Raízes da Psicanálise | Sigmund Schlomo Freud

Sigmund Freud. Foto de Max Halberstadt, 1932. Acervo Freud Museum London.

Sigmund Freud. Foto de Max Halberstadt, 1932. Acervo Freud Museum London.

Wo Es war, soll Ich werden.
“Onde estava o Isso, deve advir o Eu.”
Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1933) (Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise)

Die Traumdeutung ist die Via Regia zur Kenntnis des Unbewussten im Seelenleben.
(“A Interpretação dos Sonhos é a via régia para o conhecimento do inconsciente na vida psíquica.”)
Die Traumdeutung (1899) (A Interpretação dos Sonhos)

Infância, formação e a semente de uma revolução psíquica

Sigmund Schlomo Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg, na Morávia — então parte do Império Austro-Húngaro, hoje Příbor, na República Tcheca. Muito cedo, sua família mudou-se para Viena, onde ele passaria a maior parte da vida. Formou-se em Medicina pela Universidade de Viena e, atraído pelas peculiaridades da mente humana, voltou-se ao estudo de distúrbios nervosos e à pesquisa em neurologia.

A colaboração com Josef Breuer foi crucial para sua carreira. Juntos, publicaram Studien über Hysterie (1895) (Estudos sobre a histeria), marco inicial do que se tornaria a psicanálise. A experiência com pacientes histéricas e o método catártico, baseado na hipnose, revelaram a Freud a importância de fatores inconscientes na gênese de sintomas psíquicos. Esse vislumbre do “mundo subterrâneo” da mente tornou-se o ponto de partida de suas reflexões sobre desejo, conflito e repressão.

A via régia para o Inconsciente e a primeira grande virada

Publicada oficialmente em 1900 (embora impressa em 1899), a obra Die Traumdeutung (A Interpretação dos Sonhos) desenvolve a tese de que o sonho constitui a ‘via régia para o inconsciente’, mostrando como os conteúdos reprimidos encontram expressão simbólica no estado onírico. Nela, ele argumenta que os sonhos são realizações de desejos inconscientes e passam por um complexo processo de elaboração (condensação, deslocamento, representação) até surgirem na consciência em forma de cena onírica. Essa descoberta foi essencial para mapear como conteúdos reprimidos encontram vias de expressão simbólica.

Simultaneamente, Freud delineou o que mais tarde chamou de “modelo topográfico” da mente, composta por consciente, pré-consciente e inconsciente. Essa visão, embora inovadora, era apenas o começo. Com o passar do tempo, ele sentiu necessidade de reformular suas teses para abarcar de modo mais complexo a luta interna entre os impulsos e as forças repressoras.

Pulsões, narcisismo e a resposta às provocações de Jung

Freud inicialmente enfatizava a libido como a força por trás das neuroses — ideia que gerou um atrito com Carl Gustav Jung, que, entre outras divergências, apontava que a teoria freudiana não contemplava adequadamente as psicoses. Para Freud, a psicose teria uma dinâmica diferente da neurose, mas o confronto com Jung o levou a aprofundar o tema do investimento libidinal no próprio Eu, resultando em Zur Einführung des Narzißmus (1914) (Introdução ao narcisismo).

Nessa obra, ele introduz o conceito de narcisismo como a etapa em que o ego se torna objeto de sua própria libido. Era a resposta teórica a casos em que o interesse libidinal se retrai do mundo externo (como na esquizofrenia), voltando-se para si mesmo. Essa reviravolta teórica foi fundamental, pois mostrou que a libido pode assumir diversas modalidades de investimento, afetando tanto as relações objetais quanto a relação consigo mesmo.

Da topografia ao modelo estrutural: Isso, Eu e Supereu

Freud logo percebeu que a simples divisão entre consciente, pré-consciente e inconsciente não captava toda a complexidade psíquica. Em Das Ich und das Es (1923) (O Eu e o Isso), introduziu o modelo estrutural, composto pelas instâncias:

  • Isso: o reservatório pulsional primitivo, regido pelo princípio do prazer e alheio à lógica e à moral.
  • Eu: mediador entre o Isso, a realidade externa e o Supereu, buscando satisfação sem ignorar restrições reais.
  • Supereu: herdeiro do complexo de Édipo, interioriza normas parentais e culturais; funciona como consciência moral, impondo culpas e ideais.

Essa mudança conceitual não foi apenas uma questão de palavras novas, mas refletia a evolução de Freud diante da miríade de fenômenos psíquicos que encontrava na clínica e em debates acalorados com colegas. O Eu, antes interpretado quase como sinônimo de consciência, passou a ser analisado como a instância que negocia e transforma as pulsões brutas do Isso, enquanto o Supereu pode agir com severidade punitiva ou idealizadora.

Desenvolvimento psicossexual e a importância da infância

Segundo Freud, a história infantil deixa marcas indeléveis na formação psíquica, sobretudo devido à forma como a libido se desloca por diferentes zonas erógenas ao longo do crescimento. No ensaio Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie (1905) (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Companhia das Letras, 2017), descreveu fases que vão da fase oral, passando pela fase anal e fase fálica, até a latência e, por fim, a fase genital. O controverso Complexo de Édipo ganha destaque na fase fálica, momento em que a criança se vê enredada em desejos e rivalidades em relação aos pais, definindo muito de sua futura vida afetiva.

