Carnavalize-se: o tesão está na RUA – Resistência, União e Alegria

Em um país no qual a alegria sempre foi percebida como um instrumento da sobrevivência e da resistência, o carnaval foi alçado a um espaço de encontros, representações, críticas, sustentações e subversões.

O fascismo, ao contrário, sempre foi a celebração do rígido, do uniforme, do previsível. Sua estética de ângulos retos e linhas duras, da marcha cadenciada, da obediência coreografada. Historicamente ele não tolerava o desvio, o grotesco, a ironia – elementos essenciais da tradição carnavalesca.

No carnaval, a hierarquia aparentemente se dissolvia, os signos eram embaralhados e o poder, ridicularizado. Não por acaso, regimes fascistas sempre buscaram sufocar ou controlar as artes e expressões populares, temendo suas capacidades de desagregarem os alicerces do autoritarismo.

Isso mudou.

Em tempos de ameaças autoritárias pulverizadas e organizadas pelo planeta, compreender o carnaval – enquanto fato social na atual conjuntura brasileira – como um antídoto ao fascismo local significaria reconhecer que a sua estética do excesso, a sua política da brincadeira e a sua ética da transgressão seriam, por si só, formas de resistência à rigidez dos que pretendem restringir as liberdades para perpetuar a injustiça social do “mercado”, cada vez mais sanguinário.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Entretanto, o neofascismo e o neonazismo têm se massificado nos últimos quinze anos exatamente porque incorporaram em sua linguagem – desde os tempos em que se restringiam à deep web – o escárnio, o desvio, o grotesco, a ironia. Cultivo nítida a leitura de que esse processo, tal qual o reconhecemos em 2025, só foi possível em função da sua relação simbiótica com a massificação da internet e, em um segundo momento, das redes sociais virtuais.

Um fosso inédito foi aberto pela última revolução tecnológica. De um lado, uma juventude interessada nas novidades, como sempre, mas extremamente privilegiada – que teve acesso material aos recursos necessários nos primórdios da internet, enquanto diversão livre e descomprometida. Do outro, o universo adulto de então, que historicamente ditou os rumos das novas tecnologias e estava alheio à revolução que ocorria. Assim, pela primeira vez na história da humanidade, o controle sobre uma revolução tecnológica não ficou nas mãos dos adultos.

Sarcasmo, ironia, inconsequência, o grotesco, medo, ansiedade, falta de limites e delírios de onipotência são predicados facilmente encontrados em jovens e em carnavais desde sempre. Assim, ao longo dos últimos trinta anos, o ethos da internet foi sendo configurado simbolicamente com tal regressividade.

O pior? Uma regressividade simbolizada pelo universo emocional de arrogantes adolescentes da elite econômica mundial. Quando alguns deles se tornaram bilionários “brincando” e ficaram cada vez mais poderosos enquanto envelheciam, provavelmente se perceberam avalizados e aprovados num suposto “grande teste da vida”. Acreditaram que não precisavam mudar, a reverem suas visões de mundo, a aprenderem, a serem humildes diante do desconhecido. Eles não foram educados pela vida real, não tiveram desejos frustrados o suficiente, não foram castrados pela cultura, pelas leis, sequer foram submetidos ao contraditório. Eles fabricaram, sem resistência alguma dos Estados nacionais e de órgãos internacionais um novo mundo no qual são reis, déspotas.

Hoje, o que temos é uma confraria com meia-dúzia de moleques, entre 30, 40 e 50 anos de idade, controlando os destinos de países e do planeta. Suas ações são, eternamente, uma brincadeira, ainda que lancem bilhões de seres humanos no abismo. Tal revolução promoveu uma fratura global que se consolida, nos dias atuais, no poder assustador adquirido pelas Big Tech que ajudaram a construir e, agora, abertamente legitimam e promovem o neofascismo e o neonazismo. Do sonho de uma internet livre, que seria uma difusora de conhecimento e da liberdade, passamos aos monopólios desregulados de grandes corporações comandadas por regredidos com aspirações messiânicas e totalitárias. No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo propus uma extensa análise a esse respeito.

