Entrevista com o antropólogo Inácio Dias de Andrade | África, desenvolvimento e pandemia

Na presente data todos os 55 países e territórios africanos já registraram casos da Covid-19. Segundo o portal The Elephant, a África do Sul, até aqui, lidera o triste ranking no continente, com 101.590 casos confirmados. O Egito, em segundo, tem 56.809, seguido pela Nigéria, com 20.919 casos. Do extremo sul ao norte do continente são 315.380 casos confirmados e 8.339 mortes.

A implícita subnotificação, assim como no Brasil, não impede de atestarmos a acentuada curva ascendente dos casos oficiais apontando que o continente está longe de controlar a circulação do vírus. Os números dão indícios de que, após a desaceleração dos casos no continente americano, a África será o novo centro global da pandemia.

Casos de coronavírus confirmados no continente africano. Fonte: The Elephant.

Enquanto os países ricos preparam-se para a segunda onda de infecções, aqueles mais pobres mal chegaram a vislumbrar o que há para além do pico de casos. A dificuldade em transpor a montanha estatística que representa vidas perdidas e tantas histórias de luto e privação revela também o abismo econômico que separa os antigos impérios europeus das suas antigas colônias. Exceção feita aos EUA, ex colônia cujo poderio econômico tem sido incapaz de ocultar a falência do radicalismo neoliberal diante da mais grave crise de saúde pública dos últimos cem anos.

No Brasil, onde alguns celebravam há 2 meses, diante de 7.321 mortes, que o pico da Covid-19 havia passado para as classes altas e que o país ia bem no controle da pandemia, devemos celebrar o SUS, que somado aos esforços em favor do isolamento social, ainda que insuficientes, fez com que não tivéssemos dezenas de milhares de mortes a mais do que as 52.771 registradas até aqui.

Assim, ainda que os mecanismos biológicos de uma infecção viral sejam impessoais, é impossível dissociar a evolução de uma epidemia dos marcadores históricos, culturais, políticos e econômicos de uma determinada realidade social, seja nos EUA, em Portugal, no Brasil, em Moçambique ou no Sudão do Sul.

Para contextualizar alguns destes marcadores na África convidamos o antropólogo Inácio Dias de Andrade*, que nos explica os efeitos da influência recente do Brasil no continente, as relações entre colonialismo, imperialismo e visibilidade midiática e como estes condicionam o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

 

Primeiramente, obrigado por nos conceder esta entrevista. Por favor, nos conte um pouco sobre a sua pesquisa de campo.

Obrigado pela oportunidade. Eu iniciei minha pesquisa em Moçambique durante meu doutorado em Antropologia Social pela Unicamp. Eu procurava entender como as políticas desenvolvimentistas no país, que contam com uma importante participação brasileira, afetaram negativamente as comunidades locais. Eu passei cerca de um ano na zona central de Moçambique fazendo trabalho de campo. Nos últimos anos, Moçambique, e particularmente Tete, província na qual desenvolvi minha pesquisa, tem recebido incríveis somas de dinheiro em investimento externo. Grande parte desse dinheiro vem de empresas brasileiras que, desde meados dos anos 2000, têm destinado bilhões de dólares para a extração de minérios e construção de infraestrutura no país.

Assim, um dos grandes debates atuais em Moçambique gira em torno da natureza e consequências do desenvolvimento no país e na África, de modo mais geral. Debate que não é conduzido apenas por especialistas, mas constitui parte integrante do dia a dia dos milhões de moçambicanos que testemunham a chegada de estrangeiros, dinheiros, empresas e mercadorias em um país que sofreu por 16 anos com uma guerra civil ininterrupta que matou mais de 1 milhão de pessoas e deslocou outros 5 milhões de refugiados em direção aos países vizinhos.

Em 2007, A Vale, multinacional brasileira, ganhou a concessão de exploração de grande parte das jazidas de Tete e anunciou um plano de investimentos de mais de 10 bilhões de dólares. Embora muitos moçambicanos tenham ficado entusiasmados com as possibilidades de modernização que se aventavam à época, podemos dizer que atualmente o tão esperado desenvolvimento parece um sonho cada vez mais distante.

