.

Eis o drama brasileiro. Impasse do qual só sairemos quando nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, orientados pela boa-fé e por princípios éticos, quando reconhecermos no olhar dos outros o nosso próprio desejo de liberdade.

O arrependimento edifica, a culpa destrói.