Fiz essa digressão porque, ao escrever sobre o carnaval em tempos sombrios, penso que devemos reconhecer que o fascismo se carnavalizou e, talvez por isso, em larga medida, popularizou-se. Ele propala às massas – de fato, é promovido pelo grande capital nas redes sociais virtuais – o pensamento mágico; não enquanto fantasia, mas como força de concretude. Vende-se, assim, com as mais sofisticadas técnicas de marketing uma História mentirosa, falsa, deturpada, delírios, uma realidade alternativa, um Brasil paralelo, uma Terra plana. Como se instalassem, desse modo, um chip nos cérebros de milhões de pessoas que, ao contrário do que lhes propiciaria o carnaval, são aprisionadas em um universo paralelo de negação, cujo combustível são o medo e o ódio, porém, que os liberta naquilo que descrevo como uma psicose compartilhada.

Essa estratégia sádica do capital após a crise de 2008, portanto, é o exato oposto daquilo que ele apregoa e vende. Ela não é libertária do ponto de vista econômico, filosófico e sociopolítico, mas uma ação doutrinária sem precedentes, cuja dominação é percebida cognitivamente como libertadora por aqueles que passam a fazer parte do seu rebanho, da sua seita terrorista e, por isso, a defendê-lo até à morte, sem qualquer consciência de que o esteja fazendo. Inclusive, com alto grau de suscetibilidade a tais discursos de ódio estão aqueles que foram frustrados, precarizados e marginalizados pelo neoliberalismo – anos 1980-90 -, que estavam com muita raiva de “tudo que está aí”. Portanto, o fascismo contemporâneo é um fenômeno de massa.

Entretanto, apesar de apresentar-se como um bufão com uma máscara barroca, o fascismo sempre se fundou, e assim continua, no medo, na covardia, na violência e na homogeneização, enquanto o carnaval, de fato, é um espaço de multiplicidade e coragem, uma pedagogia do descontrole onde a alegria da partilha é um ato político, não o ódio. O fato social carnaval nos ensina que o riso não é apenas uma manifestação do prazer e da alegria, mas também uma arma contra as forças da necropolítica contemporânea que operam aquilo que chamo de ultraliberalismo.

O fascismo carnavalizado continua nadando de braçada na internet, no tanque que lhe foi fabricado e tem sido ampliado pelas grandes corporações. Já ao carnaval cabe o verdadeiro espaço público: as ruas, praças e avenidas. Nas frestas dessa folia, músicas e ideias sempre surgiram para confrontar ditaduras, velhos moralismos e a rotina violenta promovida pelo status quo brasileiro. Por isso, a presente discussão se tece no cruzamento entre o desejo de liberdade – o uso do riso como tática de resistência – e a consciência de que as festas populares, especialmente o carnaval, também guardam estruturas de poder e hierarquia. Para tanto, contraponho duas obras que julgo complementares e essenciais para compreendermos a importância crescente de nos carnavalizarmos na atual conjuntura brasileira e mundial.

I. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito

Um dos pilares da sociologia brasileira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, em Carnaval brasileiro – o vivido e o mito (1992), investiga a dualidade entre a estrutura concreta do carnaval e a imagem idealizada que o envolve. Enquanto o mito sugere uma suspensão das hierarquias sociais e a liberdade irrestrita dos foliões, a realidade demonstra que a festa, ao invés de subverter a ordem, a reafirma. A autora desmonta a visão de que o carnaval seria um espaço de inversão social, mostrando que, apesar da aparência democrática, a festa segue reproduzindo desigualdades e mantendo formas de exclusão.