 

Entre tantos investimentos em infraestrutura houve, por exemplo, alguma destinação de recursos para a construção e manutenção de escolas, saneamento básico e hospitais?

Até 2016, quando acompanhei mais de perto a situação, havia aportes pontuais para algumas organizações preexistentes, escolas ou igrejas, mas nada sistemático que pudesse constituir um programa de desenvolvimento local ou uma parceria de empresas com o governo moçambicano. A Vale possui um projeto de geração de renda direcionado para as pessoas que foram deslocadas do local da mina. Para iniciar a prospecção de carvão, a Vale desalojou cerca de 2 mil famílias de suas terras e construiu novas casas em outro local. No entanto, muitos problemas decorreram dessa ação.

Primeiramente, após um ano as casas, construídas sem fundação, começaram a apresentar rachaduras e muitos tiveram que abandoná-las. Em segundo lugar, após o desalojamento, surgiram denúncias de que a empresa não honrou o pagamento das indenizações em sua totalidade e manifestações que paralisaram a linha de produção foram organizadas. Finalmente, o novo local escolhido pela empresa fica a 40km das terras de origem da população deslocada.

Ao planejar a desocupação, a Vale identificou, erroneamente, que aquelas pessoas produziam prioritariamente para a sua subsistência e que poderiam facilmente cultivar seus alimentos em outros lugares. Porém, grande parte da renda daquelas famílias estava relacionada com o fato de eles morarem relativamente perto da cidade, onde podiam vender o excedente de sua produção e comprar produtos de primeira necessidade. O deslocamento forçado prejudicou os negócios da maioria das pessoas e o programa de geração de renda da Vale (de criação e venda de frangos) tem pouco impacto em uma população isolada e desmonetizada. Além do mais, os programas da empresa para introduzir técnicas modernas de cultivo e plantio em pouco diferem dos fracassados programas de desenvolvimento internacional que há mais de 30 anos insistem em técnicas comprovadamente equivocadas. Ademais, o novo local de moradia dessas populações é caracterizado por um solo pedregoso e escassez de fontes d’água. Muitas das pessoas com quem falei tem que andar diariamente mais de 7 km para conseguirem cultivar em solo fértil.

Finalmente, os empregos prometidos pelos “novos tempos de desenvolvimento” nunca chegaram. Assim, apesar da extrema violência dos tempos coloniais, para muitos, o desenvolvimento proposto pelas empresas brasileiras não é qualitativamente melhor daquele colocado em prática pelo governo português. Diferentemente das antigas empresas coloniais que conjugavam a extração mineral com o assentamento de colonos, estimulando um mercado interno de serviços e empregos precários, a Vale possui uma linha de produção totalmente mecanizada que exige poucos funcionários especializados, contratados, em sua maioria, no Brasil. Assim, embora a chegada das empresas multinacionais tenha trazido movimento, dinheiro e produtos de consumo para os mercados de Tete, eles são totalmente inacessíveis para grande parte da população que só percebe o desenvolvimento por meio de sua face mais perversa: desemprego, desigualdade social, violência e restrição de direitos.

 

  • Cidade de Tete, capital da Província de Tete, Moçambique. (Arquivo pessoal/Inácio Dias de Andrade)

Poderíamos dizer que nestas últimas décadas está em curso no continente africano algo que se assemelha a um neocolonialismo, ainda que sejam Estados independentes?

Primeiramente, teríamos que definir o que foi o evento histórico denominado como colonialismo. Certamente, a relação de dominação e conquista que envolvia o deslocamento de colonos, administradores e militares europeus e garantia o gerenciamento e dominação, econômica e populacional, de territórios estrangeiros, negando-lhes qualquer tipo de autonomia ou soberania, não existe mais. Para muitos autores, seguindo a clássica análise de Lenin em o Imperialismo: a fase superior do capitalismo (1917), o colonialismo deriva de um arranjo específico do capitalismo que, à época, estava organizado em monopólios nacionais. Nesse sentido, durante uma crise de crescimento, a competição por novos mercados só poderia assumir a forma de uma competição militar entre estados sobre novos territórios, que deveriam ser dominados em benefício da exploração econômica exclusiva.

