Entre espelhos e labirintos | O narcisismo das pequenas diferenças e o medo ao pequeno número no globalismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado no livro A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual, e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social, propus uma análise multidisciplinar e sucinta sobre a contemporaneidade visando àquilo que conceituei como as redes sociais virtuais, as distinguindo e articulando com o conceito de redes sociais. No ensaio, evidentemente citei diversos autores. Agora, contados mais de quatro anos da sua escrita, aqui no blogue – cuja proposta é a aproximação do leitor interessado com algumas análises a partir de construções e conceitos da psicanálise e das ciências sociais – julgo pertinente apresentar três noções fundamentais para nos aprofundarmos numa compreensão possível acerca das redes sociais e das redes sociais virtuais.  

A contemporaneidade se revela como um palco de paradoxos intensos: ao mesmo tempo em que a globalização aproxima povos e culturas, desmantelando fronteiras geográficas e simbólicas, emergem sentimentos profundos de hostilidade e intolerância direcionados a minorias, grupos marginalizados e maiorias subjugadas por elites locais. Essa dicotomia entre conectividade e fragmentação identitária exige uma investigação meticulosa sobre os mecanismos psíquicos e sociais que alimentam tais tensões. Para adentrar nesses labirintos, esse artigo pretende apresentar a ideia freudiana de narcisismo das pequenas diferenças com as reflexões de Pierre-André Taguieff sobre o medo ao pequeno número e a análise de Arjun Appadurai em “O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva”.

O narcisismo das pequenas diferenças: O Eu no espelho do Outro

Sigmund Freud, em sua obra “O mal-estar na civilização” (1930), introduz o conceito de narcisismo das pequenas diferenças para explicar a tendência humana de enfatizar e exacerbar distinções mínimas entre indivíduos ou grupos culturalmente próximos. Esse mecanismo psíquico atua como uma defesa contra a ameaça que o outro semelhante representa à identidade do Eu. Ao projetar hostilidade sobre diferenças sutis, o indivíduo reforça a sensação de unicidade e superioridade, evitando confrontar a inquietante proximidade com o outro.

Freud postula que essa agressividade dirigida às pequenas diferenças é fundamental para o sentimento de coesão dos grupos sociais. Ao identificar e antagonizar nuances no outro, o grupo reafirma seus próprios valores e fronteiras identitárias. Esse processo permite a manutenção de uma ilusão de homogeneidade interna, mascarando conflitos e contradições inerentes à própria comunidade.

No contexto contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pela circulação massiva de pessoas e informações, o narcisismo das pequenas diferenças adquire novas configurações. A proximidade virtual com o outro culturalmente similar, mas ligeiramente diferente, intensifica o desconforto e a necessidade de demarcação. Esse fenômeno é visível nas rivalidades entre grupos étnicos, religiosos ou nacionais que compartilham raízes históricas comuns, mas que se engajam em conflitos acirrados baseados em distinções aparentemente superficiais.

O medo ao pequeno número: a paranoia do minoritário

A força do preconceito: Ensaio sobre o racismo e seus duplos

Pierre-André Taguieff, filósofo e sociólogo francês, de certa forma aprofunda essa discussão ao explorar o medo ao pequeno número. No ensaio La Force du préjugé: Essai sur le racisme et ses doubles, publicado em 1988, ele analisa como sociedades majoritárias desenvolvem uma aversão irracional a minorias numéricas, percebendo-as como ameaças desproporcionais à ordem social e à identidade coletiva. Essa paranoia social não se fundamenta em perigos reais ou objetivos, mas em construções imaginárias que atribuem ao pequeno número um poder desestabilizador exagerado.

Taguieff argumenta que esse medo está enraizado em ansiedades profundas sobre a pureza identitária e a coesão social. Minorias são transformadas em bodes expiatórios, carregando projeções das inseguranças e contradições internas da maioria. O pequeno número, paradoxalmente, torna-se um gigante simbólico que precisa ser controlado ou eliminado para restaurar a sensação de segurança.

Esse mecanismo se manifesta em diversas formas: discriminação sistêmica, políticas de exclusão, violência física e simbólica. A minoria é frequentemente desumanizada, retratada como portadora de valores ou práticas que ameaçam a integridade moral, cultural ou econômica da sociedade dominante. Essa narrativa justifica ações repressivas e legitima a negação de direitos fundamentais.