A análise parte do estudo histórico da transição do “entrudo” português para o carnaval moderno. O entrudo, marcado por brincadeiras desordenadas e interações comunitárias, foi gradualmente substituído por um modelo de festa organizado e disciplinado, especialmente sob influência da elite europeia. No Brasil, esse processo acompanhou a urbanização e o crescimento econômico, resultando na consolidação do carnaval como um grande evento nacional. Enquanto em Portugal a festa perdeu força, no Brasil ela se institucionalizou e se tornou um dos principais símbolos culturais do país. No entanto, essa hegemonia não ocorreu sem disputas. O controle sobre a festa passou a ser exercido por empresários, políticos e patrocinadores, tornando-a menos espontânea e mais voltada ao espetáculo do que à participação popular livre.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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O mito carnavalesco é sustentado pela ideia de que, durante a festa, diferenças de classe, raça e poder desaparecem, criando uma sociedade alternativa, ao menos temporariamente. No entanto, Queiroz demonstra que essa visão esconde o funcionamento real do carnaval. O caso das escolas de samba do Rio de Janeiro é ilustrativo: surgidas em comunidades periféricas, essas escolas foram progressivamente apropriadas por gestores e investidores externos, afastando os sambistas das decisões estruturais. Os desfiles, muitas vezes exaltados como expressões genuínas da cultura popular, seguem regras rígidas, são avaliados por critérios técnicos e se tornam verdadeiros espetáculos empresariais. O mesmo ocorre nos bailes carnavalescos, onde a segregação se mantém evidente – os ingressos limitam a participação de determinados grupos, enquanto os espaços mais prestigiosos são reservados à elite.

Desde o século XIX, o carnaval foi incorporado à construção da identidade nacional. O movimento modernista e o Estado Novo ajudaram a promovê-lo como um símbolo da brasilidade, destacando sua diversidade e alegria. Entretanto, Queiroz aponta que essa valorização cultural não implica maior inclusão social. O carnaval é exaltado como manifestação popular, mas os setores populares permanecem distantes da sua administração e lucratividade. Sua institucionalização fortaleceu a festa como um evento oficial, mas também restringiu a autonomia dos foliões.

Ao examinar escolas de samba, blocos e bailes, Queiroz conclui que o carnaval não rompe com a estrutura social vigente, mas a reforça. As normas que regem os desfiles, a segregação econômica dos eventos e o controle exercido por patrocinadores e governantes revelam que a festa está longe de ser um momento de anulação das desigualdades. Como afirma a autora, o mito carnavalesco reúne observações, formula noções e constrói uma imagem social atraente, refúgio no qual os indivíduos, uma vez por ano, encontram o prazer de uma existência alegre e livre, oposta à penosa aceitação das desilusões do cotidiano. Mas é apenas uma imagem… (QUEIROZ, p. 195).

A obra desmonta a noção de carnaval como um espaço de liberdade plena, revelando sua complexidade estrutural. Queiroz demonstra que, por trás da aparência festiva, persistem as mesmas hierarquias e disputas que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, podemos inferir, o Brasil e o mundo contemporâneos, sob a ameaça do fascismo carnavalizado. Sua análise desafia a visão romantizada da festa, convidando o leitor a enxergar o carnaval não apenas como celebração, mas como um fenômeno social marcado por tensões e dinâmicas de poder. O contraste entre o vivido e o mito expõe uma festa que, ao invés de instaurar uma realidade alternativa, reflete as contradições da própria sociedade que a celebra.

II. O carnaval à luz de Sem tesão não há solução, de Roberto Freire

Em Sem tesão não há solução (1987) – expressão lida pelo autor em um picho no muro de um cemitério de São Paulo -, Roberto Freire relata que nunca se submeteu passivamente à violência imposta pela ditadura militar no Brasil. Dissidente e indignado, enfrentou o regime de todas as formas possíveis, sendo perseguido, preso, torturado e testemunhando a morte de amigos. Diferente de alguns que suportaram a repressão sem recorrer às drogas, ele admitiu ter se tornado alcoólatra e usuário de diversas substâncias para suportar a dor e o medo. No entanto, atribuiu também ao álcool o fato de não ter enlouquecido ou cometido atos extremos.

Ao longo de dez anos de terapias intensas, conseguiu substituir essa dependência por uma ideologia transformadora, que o ajudou a canalizar sua energia vital e criativa naquilo que ele chama de ação revolucionária. Sobretudo esses trabalhos que culminaram na Somaterapia me restituíram o necessário tesão para levar adiante e com armas novas, mais eficientes, a luta contra o autoritarismo reativo que a violência do fascismo deixou infiltrado em mim. (FREIRE, p.78).

Assim, tesão, muito simples e resumidamente, quer significar hoje o que sentimos sensualizando juntos a beleza e a alegria em cada coisa com a qual entramos em contato e com a qual nos comunicamos. (FREIRE, p. 12).