Nos encontramos em outra fase da economia capitalista. Embora a literatura sobre imperialismo ainda tenha muito a dizer sobre o tempo em que vivemos, a organização econômica atual não necessita de dominação direta, política e militar, sobre uma vasta região do mundo. Poderíamos, então, afirmar o fim do colonialismo de modo peremptório?

Infelizmente, o colonialismo não se caracteriza apenas como um empreendimento econômico, ele também produz uma cisão na constituição do pensamento moderno, no desenvolvimento e conformação das relações internacionais e institui diferentes sujeitos e comunidades políticas ao redor do mundo, repondo, de diferentes modos, uma desigualdade inicial categorizada por meio da ideia de raça. A eclosão de diferentes manifestações antirracistas pelo mundo são a prova de que a modernidade que conhecemos, a organização política e econômica de nossas sociedades e a desigualdade na cessão de direitos políticos e sociais estão intrinsecamente ligados a esse momento histórico da humanidade que deixa marcas e cicatrizes profundas em todos os estados nacionais.

Achille Mbembe, pensador camaronês, afirma que o colonialismo não foi apenas determinante na expansão e complexificação das formas de exploração, mercantilização e gerenciamento da vida humana naquilo que atualmente caracteriza o neoliberalismo, mas também é responsável pela hierarquização do globo em áreas desenvolvidas ou subdesenvolvidas, Primeiro e Terceiro Mundos, legitimando não só a desigualdade econômica e política mundial, como também justificando intervenções internacionais pontuais, sejam elas militares ou de cooperação.

A entrada do Brasil e de empresas brasileiras em África não pode ser dissociada desses fatores. Na realidade, o discurso oficial dizia que a relações entre o Brasil e os países africanos seria essencialmente diferente dos projetos de modernização colocado em prática por potências colonialistas. À época, para membros do governo Lula, o Brasil, por ser uma ex-colônia, teria necessariamente uma relação mais horizontal e democrática com países africanos. Infelizmente, não é isso que se viu naqueles tempos e o que caracteriza atualmente os empreendimentos brasileiros em África é uma mesma relação imoral de exploração e desinteresse por problemas locais. Embora seja complicado definir a relação entre Brasil e países africanos como uma relação colonial é evidente que ela se aproveita de desigualdades estruturais criadas pelo colonialismo e reproduz preconceitos, identidades e elementos criados no bojo da expansão colonial europeia.

 

Esta desigualdade, me parece, fica explícita também em um segundo lance de segregação, que se dá através dos meios de comunicação. Sempre tivemos pouquíssimas informações e análises sobre acontecimentos, positivos ou negativos, em países africanos. Para o jornalismo econômico, por mais que seja um vastíssimo continente, parece que a África nem existe. Depois da morte de Nelson Mandela as notícias sumiram de vez. Mesmo na internet, onde há um bombardeio de notícias e não há limite de tempo, como em um telejornal, dificilmente encontramos nos grandes portais informações, por exemplo, sobre os números e os impactos da pandemia na África. Como você enxerga os efeitos desta invisibilidade midiática?

Essa é uma pergunta interessante para a qual não sei se tenho uma resposta satisfatória.

Primeiramente, não acho que podemos separar o jornalismo (sua conformação institucional, econômica e política, sua prática diária e a formação dos profissionais que neles trabalham) dos interesses nacionais de cada país e do imaginário político da elite intelectual que ele majoritariamente representa.

Em outras palavras, penso que a falta de interesse do jornalismo brasileiro pelo continente africano é resultado do processo de formação da identidade brasileira e de um projeto nacional focado nas representações sobre o que seria um país desenvolvido.

Ensaio do historiador e cientista político Achille Mbembe. Publicado no Brasil em 2018, pela editora n-1 edições.