Arjun Appadurai e a geografia da raiva: globalização e violência contra minorias

Arjun Appadurai, renomado antropólogo indiano, em sua obra “O Medo ao Pequeno Número: Ensaio sobre a Geografia da Raiva” (2006), oferece uma perspectiva inovadora sobre como a globalização intensifica esses fenômenos. Ele argumenta que a modernidade global produz uma sensação de incerteza e ansiedade em relação à identidade nacional e cultural. As fronteiras tradicionais são borradas, e as narrativas unificadoras do Estado-nação são desafiadas por fluxos transnacionais de pessoas, ideias e capital.

Ele introduz o conceito de “ansiedade de incompletude”, sugerindo que as nações modernas temem não alcançar uma identidade completa e coesa. Nesse contexto, minorias étnicas ou religiosas são vistas como obstáculos à realização dessa completude imaginada. A raiva e a violência dirigidas a esses grupos são, portanto, expressões de uma tentativa desesperada de eliminar elementos que simbolizam a fragmentação interna.

A globalização, ao mesmo tempo em que conecta, também acentua diferenças e promove comparações constantes. As comunidades são expostas a uma pluralidade de modos de vida, gerando questionamentos sobre seus próprios valores e tradições. Essa exposição pode levar a uma reafirmação agressiva da identidade, na qual o outro é visto como uma ameaça à estabilidade e à continuidade cultural.

Appadurai destaca que a violência contra minorias não é apenas um fenômeno local, mas está inserida em uma geografia da raiva que se espalha globalmente. Eventos em uma parte do mundo podem influenciar atitudes e ações em outras, através da mídia e das redes transnacionais. Essa interconexão potencializa a disseminação de ideologias extremistas e xenófobas.

Uma leitura das tensões contemporâneas

A intersecção entre o narcisismo das pequenas diferenças, o medo ao pequeno número e a geografia da raiva oferece um arcabouço teórico robusto para compreender as tensões que permeiam as sociedades atuais. Esses conceitos revelam como processos psicológicos individuais se refletem e se amplificam nas dinâmicas sociais e políticas.

O narcisismo das pequenas diferenças explica a necessidade de demarcar fronteiras identitárias mesmo em contextos de grande semelhança cultural. Essa demarcação é fundamental para a construção do “nós” em oposição ao “eles”, mesmo que as diferenças sejam mínimas. Quando combinado com o medo ao pequeno número, essa dinâmica se intensifica, pois a minoria é vista não apenas como diferente, mas como uma ameaça existencial.

A contribuição de Appadurai situa esses fenômenos no contexto da globalização, mostrando como as ansiedades identitárias são exacerbadas pelas transformações globais. A sensação de perda de controle e a percepção de que a identidade nacional está em risco levam a reações violentas contra minorias, vistas como obstáculos à realização de uma fantasiada identidade plena.

Essa articulação permite compreender por que, em muitos casos, a hostilidade é direcionada precisamente a grupos que são numericamente insignificantes ou que possuem laços culturais próximos aos da maioria. A ameaça não está na capacidade real de subversão desses grupos, mas na sua representação simbólica das incertezas e fragilidades internas da sociedade dominante.

Desafiando os labirintos da identidade no globalismo: caminhos para além da raiva

Compreender esses mecanismos é crucial para o desenvolvimento de estratégias que visem reduzir a violência e promover a convivência pacífica. Reconhecer que a hostilidade direcionada a minorias tem raízes profundas em ansiedades identitárias nos permite abordar o problema de maneira mais robusta e abrangente.

Políticas que promovam a inclusão e valorização da diversidade cultural podem contribuir para diminuir o medo ao pequeno número. Educação para uma cultura digital e intercultural, visando à pluralidade e espaços de diálogo são fundamentais para desconstruir estereótipos e reduzir os efeitos engendrados pela necropolítica na geopolítica da raiva.

Além disso, é necessário enfrentar as inseguranças geradas pela globalização. Isso implica em repensar seriamente modelos econômicos e sociais que produzem desigualdades, marginalização e a catástrofe ambiental. Fortalecer redes de proteção social e promover o desenvolvimento sustentável pode reduzir a sensação de ameaça e a falsa saída na acusação de bodes expiatórios.

A psicanálise, certamente, é uma das práticas que oferecem ferramentas valiosas para compreender e trabalhar essas questões individual e coletivamente. Ao explorarmos os processos inconscientes que alimentam a hostilidade, é possível promover uma maior autoconsciência e responsabilidade ética do sujeito em sua relação tanto com os seus próprios desejos, quanto com o outro.