Quando Roberto Freire propõe a ideia de que o “tesão” equivale a uma dimensão essencial da vida, algo que transcende o mero desejo sexual e se converte em uma energia vital, ele lança luz sobre múltiplos fenômenos culturais e políticos. Dentro desse horizonte, observar o carnaval brasileiro — símbolo de uma vitalidade quase anárquica em suas manifestações — por meio do prisma freiriano significa deslocar o foco dos aspectos organizacionais da folia para aquilo que Freud, Reich e o próprio Freire evocam: a fusão entre o prazer e a reinvenção da convivência social.

No livro, Freire defende que o tesão não se limita a um substantivo ligado somente à excitação carnal; além, o tesão se desdobra como força que desperta o entusiasmo, a criatividade e a vontade de viver. Aproxima-se, assim, do que ele chama de “ludicidade espontânea”, um modo de brincar e jogar com a vida que ultrapassa as fronteiras do produtivismo e da competitividade. Dessa perspectiva, portanto, reconheceríamos o carnaval enquanto uma explosão de cores, gestos, melodias e, sobretudo, participação coletiva. O fato social que estrutura um palco central daquilo que Freire poderia denominar de uma dimensão tesuda da existência.

1 – O carnaval como exaltação da alegria e do prazer

Um dos primeiros pontos que Freire sublinha é a fusão entre a busca do prazer e a rejeição da opressão, sejam suas raízes familiares, políticas ou religiosas. Ele critica diretamente as formas autoritárias que se manifestam nos lares e na sociedade, sustentando que o tesão é o antídoto mais visceral contra a normatização. No carnaval, essa crítica ganha concretude: a fantasia, o riso e a irreverência subvertem temporariamente as hierarquias, o status quo. Nele, milhões de pessoas se permitem vivenciar “o tesão de estar vivo”, com “os sentidos em estado de alerta, de prontidão, antenados, numa espécie de ereção vital, somática, geral.” (FREIRE, p. 11).

Ainda que os grandes interesses econômicos busquem “domesticar” a festa, o impulso profundo do carnaval permanece ancorado em sua raiz libertária, enquanto expressão popular. Um fato social delineado enquanto válvula de despressurização coletiva que ecoa, em parte, a proposta freiriana de que “tesão” não é só impulso erótico, mas sim alegria e prazer diante da vida, vontade de experienciar um campo coletivo que expande substancialmente a satisfação pulsional em sublimação e ato.

2- O combate ao autoritarismo nos corpos

Freire analisa, em diversos trechos, a forma pela qual a sociedade burguesa e o poder político instituído reprimem a livre expressão corporal. Ele argumenta que a família e as autoridades usam o moralismo para bloquear uma subjetividade revolucionária, impedindo as pessoas de se reconectarem a sua pulsão natural de prazer. Ora, durante o carnaval, por alguns dias, a liberação dos corpos age como uma ressurreição dessas forças vitais, ainda que efêmera. Abundam as expressões culturais, os excessos, as músicas, as fantasias, a nudez parcial, a sensualidade, a diversão ruidosa, a brincadeira franca, e — mesmo sob vigilância midiática ou institucional — o carnaval faz emergir a capacidade das pessoas de ocuparem as ruas e se encantarem pelos gestos e pelos encontros casuais, apesar da violência urbana.

Nesse sentido, no fato social carnaval, pulsa uma contracorrente às disciplinas impostas pela sociedade, mas autorizada pela cultura, que, por sua vez, promove uma suspensão parcial do supereu de cada folião. Tal contracorrente coincide com o pensamento do anarquista Freire, para quem “viver com tesão” é o oposto da obediência aos padrões de poder. Assim, nas avenidas, nos blocos de rua ou nos salões, configura-se um estado manifesto de gozo de existir, de alegria, ainda que fugaz.

3 – A alegria revolucionária não é maníaca, nem oriunda do consumismo

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Para Freire, a fantasia e a imaginação lúdica são ferramentas fundamentais contra o desamor e contra qualquer forma de escravização emocional. O que acho mais bonito e vejo no amor dos casais revolucionários é como eles o vivem de forma lúdica, brincando e jogando sempre. A ludicidade é a mãe do tesão e, ao mesmo tempo, o pai da criatividade. É o processo de criação, no amor, que garante a sua sobrevivência (FREIRE, p. 112).