Esse tipo de relação entre o jornalismo tradicional e os problemas nacionais não é exclusivo do Brasil e podemos pegar o exemplo contrário para iluminar o que quero dizer. Se no Brasil há um completo desinteresse pelo continente africano, nas antigas metrópoles europeias o problema se inverte. As mídias francesas, inglesas e portuguesas, por exemplo, produzem incessantemente matérias e reportagens sobre suas antigas colônias e alimentam suposições sobre um imaginado laço afetivo, econômico e político entre essas regiões do globo. O tom de grande parte das reportagens passa por uma ideia paternalista sobre a pobreza dos africanos, a fome que perpassa o continente e os inúmeros problemas estruturais que esses países ainda possuem. Essa narrativa acaba por repor antigos problemas sobre novas formas, reproduzindo percepções passadas sobre o primitivismo, atraso e tradicionalismo de populações africanas e contrastando com a riqueza, desenvolvimento e racionalismo europeus.

Entretanto, se grande parte da identidade europeia foi construída em sua oposição com áreas “atrasadas” do globo e atualmente é reforçada por meio da atualização dos termos dessa relação, no Brasil, a construção da nação soberana e de seu projeto para o futuro passa pelo esquecimento e negação de nosso passado colonial. Não foi à toa que uma das primeiras medidas pós-abolição (período em que o Brasil procurava outro modelo de desenvolvimento para substituir aquele baseado na escravidão) foi trazer imigrantes europeus. Pouco sabemos sobre a realidade de outros lugares do globo, mas somos cotidianamente informados sobre os acontecimentos nos Estados Unidos e na Europa. Nem mesmo quando o governo Lula abriu a porta dos mercados africanos para empresas brasileiras, a mídia deu a devida atenção para esses lugares ou para os problemas que o projeto desenvolvimentista brasileiro levou junto consigo. O projeto de país que até hoje seguimos é aquele que busca apagar nossas heranças coloniais e vemos isso refletido não apenas nos interesses de grandes jornais, mas também em outras esferas. Muitos projetos de pesquisa em universidades, acordos entre governos ou construções de políticas públicas buscam produzir analogias, comparações e resoluções a partir de relações com a Europa e os EUA.

De qualquer modo, devo dizer que esse cenário passou por alterações nos últimos anos, especialmente depois da lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do Ensino de História da África nas escolas de todos país. Isso não só obrigou acadêmicos brasileiros a produzir conteúdo para tais disciplinas, como colocou um novo conjunto de problemas para a discussão na esfera pública brasileira. Nesse último aspecto também temos que salientar o papel do movimento negro que vem obrigando, cada vez mais, a discutirmos tais questões.

A pandemia do Covid-19 não pode ser dissociada dessas questões e a ausência de dados sobre o continente africano nos nossos jornais só expõe aquilo (e aqueles) que consideramos importante como sociedade.

 

Quais as informações e impressões que chegam até você a respeito da pandemia? A partir destes relatos, para além das questões associadas à infraestrutura, como você tem percebido os impactos deste evento global nas representações e nos tantos universos simbólicos locais?

Um dos grupos do qual faço parte – o Centro de Estudo em Migração Internacional (CEMI), coordenado pelo prof. Omar Ribeiro Thomaz da Unicamp – tem mobilizado uma rede de contatos em busca de relatos, narrativas e análises da pandemia em diferentes partes do mundo, tentando, justamente, descentralizar essa narrativa extremamente focalizada nos chamados países de primeiro mundo. O grupo, que conta com pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e em diferentes níveis de formação, já produziu relatos de mais de 30 países e o que temos descoberto é a incrível variedade de experiências locais dessa pandemia, fazendo com que seja difícil falar em uma pandemia global, mas em diferentes eventos epidemiológicos que variam de acordo com as histórias, culturas e contextos econômicos e políticos das localidades afetadas.

Nesse sentido, o que os relatos nos mostram é a incrível capacidade de incorporação da pandemia como parte integrante do cenário político local. Assim, a “politização da pandemia” tão discutida no Brasil constitui-se mais como regra do que como exceção. Penso que uma importante contribuição desses relatos é mostrar como a pandemia têm desvelado uma crise global de representação política e de acirramento das desigualdades sociais que alimentam e são alimentadas por aquilo que podemos chamar de narrativas obscurantistas sobre a pandemia. No caso brasileiro, são as já conhecidas fake news.

Em muitos países com os quais estamos trabalhando, as pessoas vivem com a renda que conseguem diariamente e não existe a possibilidade de se garantir um estoque alimentar ou fazer um planejamento mensal.