A era da globalização apresenta desafios complexos à compreensão da identidade e da alteridade. Os conceitos de Freud, Taguieff e Appadurai nos permitem começar a mapear os labirintos da raiva que emergem nesse contexto, revelando como mecanismos psíquicos e sociais se entrelaçam para produzir hostilidade e violência contra minorias ou mesmo maiorias subjugadas por variadas elites econômicas locais.

Desvendar esses processos é o primeiro passo para construir sociedades mais justas e inclusivas. Esse é um convite urgente à reflexão sobre quem somos e como nos relacionamos com o outro. Reconhecer a riqueza que reside nas diferenças, por menores que sejam, pode transformar o narcisismo e o medo em oportunidades de crescimento coletivo a partir do diálogo e da essencial política.

Em última instância, superar os labirintos da raiva requer coragem para enfrentar as próprias inseguranças e abrir-se ao desconhecido. Esse é um processo contínuo de desconstrução e reconstrução de uma identidade que, no limite, reconhece a interdependência global e a necessidade de coexistência pacífica em um mundo cada vez mais interconectado.

 

Entrevista com o antropólogo Inácio Dias de Andrade | África, desenvolvimento e pandemia

Na presente data todos os 55 países e territórios africanos já registraram casos da Covid-19. Segundo o portal The Elephant, a África do Sul, até aqui, lidera o triste ranking no continente, com 101.590 casos confirmados. O Egito, em segundo, tem 56.809, seguido pela Nigéria, com 20.919 casos. Do extremo sul ao norte do continente são 315.380 casos confirmados e 8.339 mortes.

A implícita subnotificação, assim como no Brasil, não impede de atestarmos a acentuada curva ascendente dos casos oficiais apontando que o continente está longe de controlar a circulação do vírus. Os números dão indícios de que, após a desaceleração dos casos no continente americano, a África será o novo centro global da pandemia.

Casos de coronavírus confirmados no continente africano. Fonte: The Elephant.

Enquanto os países ricos preparam-se para a segunda onda de infecções, aqueles mais pobres mal chegaram a vislumbrar o que há para além do pico de casos. A dificuldade em transpor a montanha estatística que representa vidas perdidas e tantas histórias de luto e privação revela também o abismo econômico que separa os antigos impérios europeus das suas antigas colônias. Exceção feita aos EUA, ex colônia cujo poderio econômico tem sido incapaz de ocultar a falência do radicalismo neoliberal diante da mais grave crise de saúde pública dos últimos cem anos.

No Brasil, onde alguns celebravam há 2 meses, diante de 7.321 mortes, que o pico da Covid-19 havia passado para as classes altas e que o país ia bem no controle da pandemia, devemos celebrar o SUS, que somado aos esforços em favor do isolamento social, ainda que insuficientes, fez com que não tivéssemos dezenas de milhares de mortes a mais do que as 52.771 registradas até aqui.

Assim, ainda que os mecanismos biológicos de uma infecção viral sejam impessoais, é impossível dissociar a evolução de uma epidemia dos marcadores históricos, culturais, políticos e econômicos de uma determinada realidade social, seja nos EUA, em Portugal, no Brasil, em Moçambique ou no Sudão do Sul.

Para contextualizar alguns destes marcadores na África convidamos o antropólogo Inácio Dias de Andrade*, que nos explica os efeitos da influência recente do Brasil no continente, as relações entre colonialismo, imperialismo e visibilidade midiática e como estes condicionam o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

 

Primeiramente, obrigado por nos conceder esta entrevista. Por favor, nos conte um pouco sobre a sua pesquisa de campo.

Obrigado pela oportunidade. Eu iniciei minha pesquisa em Moçambique durante meu doutorado em Antropologia Social pela Unicamp. Eu procurava entender como as políticas desenvolvimentistas no país, que contam com uma importante participação brasileira, afetaram negativamente as comunidades locais. Eu passei cerca de um ano na zona central de Moçambique fazendo trabalho de campo. Nos últimos anos, Moçambique, e particularmente Tete, província na qual desenvolvi minha pesquisa, tem recebido incríveis somas de dinheiro em investimento externo. Grande parte desse dinheiro vem de empresas brasileiras que, desde meados dos anos 2000, têm destinado bilhões de dólares para a extração de minérios e construção de infraestrutura no país.