Se ele insiste que a criatividade do corpo e do afeto nos torna revolucionários, no carnaval esse é o mecanismo por excelência: as fantasias – sexuais, nos termos psicanalíticos, e literais, na forma de trajes – e a abertura para o encontro transformam as ruas em cenários de pura potencialidade. Muda-se de identidade, subverte-se o gênero, desloca-se a moral, e o que resta — no cerne — é a pulsação do desejo por uma vida sem barreiras. A força que une a ludicidade espontânea do carnaval e o “tesão” descrito por Freire nada mais é que a recusa total de encarar a vida como uma repetição de práticas rígidas, sem cor e sem brilho. Não é uma incoerência estúpida reclamar e um cinismo irresponsável ouvir reclamações sobre a falta de prazer sexual num corpo e numa pessoa para a qual tudo o mais na vida funciona sem nenhum prazer?” (FREIRE, p. 71).

Desta feita, é essencial o alerta de que tais práticas rígidas, sem cor e sem brilho são aquelas às quais estamos submetidos na rotina de trabalhos precarizados e exaustivos, das redes sociais virtuais, do consumismo, da ostentação, do narcisismo patológico e ansiogênico que assola o mundo contemporâneo, enquanto sintomas psicossociais nos indivíduos que encarnam as manifestações do ultraliberalismo e as suas aspirações totalitárias.

III. Carnavalize-se

O carnaval nos lembra que a alegria é um direito, um ato de resistência e, sobretudo, uma necessidade. Em tempos em que o ultraliberalismo promove o ódio e a violência, recobrar o tesão pela vida, pelo encontro e pelo outro torna-se não apenas um desejo, mas um caminho político à sobrevivência. Se o fascismo se apropriou da estética do grotesco e da ironia para esvaziar o riso de sua potência libertária, nos cabe recuperar o sentido mais profundo do carnaval – aquele que não apenas desorganiza, mas que reinventa, que não apenas subverte, mas que liberta.

Freire nos ensina que sem tesão não há solução, e isso não é apenas um mantra hedonista, mas um chamado à insubmissão diante do cinismo e da apatia contemporâneos. O carnaval é esse espaço onde o corpo se liberta, onde a alegria se expande e onde a criatividade floresce sem medo. Não se trata de um devaneio efêmero, mas de uma recusa contundente à normalização do medo e da destruição imposta pelo ultraliberalismo. Se o poder nos quer exaustos e obedientes, o carnaval nos ensina a nos mantermos vivos e insubordinados.

Portanto, carnavalizar-se é mais do que uma celebração passageira; é um modo de existência, um gesto de reivindicação da liberdade em sua forma mais vibrante. Em um mundo que quer nos tornar autômatos produtivos, a alegria é, sim, revolucionária. O riso, o prazer e o excesso não são apenas válvulas de escape – são ferramentas para reocupar o espaço público e reivindicar a nossa própria existência. Afinal, enquanto houver corpos que dançam, gargalham e celebram a pluralidade da vida, haverá uma real possibilidade de transformação. Isso é o que eles temem.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Roberto. Sem tesão não há solução. São Paulo: Trigrama Editora, 1987.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

 

Educação é cultura

Por Samuel Joaquim *

 

Ao longo dos anos, há uma frase recorrente nos cafés, padarias, bares e restaurantes, redes sociais – até nas próprias escolas: “o que falta no Brasil é educação”. Qualquer um de nós, em algum momento, já ouviu isso. Em geral, as pessoas estão se referindo à educação formal: ensino fundamental, médio e superior. Pois bem: falta? Falta. Mas é só esse o problema? É só isso que falta? Se olharmos para as classes mais abastadas do país, com boa formação e nos melhores empregos e cargos públicos, veremos lá a imagem de um país pronto para evoluir se “abrir a porteira” da educação de qualidade para todos? Ou veremos o retrato de um grupo que não enxerga na cultura e nas artes a mesma importância que conhecer matemática ou economia para promover uma sociedade evoluída com paz e igualdade?