No Sudão do Sul, por exemplo, país que passa por idas e vindas de uma guerra que já dura sete anos, é praticamente impossível se garantir o isolamento social. Além do mais, o país de 11 milhões de pessoas tem uma expectativa de vida de 57 anos e apenas 2% da população pode ser considerada como grupo de risco de mais de 65 anos. Se grande parte do debate do isolamento social gira em torno de uma estratégia internacional para evitar a saturação dos sistemas públicos e privados de saúde, como essa estratégia pode ser levada a cabo em um país como o Sudão do Sul, que não possui qualquer sistema de saúde que possa vir a ser saturado? Uma piada corrente entre os sudaneses é o fato de que o país possui apenas quatro ventiladores mecânicos e cinco vice-presidentes em exercício. Nesse caso, pode-se dizer que o isolamento social e suas consequências, fome, desemprego e recessão, pode ser mais danoso do que a própria doença. É o inverso do que o ocorre no Brasil, por exemplo, onde o SUS tem recebido e tratado a maior parte dos doentes.

Curva de casos confirmados da Covid-19 na África. Fonte: The Elephant. (Clique para ampliar)

Também temos recebido relatos de localidades nas quais a própria população tem criado métodos para assegurar o controle da doença, sem ajuda do Estado ou de agências internacionais. No norte de Moçambique por exemplo, o isolamento social foi a solução adotada após antigas lideranças das aldeias e algumas pessoas influentes, curandeiros e conhecedores de raízes curativas, decidirem cercar as aldeias através de um rito de proteção do território, muito utilizado para feitiços ou dos maus olhares dos inimigos da própria comunidade ou do território ao redor.

Essa pluralidade de situações tem escancarado desigualdades sociais, políticas e econômicas.

No Malawi, por exemplo, a pandemia chega em um momento de grande turbulência política. A eleição presidencial de 2019 foi recentemente anulada pela suprema corte após vários meses de protestos que bloquearam as vias das maiores cidades, paralisando grande parte da economia do país. A Suprema Corte decidiu repetir a eleição agora em junho e o isolamento proposto pelo presidente Peter Mutharika, vencedor das contestadas eleições e que continua até agora no cargo, foi percebida como uma nova tentativa de sabotar os protestos e cancelar o novo pleito. A desconfiança generalizada sobre a elite política, somada ao imenso impacto econômico da epidemia que se desdobra com especial dramaticidade entre os mais pobres, junto com o ineficiente sistema de monitoramento e testagem desses países faz com que percepções sobre a desigualdade social, política e econômica abram espaço para diferentes narrativas conspiratórias sobre a pandemia. No Malawi, a aparente ausência de casos reforça a percepção de que a pandemia é inventada por uma elite política sedenta por poder. Em outros países essas teorias conspiratórias buscam explicar por que determinados grupos sociais são mais ou menos afetados pela COVID-19 e se espalham facilmente pelos grupos de Whatsapp.

No Brasil, embora algum desses fatores também estejam presentes, a produção, articulação e disseminação dessas teorias é capitaneada por um grupo político articulado que busca um projeto de poder antidemocrático. Eles se aproveitam dessa situação extraordinária e dessa base social suscetível à disseminação dessas notícias para desacreditar organismos internacionais, metodologias científicas e profissionais de saúde de modo a manter-se no poder.

 

*Inácio Dias de Andrade é antropólogo formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pós-doutorando do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador do CANIBAL: Grupo de Antropologia do Caribe Global, coordenado pelo Prof. João Felipe Gonçalves da USP, e pesquisador-colaborador do Centro de Estudo de Migrações Internacionais (CEMI) da UNICAMP, coordenado pelos professores Omar Ribeiro Thomaz e Bela Feldman-Bianco da Unicamp. Inácio Dias de Andrade tem atuado principalmente com os seguintes temas: Moçambique, África Austral, Desenvolvimento, Modernidade, Relações Raciais, Estudos de populações africanas, Antropologia Urbana, Antropologia da Política, Movimentos Sociais, Urbanização, Arquitetura e Fluxos e Políticas Globais.