Essas formulações chocaram a sociedade de então, por explicitar a existência de uma sexualidade infantil e pelo papel que atribuíam a fantasias e desejos até então tidos como moralmente impensáveis.

Livre associação, sonhos e mecanismos de defesa

Uma das maiores inovações de Freud foi abandonar o uso sistemático da hipnose, adotando a livre associação como técnica principal de investigação do inconsciente. Nela, o paciente é incentivado a dizer tudo o que lhe ocorre, sem censura, permitindo que conteúdos reprimidos aflorem.

Para além disso, Freud catalogou vários mecanismos de defesa, com ênfase na repressão, mas também incluindo a negação, a projeção, a formação reativa e outros recursos psíquicos pelos quais o Eu tenta reduzir o desconforto oriundo dos conflitos entre impulsos, moral e realidade.

Rupturas, expansões e o legado de Freud

O desenvolvimento do pensamento freudiano não foi linear; houve idas e vindas, revisões e rupturas. As relações conturbadas com Jung e Adler ilustram um período de efervescência teórica, em que cada divergência motivava Freud a refinar conceitos ou propor novos.

Mesmo com disputas e cisões, Freud solidificou uma disciplina que se expandiu para além do consultório, influenciando artes, literatura, ciências sociais e até mesmo o vocabulário popular. Hoje, expressões como “recalque”, “inconsciente” e “ato falho” tornaram-se corriqueiras, mas devem-se à ousadia das formulações freudianas.

O desfecho: do exílio à morte em Londres

Nos anos 1930, a ascensão do nazismo transformou radicalmente o cenário europeu. Freud, de origem judaica, passou a sofrer ameaças crescentes, e suas obras foram censuradas e queimadas pelos nazistas. Em 1938, após a anexação da Áustria pela Alemanha, Freud e sua família foram obrigados a se exilar em Londres, graças a uma extensa rede de apoio internacional.

Já acometido há anos por um câncer na mandíbula, consequência de seu vício em charutos, Freud suportou diversas cirurgias e complicações de saúde. Em setembro de 1939, pediu que seu médico administrasse morfina para aliviar suas dores insuportáveis; faleceu em 23 de setembro de 1939, em Londres, aos 83 anos, encerrando sua jornada, mas deixando uma herança intelectual que seguiria influenciando não apenas a psicologia, mas toda a cultura ocidental e o mundo.

<- Félix Guattari

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Bibliografia

  • Studien über Hysterie (1895), com Josef Breuer (Estudos sobre a histeria, Companhia das Letras, 2016)
  • Die Traumdeutung (1899) (A Interpretação dos Sonhos, Companhia das Letras, 2019)
  • Zur Psychopathologie des Alltagslebens (1901) (Psicopatologia da Vida Cotidiana, Companhia das Letras, 2021)
  • Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie (1905) (Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Companhia das Letras, 2017)
  • Der Witz und seine Beziehung zum Unbewußten (1905) (O Chiste e sua Relação com o Inconsciente, Companhia das Letras, 2021)
  • Fragmente einer Hysterie-Analyse (Fall Dora) (1905) (Fragmentos da Análise de uma Histeria – Caso Dora, Companhia das Letras, 2021)
  • Analyse der Phobie eines fünfjährigen Knaben (Der Kleine Hans) (1909) (Análise da Fobia de um Menino de Cinco Anos – O Pequeno Hans, Companhia das Letras, 2021)
  • Bemerkungen über einen Fall von Zwangsneurose (Der Rattenmann) (1909) (Observações sobre um Caso de Neurose Obsessiva – O Homem dos Ratos, Companhia das Letras, 2022)
  • Über Psychoanalyse. Fünf Vorlesungen (1910) (Cinco Lições de Psicanálise, Companhia das Letras, 2022)
  • Leonardo da Vinci und eine Erinnerung an seine Kindheit (1910) (Leonardo da Vinci e uma Lembrança de sua Infância, Companhia das Letras, 2020)
  • Totem und Tabu (1913) (Totem e Tabu, Companhia das Letras, 2022)
  • Zur Einführung des Narzißmus (1914) (Introdução do narcisismo, Companhia das Letras, 2016)
  • Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1916–1917) (Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Companhia das Letras, 2019)
  • Jenseits des Lustprinzips (1920) (Além do Princípio do Prazer, Companhia das Letras, 2020)
  • Massenpsychologie und Ich-Analyse (1921) (Psicologia das Massas e Análise do Eu, Companhia das Letras, 2020)
  • Das Ich und das Es (1923) (O Eu e o Isso, Companhia das Letras, 2019)
  • Hemmung, Symptom und Angst (1926) (Inibição, Sintoma e Angústia, Companhia das Letras, 2022)
  • Die Zukunft einer Illusion (1927) (O Futuro de uma Ilusão, Companhia das Letras, 2021)
  • Das Unbehagen in der Kultur (1930) (O Mal-Estar na Civilização, Companhia das Letras, 2019)
  • Neue Folge der Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse (1933) (Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Companhia das Letras, 2019)
  • Der Mann Moses und die monotheistische Religion (1939) (Moisés e o Monoteísmo, Companhia das Letras, 2021)

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