Fazendo essa observação, possivelmente você verá uma elite que se enxerga como uma verdadeira casta superior, que não dá igual valor à vida de todos e faz questão de não perder seus privilégios, mesmo que isso signifique em última instância uma sociedade mais violenta. Mesmo que signifique não poder andar a pé tranquilamente pelos centros decadentes das cidades. E é importante salientar aqui: essa elite em geral teve toda educação formal a que se pode ter acesso. Então, só podemos concluir que falta algo a mais. A falta de empatia e do senso de coletividade não são supridas simplesmente numa disciplina de geografia em que se fala sobre estatísticas de pobreza e índices de desemprego.

Não que a “letra fria” da educação seja desimportante: um país não consegue se desenvolver sem o ensino tradicional. Bons profissionais de engenharia são fundamentais para alavancar a indústria. A saúde para todos não é possível sem médicos preparados. O Estado precisa de bons administradores e economistas. Quase nenhum cidadão consegue bons empregos sem uma formação técnica ou acadêmica, ficando a eles reservados os empregos de baixa especialização e, consequentemente, baixa remuneração. Além disso, obviamente não há como corrigir os erros do passado sem o conhecimento de história.

Mas a educação não termina ao fim da última aula do dia, do período letivo ou mesmo do curso de graduação. O conhecimento formal é parte integrante de algo maior, a cultura, e um grande erro que se comete é não enxergar educação e cultura como uma só coisa. Afinal, a cultura pode ser definida como a soma não só do conhecimento, mas também dos valores, sentimentos, artes, leis, costumes e hábitos das pessoas. O ser humano está constantemente aprendendo, somando e relacionando esses diferentes aspectos para viver sua vida. Assim, principalmente nessa época de quarentena e isolamento, precisamos nos apegar à cultura de forma mais ampla, não só como um passatempo, mas também como uma forma genuína de evolução, desenvolvimento da empatia e libertação. Para “aguentarmos o tranco” desses tempos difíceis – e, quem sabe, nos tornarmos uma sociedade mais igualitária.

 

A cultura e a arte como geradores de empatia

Gostaria de começar com um exemplo aparentemente banal, uma experiência própria: quando li o livro “Corações Sujos” de Fernando Morais, que fala sobre uma seita criada no Brasil pela comunidade japonesa após a Segunda Guerra que não admitia a derrota do Japão, descobri que a sede desse agrupamento ficava a poucas quadras de onde moro em São Paulo. Muitos consideram essa uma informação inútil isoladamente. Mas eu soube que, a menos de um quilômetro de casa, estava a sede de um agrupamento que assassinou dissidentes (alguns inclusive no próprio bairro). Soube que o horror, poucas décadas atrás, foi meu vizinho – mortes sem sentido ocorreram logo ali, atravessando algumas ruas, por pura ignorância. E com isso, me senti imbuído de um sentimento bem contundente: a ignorância precisa ser dizimada para que a relativa paz que hoje há no meu bairro possa ser conservada e ampliada. E, extrapolando, também a paz no Mundo.

Alguém poderia dizer que o livro é fruto de uma excelente pesquisa histórica feita pelo autor e que, portanto, poderia ser considerado até um instrumento de educação formal e utilizado tranquilamente em sala de aula como material de apoio ao ensino de história. Porém, a conclusão a que eu cheguei vem com uma carga de experiência pessoal única somada ao aspecto histórico, que me causou um impacto bastante diferente e próprio. Isso se deve à minha empatia, a minha capacidade de me colocar dentro dessa história para além da narração factual, já que eu constantemente passo pelo local citado no livro e que nunca me remeteria a um lugar onde se planejavam assassinatos, não fosse meu conhecimento adquirido. Uma coisa se casa à outra para melhorar minha percepção nessa micro-história.

Talvez um outro exemplo que permita enxergar melhor a função da cultura é citar uma obra de arte, digamos, não-factual. Um dos meus filmes favoritos é o filme “Laranja Mecânica”, dirigido pelo aclamado cineasta Stanley Kubrick. É um filme totalmente ficcional. Eu sei que nada do que se passa ali aconteceu realmente. Eu sei que as drogas da “ultraviolência” não existem (ao menos, não com aqueles nomes), que não existe Alex DeLarge, e que nunca existiu um medicamento capaz de inibir a maldade em um chefe de gangue e assassino cruel a ponto de ele se sentir enjoado sempre que pensar em cometer alguma atrocidade.