O outro, o inferno palaciano, o canalha e o drama brasileiro

O outro

O outro, essa pessoa, categoria analítica ou entidade fenomenológica, está sempre por aí. Na verdade, por aí, por aqui, por ali. Eu sou o seu outro, aqui. Você, caro leitor, é o meu outro neste momento em que escrevo.

Porém, convenhamos, o mundo é muito grande para que tenhamos somente um ao outro. Cada um de nós tem muitos outros outros.

Sim, porque o outro está presente mesmo quando estamos sozinhos. Ele é um inquilino permanente que nos habita. Nesta relação nada mercantil o pagamento vem em diversas moedas. Por vezes ele nos persegue, censura, entristece, fustiga, noutras ele nos acolhe, alegra, acalma, liberta, inspira. Dependendo do outro, recebemos um pouco de cada, em proporções variáveis.

O fato é que o outro sempre nos estimula. Quando este estímulo não vem do outro no mundo exterior, vem do outro no mundo interior.

Do ponto de vista das ciências sociais o outro é a instância fundamental de constituição do sujeito, porque somente a partir do outro ele pode se reconhecer por diferenciação, erigindo a sua subjetividade.

Para a psicanálise freudiana, na vida adulta o outro é mais um dos múltiplos objetos do mundo exterior no qual investimos nossa libido. Porém, antes, ele nos constitui desde o primeiro momento, nas relações parentais. Destino inalcançável das nossas fantasias, mas também das identificações, o outro é a última instância da realização e da interdição dos nossos desejos.

Por isso, buscamos a repetição de beijos e abraços dados e não escapamos às fantasias com aqueles nunca dados.

Há, também, o outro dentro de nós com quem repetimos discussões e ensaiamos arrependimentos pelo dito e pelo não dito.

Ah, se arrependimento matasse, diria o outro. Não mata, não. Nos constitui.

Mas há, aqui, duas importantes distinções: sentir arrependimento é diferente de sentir culpa. Esta última, por sua vez, difere-se também de responsabilidade. Voltaremos a estas diferenças mais a frente.

 

O inferno palaciano

Napoléon Ier à Fontainebleau le 31 mars 1814. Óleo sobre tela, 138 x 180 cm. Paul Delaroche,1840.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre não foi escrita em nenhum dos seus tantos livros, ensaios ou em uma entrevista. Ela veio a público no Théâtre du Vieux-Colombier, em maio de 1944, na première da peça Huis Clos (De portas fechadas), pela boca de Garcin, personagem criada pelo filósofo francês.

A trama, em ato único, desenrola-se a partir de três desconhecidos entre si, Inès, Estelle, Garcin, e O Garçom (ou O Criado na tradução brasileira). Este último, representante do Diabo, faz as vias de apresentar às demais personagens a sua nova morada eterna: o inferno.

Diferentemente daquilo que imaginamos, o cenário assemelha-se pouco ao inferno bíblico, exceções feitas ao calor escaldante e à iluminação total do ambiente. Não há torturadores, grelhas, estacas, castigos físicos. Antes, é um salão imperial, ao estilo do regime bonapartista, com móveis, uma lareira e uma estátua de bronze. Não há janelas, espelhos, nem nada que seja frágil.

A força e a solidez napoleônica são invocadas no cenário, na atemporalidade da eternidade onde não se dorme, nem se pisca, mas também no enfrentamento do qual não se escapa, dos erros cometidos, da má-fé que não pode mais ser mascarada, mas que deve ser paga.

Ali, sem espelhos, cada qual só pode ver a si mesmo no reflexo no olho do outro. Onde, para além do reflexo, encontra o julgamento deste outro, o carrasco que reflete a sua própria consciência da má-fé, a sua culpa.

As traduções do título da peça, em português, Entre quatro paredes, e em inglês, No exit, complementam o amplo sentido da reflexão de Sartre.

Há uma clausura intransponível na existência, jamais saímos de nós mesmos. Se somos vocacionados para a liberdade, ela não vem sem escolhas e à revelia do olhar dos outros.

A liberdade, para Sartre, certamente inspirado por Freud, é um constante vir-a-ser que só pode ser experimentado pela autorresponsabilização perante os nossos desejos, pela atitude de assumirmos as ações tomadas e as escolhas feitas que, sempre, envolvem o outro.