Assim, um dos grandes debates atuais em Moçambique gira em torno da natureza e consequências do desenvolvimento no país e na África, de modo mais geral. Debate que não é conduzido apenas por especialistas, mas constitui parte integrante do dia a dia dos milhões de moçambicanos que testemunham a chegada de estrangeiros, dinheiros, empresas e mercadorias em um país que sofreu por 16 anos com uma guerra civil ininterrupta que matou mais de 1 milhão de pessoas e deslocou outros 5 milhões de refugiados em direção aos países vizinhos.

Em 2007, A Vale, multinacional brasileira, ganhou a concessão de exploração de grande parte das jazidas de Tete e anunciou um plano de investimentos de mais de 10 bilhões de dólares. Embora muitos moçambicanos tenham ficado entusiasmados com as possibilidades de modernização que se aventavam à época, podemos dizer que atualmente o tão esperado desenvolvimento parece um sonho cada vez mais distante.

 

Entre tantos investimentos em infraestrutura houve, por exemplo, alguma destinação de recursos para a construção e manutenção de escolas, saneamento básico e hospitais?

Até 2016, quando acompanhei mais de perto a situação, havia aportes pontuais para algumas organizações preexistentes, escolas ou igrejas, mas nada sistemático que pudesse constituir um programa de desenvolvimento local ou uma parceria de empresas com o governo moçambicano. A Vale possui um projeto de geração de renda direcionado para as pessoas que foram deslocadas do local da mina. Para iniciar a prospecção de carvão, a Vale desalojou cerca de 2 mil famílias de suas terras e construiu novas casas em outro local. No entanto, muitos problemas decorreram dessa ação.

Primeiramente, após um ano as casas, construídas sem fundação, começaram a apresentar rachaduras e muitos tiveram que abandoná-las. Em segundo lugar, após o desalojamento, surgiram denúncias de que a empresa não honrou o pagamento das indenizações em sua totalidade e manifestações que paralisaram a linha de produção foram organizadas. Finalmente, o novo local escolhido pela empresa fica a 40km das terras de origem da população deslocada.

Ao planejar a desocupação, a Vale identificou, erroneamente, que aquelas pessoas produziam prioritariamente para a sua subsistência e que poderiam facilmente cultivar seus alimentos em outros lugares. Porém, grande parte da renda daquelas famílias estava relacionada com o fato de eles morarem relativamente perto da cidade, onde podiam vender o excedente de sua produção e comprar produtos de primeira necessidade. O deslocamento forçado prejudicou os negócios da maioria das pessoas e o programa de geração de renda da Vale (de criação e venda de frangos) tem pouco impacto em uma população isolada e desmonetizada. Além do mais, os programas da empresa para introduzir técnicas modernas de cultivo e plantio em pouco diferem dos fracassados programas de desenvolvimento internacional que há mais de 30 anos insistem em técnicas comprovadamente equivocadas. Ademais, o novo local de moradia dessas populações é caracterizado por um solo pedregoso e escassez de fontes d’água. Muitas das pessoas com quem falei tem que andar diariamente mais de 7 km para conseguirem cultivar em solo fértil.

Finalmente, os empregos prometidos pelos “novos tempos de desenvolvimento” nunca chegaram. Assim, apesar da extrema violência dos tempos coloniais, para muitos, o desenvolvimento proposto pelas empresas brasileiras não é qualitativamente melhor daquele colocado em prática pelo governo português. Diferentemente das antigas empresas coloniais que conjugavam a extração mineral com o assentamento de colonos, estimulando um mercado interno de serviços e empregos precários, a Vale possui uma linha de produção totalmente mecanizada que exige poucos funcionários especializados, contratados, em sua maioria, no Brasil. Assim, embora a chegada das empresas multinacionais tenha trazido movimento, dinheiro e produtos de consumo para os mercados de Tete, eles são totalmente inacessíveis para grande parte da população que só percebe o desenvolvimento por meio de sua face mais perversa: desemprego, desigualdade social, violência e restrição de direitos.

 

  • Cidade de Tete, capital da Província de Tete, Moçambique. (Arquivo pessoal/Inácio Dias de Andrade)

Poderíamos dizer que nestas últimas décadas está em curso no continente africano algo que se assemelha a um neocolonialismo, ainda que sejam Estados independentes?

