Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.
No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.
Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:
– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;
– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;
– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.
Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.
Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.
Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.
Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.
A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.
Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.
Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.
Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.
Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência
No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.
Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.
Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.
Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.
Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.
A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.
Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.
Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.
Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.
As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência
Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.
Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.
O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.
Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.
Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.
Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.
Por fim, a História
Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.
Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.
Referências:
ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.
DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.
MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.
ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.
PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.
ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.