Caso contrário, quando nos desresponsabilizamos na busca pela satisfação dos nossos desejos, padecemos no inferno, fadados a nos reconhecermos eternamente e somente no olhar do outro. Nos enxergando no carrasco que nos julga, tortura e do qual não conseguimos escapar. No carrasco que nos descobre, desvenda, desnuda e revela aquilo que sempre escondemos: a nossa covardia diante da liberdade.

Esse olhar infernal do outro somos nós mesmos, quando somos obrigados a reencontrar, como culpa, a responsabilidade da qual acreditávamos estar desviando, deliberadamente, por má-fé.

Neste sentido, esta peça, encenada pela primeira vez quando a II Guerra Mundial caminhava para o seu desfecho, é uma alegoria que marca o início da transição pela qual passaria o próprio filósofo que já havia escrito o colossal O ser e o nada, considerada por muitos a sua obra máxima.

A partir dali, paulatinamente, para Sartre o conceito de liberdade expandiria de um imperativo ontológico para um destino do ser social e político.

Sua atuação política transbordou da sua filosofia, das linhas herméticas do existencialismo para as ruas de Paris, e o transformou em uma das referências da geração que marcou a história francesa e ocidental com as manifestações de maio de 1968.

 

O canalha

Samuel Johnson, um intelectual britânico do século XVIII disse que o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Sendo um conservador monarquista e anglicano devoto, devemos supor que ele sabia bem do que estava falando.

Obviamente, ele não se dirigiu aos patriotas, mas aos canalhas. Não são todos os patriotas que são canalhas. Mas o último reduto possível a um canalha, para Johnson, é o patriotismo ou o nacionalismo.

É com esta macroidentidade última que pode transitar aquele cuja canalhice já foi desmascarada em todos os outros enredos e esferas da vida social. Poderíamos, também, expandir a noção de patriotismo para a de moralismo.

O canalha, enquanto sujeito vil e grosseiro é um narcisista contumaz porque sabe que é insignificante para a maioria das pessoas. Assim, só lhe cabe destinar grande parte do seu amor a si próprio.

Não há problema no narcisismo, uma vez que todos necessitamos dele como um recurso permanente de sobrevivência. Tampouco, nada decorre de grave em excedermos eventualmente no nosso narcisismo.

Capa da 1ª edição de O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1943.

Ainda, mesmo alguém excessivamente narcisista na busca pela satisfação dos seus desejos pode não ser um canalha, uma vez que estas são dinâmicas psíquicas predominantemente inconscientes.

O que define um canalha é que além de ser excessivamente narcisista ele tem consciência e age de má-fé. Prejudicar o outro, para ele, é uma escolha. Mais, uma escolha trivial e recorrente.

Ao canalha há um certo espaço social, onde ele sempre encontrará amantes e cúmplices conscientes ou inconscientes das suas canalhices, contudo, ele não hesitará em prejudicar estas mesmas pessoas para satisfazer os seus desejos e empreender as suas fantasias.

O que geralmente decorre das suas canalhices é que ele não vai longe nas múltiplas realidades sociais, uma vez que poucas serão as redes sociais parciais que o aturarão por muito tempo.

Alguns poderiam apontar nestas características os traços da psicopatia, o que seria correto, não fosse o fato de que o psicopata domina plenamente, no mais das vezes com elegância, o trânsito das normas.

Ao psicopata, o exercício da empatia tende a ter uma baixa modulação, fazendo com que ele precise se apegar, dominar e transitar com extrema perícia pela normatividade para satisfazer os seus desejos. (Um adendo necessário: aqui não tratamos do serial killer estereotipado dos filmes. Algo que, inclusive, faz muito mal à compreensão coletiva da psicopatia).

Já ao canalha o que não costuma faltar é empatia, paixão. Ele é regredido como uma criança que busca o perdão da mãe, no pior sentido possível, porque ele tem a força e as armas de um adulto.

Ele pode até circular com certa perícia nas relações, mas sempre, invariavelmente, cairá em suas próprias tramas. Porque lhe falta uma dose de compreensão sobre os próprios afetos e uma certa inteligência social, uma vez que é tomado pelas suas fantasias e delírios de grandeza.