Primeiramente, teríamos que definir o que foi o evento histórico denominado como colonialismo. Certamente, a relação de dominação e conquista que envolvia o deslocamento de colonos, administradores e militares europeus e garantia o gerenciamento e dominação, econômica e populacional, de territórios estrangeiros, negando-lhes qualquer tipo de autonomia ou soberania, não existe mais. Para muitos autores, seguindo a clássica análise de Lenin em o Imperialismo: a fase superior do capitalismo (1917), o colonialismo deriva de um arranjo específico do capitalismo que, à época, estava organizado em monopólios nacionais. Nesse sentido, durante uma crise de crescimento, a competição por novos mercados só poderia assumir a forma de uma competição militar entre estados sobre novos territórios, que deveriam ser dominados em benefício da exploração econômica exclusiva.

Nos encontramos em outra fase da economia capitalista. Embora a literatura sobre imperialismo ainda tenha muito a dizer sobre o tempo em que vivemos, a organização econômica atual não necessita de dominação direta, política e militar, sobre uma vasta região do mundo. Poderíamos, então, afirmar o fim do colonialismo de modo peremptório?

Infelizmente, o colonialismo não se caracteriza apenas como um empreendimento econômico, ele também produz uma cisão na constituição do pensamento moderno, no desenvolvimento e conformação das relações internacionais e institui diferentes sujeitos e comunidades políticas ao redor do mundo, repondo, de diferentes modos, uma desigualdade inicial categorizada por meio da ideia de raça. A eclosão de diferentes manifestações antirracistas pelo mundo são a prova de que a modernidade que conhecemos, a organização política e econômica de nossas sociedades e a desigualdade na cessão de direitos políticos e sociais estão intrinsecamente ligados a esse momento histórico da humanidade que deixa marcas e cicatrizes profundas em todos os estados nacionais.

Achille Mbembe, pensador camaronês, afirma que o colonialismo não foi apenas determinante na expansão e complexificação das formas de exploração, mercantilização e gerenciamento da vida humana naquilo que atualmente caracteriza o neoliberalismo, mas também é responsável pela hierarquização do globo em áreas desenvolvidas ou subdesenvolvidas, Primeiro e Terceiro Mundos, legitimando não só a desigualdade econômica e política mundial, como também justificando intervenções internacionais pontuais, sejam elas militares ou de cooperação.

A entrada do Brasil e de empresas brasileiras em África não pode ser dissociada desses fatores. Na realidade, o discurso oficial dizia que a relações entre o Brasil e os países africanos seria essencialmente diferente dos projetos de modernização colocado em prática por potências colonialistas. À época, para membros do governo Lula, o Brasil, por ser uma ex-colônia, teria necessariamente uma relação mais horizontal e democrática com países africanos. Infelizmente, não é isso que se viu naqueles tempos e o que caracteriza atualmente os empreendimentos brasileiros em África é uma mesma relação imoral de exploração e desinteresse por problemas locais. Embora seja complicado definir a relação entre Brasil e países africanos como uma relação colonial é evidente que ela se aproveita de desigualdades estruturais criadas pelo colonialismo e reproduz preconceitos, identidades e elementos criados no bojo da expansão colonial europeia.

 

Esta desigualdade, me parece, fica explícita também em um segundo lance de segregação, que se dá através dos meios de comunicação. Sempre tivemos pouquíssimas informações e análises sobre acontecimentos, positivos ou negativos, em países africanos. Para o jornalismo econômico, por mais que seja um vastíssimo continente, parece que a África nem existe. Depois da morte de Nelson Mandela as notícias sumiram de vez. Mesmo na internet, onde há um bombardeio de notícias e não há limite de tempo, como em um telejornal, dificilmente encontramos nos grandes portais informações, por exemplo, sobre os números e os impactos da pandemia na África. Como você enxerga os efeitos desta invisibilidade midiática?

Essa é uma pergunta interessante para a qual não sei se tenho uma resposta satisfatória.

Primeiramente, não acho que podemos separar o jornalismo (sua conformação institucional, econômica e política, sua prática diária e a formação dos profissionais que neles trabalham) dos interesses nacionais de cada país e do imaginário político da elite intelectual que ele majoritariamente representa.

Em outras palavras, penso que a falta de interesse do jornalismo brasileiro pelo continente africano é resultado do processo de formação da identidade brasileira e de um projeto nacional focado nas representações sobre o que seria um país desenvolvido.