Porém, as cenas são retratadas de forma assustadoramente realística: eu sei que há o uso de drogas que podem exacerbar o comportamento violento na vida real. Eu sei que há a banalização da violência no dia-a-dia e que ela faz milhões de vítimas todo ano no mundo. E sei que há o sistema prisional atual como tentativa de educar os criminosos a rever suas ações que os levaram até ali. Além disso, a trajetória do personagem principal ao longo da história me permitiu tirar uma conclusão que provavelmente nenhum livro de história faria com tanto impacto: mesmo que houvesse uma “cura científica da maldade”, um sistema prisional comprovadamente capaz de “corrigir” a vida de crimes de alguém, uma sociedade com cultura punitivista não seria capaz de aceitar de volta esse paciente curado.

O intrigante do filme é justamente a sua capacidade de nos causar empatia para com o personagem principal. No começo, acompanhamos a sua vida como um cruel líder de gangue para, depois, sentir o seu sofrimento pós-tratamento quando todos os seus desafetos do passado passam a discriminá-lo, muitos deles com sede de vingança. E, de certa forma, sofremos com ele, a ponto de o realmente reconhecermos como um ser humano (tal como nós), e não um monstro. Porém, ao nos enxergarmos de volta como os “cidadãos de bem” da sociedade fictícia do filme (spoiler: não existe o conceito de cidadão de bem numa democracia!), isso nos faz refletir: “ei, eu realmente me enxergo nessa sociedade! Estamos no caminho certo? Violência para combater violência funciona como comportamento e política de Estado?”. Esse questionamento, mesmo trazido por uma obra completamente ficcional, nos trás um novo tipo de conhecimento, com especial impacto na nossa inteligência emocional. E, nesse momento, a arte se torna uma forma legítima de complemento à educação.

Também, como músico, eu não poderia deixar de falar sobre a igual importância de outras artes como (oh!) a música. Uma canção (ou seja, uma música cantada) pode ter igual efeito a uma poesia ou a um romance: entendemos os versos que estão sendo cantados, interpretamos o significado e podemos identificar ali a nós mesmos, nos questionar, pensar na mudança que queremos a partir de sentimentos que aquelas palavras nos causam.

Mas e as artes mais abstratas, a música instrumental ou pinturas, sem aparente semântica, sem uma história contada com palavras ou imagens que podemos reconhecer de forma lógica? São elas artes menos importantes? Não. O princípio é semelhante. É possível aprender com as artes abstratas.

Por exemplo: cores fortes na pintura causam um impacto e tons pastéis dão sensação de conforto. Na música, sons harmônicos e em volume normal nos causam uma sensação de paz. Sons altos e inarmônicos, um sentimento de inquietude e aflição. Acordes maiores soam alegres, acordes menores soam tristes. Uma justaposição ordenada de sons, timbres e harmonias diferentes podem fazer você se sentir alegre e com vontade de dançar ao som de Hamilton de Holanda tocando um choro do Pixinguinha ou você exercitar um pouco a sua melancolia (que é tão importante quanto exercitar a alegria) com a Sonata ao Luar de Beethoven.

Assim, a arte (incluindo a abstrata) consegue ajudar a aflorar seus sentidos e sentimentos, de uma forma muito particular. E lidar com esses sentimentos, extravasá-los, é uma forma de se conhecer melhor e de saber o que você é capaz de sentir e se preparar melhor para quando esses mesmos sentimentos pegarem você de surpresa em outros tempos (note aqui a curiosa tangência das artes com a psicanálise). E a arte feita com esse intuito, do autoconhecimento, não doutrina: ela liberta. E é bom sentir pelo menos algum grau de liberdade em dias tão claustrofóbicos.

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* Samuel Joaquim é desenvolvedor de software e músico. Da primeira profissão tira seu sustento, da segunda, sua razão de ser. Pianista desde pequeno, teve o privilégio de estudar piano popular nos anos 2000 com o seu ídolo, Hercules Gomes, quando ele ainda era uma promessa da música na cabeça do aluno – antes de ser uma realidade para o Mundo como hoje. Integra o grupo paulistano Esquina Imaginária, que presta homenagem (de sua forma particular) ao cultuado movimento belorizontino Clube da Esquina.

 

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.