Assim, o canalha aproxima-se mais do psicótico, do paranoico, porque orienta o mundo ao seu redor a partir da sua culpa, do seu inferno particular.

Portanto, ao contrário do que o senso comum tende a acreditar, as esferas pública, midiática e de políticas institucionais não são um ambiente propício ao canalha. Estes não são espaços que favorecem a sua camuflagem, por serem posições de muita exposição e escrutínio público onde é necessária a interlocução permanente com muitos outros.

Ao menos era assim, quando compartilhava-se socialmente a noção de que canalhas não merecem ser os depositários de desejos, esperanças e anseios coletivos.

 

O drama brasileiro

Voltamos às distinções entre o responsável, o arrependido e o culpado.

Enquanto o responsável, movido pelos seus desejos inconscientes, orienta-se pela boa-fé e pela ética, o arrependido é o responsável que fez uma escolha de boa-fé, mas percebeu que foi a escolha errada.

Já o culpado é aquele que agiu deliberadamente, conscientemente, de má-fé. Quando ele atua reencenando a sua culpa cotidianamente em prejuízo dos outros, o chamamos de canalha. No entanto, se este prejuízo, dano ou dor causada no outro for a própria meta dos seus desejos, o chamamos de sádico.

Como falta capacidade e coragem de se responsabilizar e, nos termos de Sartre, se comprometer com a sua própria liberdade, ao canalha encerrado em seu palácio bonapartista só restam duas saídas falsas para tentar fugir do seu inferno particular: acreditar que é Napoleão Bonaparte ou exterminar o olhar do outro.

A saída napoleônica ocorre após o estágio da paranoia, quando esta ergue uma defesa mitomaníaca que, não raramente, envolve espadas, armas de grosso calibre e cavalos. Assim, batendo bumbo, o canalha tenta diluir o seu inferno particular no mundo exterior, para compensar a sua pequenez. Desta forma, ele consegue um alívio pessoal ao angariar provisoriamente seguidores que se identificam com ele, mas que logo se devorarão uns aos outros neste inferno expandido.

A outra falsa saída do seu inferno particular é, simplesmente, tentar aniquilar o mundo exterior, inclusos os adeptos que não o seguirem cegamente em uma identificação total. Isso se faz, como apontou Johnson, travestido de nacionalista, último espaço social e simbólico possível para tentar camuflar a sua canalhice, enquanto tenta silenciar e exterminar o olhar do outro. Porque ali, no outro, o canalha vê refletida a sua culpa, a sua má-fé, os seus erros e a sua insignificância.

Acontece que falsos napoleões e verdadeiros canalhas não costumavam chegar às altas esferas do poder desde o fim da II Guerra Mundial. Em momentos de aparente continuidade histórica, canalhas e sádicos costumam ser contidos naturalmente nas linhas mais baixas das instituições, exatamente porque não hesitam em colocar populações, a coisa pública e o próprio país em risco. Seja no exército, nos partidos políticos, no congresso, na igreja ou no aparato judiciário.

Quando ocorre um processo de anomia, geralmente provocado por duros embates geopolíticos após graves crises econômicas, forças deste submundo das instituições começam a emergir com os seus bumbos, estimulados por poderosos interesses organizados interna e externamente. Nesta empreitada, como antes, esta ascensão conta com muitos outros cúmplices poderosos, agora arrependidos ou culpados.

Este processo, obviamente, gera uma resposta que tende a se organizar também através das instituições e na sociedade civil.

São momentos em que os infernos particulares e as fantasias transbordaram em violência, paranoia e, no século XXI, em um negacionismo, princípio de psicose coletiva instigada por mentiras pulverizadas e a destituição de referenciais e das verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas.

Eis o retorno do reprimido, agora nas versões WhatsApp e YouTube. Eis uma sociedade em que massas se reconheceram pela via do consumismo, ao invés de terem um Estado de bem-estar social. Eis uma pandemia.

Eis o drama brasileiro. Impasse do qual só sairemos quando nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, orientados pela boa-fé e por princípios éticos, quando reconhecermos no olhar dos outros o nosso próprio desejo de liberdade.

O arrependimento edifica, a culpa destrói.