Ensaio do historiador e cientista político Achille Mbembe. Publicado no Brasil em 2018, pela editora n-1 edições.

Esse tipo de relação entre o jornalismo tradicional e os problemas nacionais não é exclusivo do Brasil e podemos pegar o exemplo contrário para iluminar o que quero dizer. Se no Brasil há um completo desinteresse pelo continente africano, nas antigas metrópoles europeias o problema se inverte. As mídias francesas, inglesas e portuguesas, por exemplo, produzem incessantemente matérias e reportagens sobre suas antigas colônias e alimentam suposições sobre um imaginado laço afetivo, econômico e político entre essas regiões do globo. O tom de grande parte das reportagens passa por uma ideia paternalista sobre a pobreza dos africanos, a fome que perpassa o continente e os inúmeros problemas estruturais que esses países ainda possuem. Essa narrativa acaba por repor antigos problemas sobre novas formas, reproduzindo percepções passadas sobre o primitivismo, atraso e tradicionalismo de populações africanas e contrastando com a riqueza, desenvolvimento e racionalismo europeus.

Entretanto, se grande parte da identidade europeia foi construída em sua oposição com áreas “atrasadas” do globo e atualmente é reforçada por meio da atualização dos termos dessa relação, no Brasil, a construção da nação soberana e de seu projeto para o futuro passa pelo esquecimento e negação de nosso passado colonial. Não foi à toa que uma das primeiras medidas pós-abolição (período em que o Brasil procurava outro modelo de desenvolvimento para substituir aquele baseado na escravidão) foi trazer imigrantes europeus. Pouco sabemos sobre a realidade de outros lugares do globo, mas somos cotidianamente informados sobre os acontecimentos nos Estados Unidos e na Europa. Nem mesmo quando o governo Lula abriu a porta dos mercados africanos para empresas brasileiras, a mídia deu a devida atenção para esses lugares ou para os problemas que o projeto desenvolvimentista brasileiro levou junto consigo. O projeto de país que até hoje seguimos é aquele que busca apagar nossas heranças coloniais e vemos isso refletido não apenas nos interesses de grandes jornais, mas também em outras esferas. Muitos projetos de pesquisa em universidades, acordos entre governos ou construções de políticas públicas buscam produzir analogias, comparações e resoluções a partir de relações com a Europa e os EUA.

De qualquer modo, devo dizer que esse cenário passou por alterações nos últimos anos, especialmente depois da lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do Ensino de História da África nas escolas de todos país. Isso não só obrigou acadêmicos brasileiros a produzir conteúdo para tais disciplinas, como colocou um novo conjunto de problemas para a discussão na esfera pública brasileira. Nesse último aspecto também temos que salientar o papel do movimento negro que vem obrigando, cada vez mais, a discutirmos tais questões.

A pandemia do Covid-19 não pode ser dissociada dessas questões e a ausência de dados sobre o continente africano nos nossos jornais só expõe aquilo (e aqueles) que consideramos importante como sociedade.

 

Quais as informações e impressões que chegam até você a respeito da pandemia? A partir destes relatos, para além das questões associadas à infraestrutura, como você tem percebido os impactos deste evento global nas representações e nos tantos universos simbólicos locais?

Um dos grupos do qual faço parte – o Centro de Estudo em Migração Internacional (CEMI), coordenado pelo prof. Omar Ribeiro Thomaz da Unicamp – tem mobilizado uma rede de contatos em busca de relatos, narrativas e análises da pandemia em diferentes partes do mundo, tentando, justamente, descentralizar essa narrativa extremamente focalizada nos chamados países de primeiro mundo. O grupo, que conta com pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e em diferentes níveis de formação, já produziu relatos de mais de 30 países e o que temos descoberto é a incrível variedade de experiências locais dessa pandemia, fazendo com que seja difícil falar em uma pandemia global, mas em diferentes eventos epidemiológicos que variam de acordo com as histórias, culturas e contextos econômicos e políticos das localidades afetadas.

Nesse sentido, o que os relatos nos mostram é a incrível capacidade de incorporação da pandemia como parte integrante do cenário político local. Assim, a “politização da pandemia” tão discutida no Brasil constitui-se mais como regra do que como exceção. Penso que uma importante contribuição desses relatos é mostrar como a pandemia têm desvelado uma crise global de representação política e de acirramento das desigualdades sociais que alimentam e são alimentadas por aquilo que podemos chamar de narrativas obscurantistas sobre a pandemia. No caso brasileiro, são as já conhecidas fake news.

Em muitos países com os quais estamos trabalhando, as pessoas vivem com a renda que conseguem diariamente e não existe a possibilidade de se garantir um estoque alimentar ou fazer um planejamento mensal.

No Sudão do Sul, por exemplo, país que passa por idas e vindas de uma guerra que já dura sete anos, é praticamente impossível se garantir o isolamento social. Além do mais, o país de 11 milhões de pessoas tem uma expectativa de vida de 57 anos e apenas 2% da população pode ser considerada como grupo de risco de mais de 65 anos. Se grande parte do debate do isolamento social gira em torno de uma estratégia internacional para evitar a saturação dos sistemas públicos e privados de saúde, como essa estratégia pode ser levada a cabo em um país como o Sudão do Sul, que não possui qualquer sistema de saúde que possa vir a ser saturado? Uma piada corrente entre os sudaneses é o fato de que o país possui apenas quatro ventiladores mecânicos e cinco vice-presidentes em exercício. Nesse caso, pode-se dizer que o isolamento social e suas consequências, fome, desemprego e recessão, pode ser mais danoso do que a própria doença. É o inverso do que o ocorre no Brasil, por exemplo, onde o SUS tem recebido e tratado a maior parte dos doentes.

Curva de casos confirmados da Covid-19 na África. Fonte: The Elephant. (Clique para ampliar)

Também temos recebido relatos de localidades nas quais a própria população tem criado métodos para assegurar o controle da doença, sem ajuda do Estado ou de agências internacionais. No norte de Moçambique por exemplo, o isolamento social foi a solução adotada após antigas lideranças das aldeias e algumas pessoas influentes, curandeiros e conhecedores de raízes curativas, decidirem cercar as aldeias através de um rito de proteção do território, muito utilizado para feitiços ou dos maus olhares dos inimigos da própria comunidade ou do território ao redor.

Essa pluralidade de situações tem escancarado desigualdades sociais, políticas e econômicas.

No Malawi, por exemplo, a pandemia chega em um momento de grande turbulência política. A eleição presidencial de 2019 foi recentemente anulada pela suprema corte após vários meses de protestos que bloquearam as vias das maiores cidades, paralisando grande parte da economia do país. A Suprema Corte decidiu repetir a eleição agora em junho e o isolamento proposto pelo presidente Peter Mutharika, vencedor das contestadas eleições e que continua até agora no cargo, foi percebida como uma nova tentativa de sabotar os protestos e cancelar o novo pleito. A desconfiança generalizada sobre a elite política, somada ao imenso impacto econômico da epidemia que se desdobra com especial dramaticidade entre os mais pobres, junto com o ineficiente sistema de monitoramento e testagem desses países faz com que percepções sobre a desigualdade social, política e econômica abram espaço para diferentes narrativas conspiratórias sobre a pandemia. No Malawi, a aparente ausência de casos reforça a percepção de que a pandemia é inventada por uma elite política sedenta por poder. Em outros países essas teorias conspiratórias buscam explicar por que determinados grupos sociais são mais ou menos afetados pela COVID-19 e se espalham facilmente pelos grupos de Whatsapp.

No Brasil, embora algum desses fatores também estejam presentes, a produção, articulação e disseminação dessas teorias é capitaneada por um grupo político articulado que busca um projeto de poder antidemocrático. Eles se aproveitam dessa situação extraordinária e dessa base social suscetível à disseminação dessas notícias para desacreditar organismos internacionais, metodologias científicas e profissionais de saúde de modo a manter-se no poder.

 

*Inácio Dias de Andrade é antropólogo formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pós-doutorando do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador do CANIBAL: Grupo de Antropologia do Caribe Global, coordenado pelo Prof. João Felipe Gonçalves da USP, e pesquisador-colaborador do Centro de Estudo de Migrações Internacionais (CEMI) da UNICAMP, coordenado pelos professores Omar Ribeiro Thomaz e Bela Feldman-Bianco da Unicamp. Inácio Dias de Andrade tem atuado principalmente com os seguintes temas: Moçambique, África Austral, Desenvolvimento, Modernidade, Relações Raciais, Estudos de populações africanas, Antropologia Urbana, Antropologia da Política, Movimentos Sociais, Urbanização, Arquitetura e Fluxos e Políticas Globais.