A engenharia social das Big Techs | Ultraliberalismo, extremismo e as origens do totalitarismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado em 2022, escrevi:

A sociedade globalizada tem nas novas tecnologias a sua infraestrutura racionalizável. Um alicerce cartesiano, técnico, científico e amoral, onde cada avanço é calculado, dando continuidade às disputas geoestratégicas e históricas entre nações, grupos organizados, etnias e corporações, pela primazia política no acesso aos recursos naturais, cada vez mais escassos. É em sua camada mais externa, portanto, visível e perceptível, campo sociocultural da moral e da ética – onde, até poucos anos atrás efetivavam-se as relações sociais numa forma aparentemente mais sólida e estruturada –, que ocorre o terremoto do sujeito das redes sociais virtuais. Fundamentalmente, diante do olhar atônito daqueles nascidos no mundo pré-globalismo.

Devido ao enorme avanço tecnológico em um curto espaço de tempo, em sua lógica micro e exponencial, houve uma alienação quase total das massas quanto às potencialidades e às realizações efetivas disto que chamamos de infraestrutura racionalizável nas novas dinâmicas globais. Alienação, esta, que atinge também setores mais aparentes dos Estados e da política institucional, enquanto possíveis agentes reguladores de ações socialmente temerárias.

Desdobrando o sentido da alienação a qual me referi, diante dos últimos acontecimentos, julgo pertinente o artigo que se segue.

A engenharia social das Big Techs | Ultraliberalismo, extremismo e as origens do totalitarismo

A engenharia social, uma técnica de manipulação psicológica para influenciar comportamentos e decisões de indivíduos e sociedades inteiras, tem sido amplamente utilizada no cenário global contemporâneo. Desde operações de inteligência de serviços secretos até campanhas de desinformação de poderosos grupos político-econômicos em larga escala, essa abordagem explora vulnerabilidades humanas e institucionais para alcançar objetivos estratégicos. Essa prática tem sido utilizada pelas Big Techs, especialmente alinhadas aos interesses da elite dos Estados Unidos, como ferramenta de preservação do poder em meio ao declínio da hegemonia geopolítica do país.

Do neoliberalismo ao ultraliberalismo

A transição do neoliberalismo para o ultraliberalismo representa uma radicalização das premissas econômicas e políticas que surgiram a partir da segunda metade do século XX. Embora ambos os conceitos estejam ancorados em uma defesa do livre mercado, da desregulamentação estatal e da primazia do capital privado, o ultraliberalismo aprofunda essas ideias, resultando em uma forma ainda mais extrema de concentração de poder econômico e de desmantelamento das instituições democráticas e sociais.

O neoliberalismo emergiu como uma reação às políticas intervencionistas do pós-guerra, baseando-se em teorias de economistas como Friedrich Hayek e Milton Friedman. Ele defendia a limitação da intervenção estatal na economia, a privatização de serviços públicos e a flexibilização das relações de trabalho. Essas ideias ganharam força durante os governos de Margaret Thatcher no Reino Unido e Ronald Reagan nos Estados Unidos, estabelecendo a crença de que o mercado, quando livre de regulações, seria capaz de autorregular-se e gerar prosperidade.

Contudo, o que se observou ao longo das décadas foi o aumento da desigualdade, a concentração de riquezas nas mãos de poucos e o enfraquecimento progressivo das redes de proteção social. As crises financeiras, como a de 2008, evidenciaram as falhas desse modelo ao demonstrar como a desregulamentação excessiva do sistema financeiro levou ao colapso global, afetando principalmente as populações mais vulneráveis, enquanto as elites econômicas continuaram a lucrar e a concentrar renda e poder.

O ultraliberalismo surge como uma resposta ainda mais radical a esse contexto, não apenas aprofundando os princípios do neoliberalismo, mas eliminando qualquer compromisso, ainda que ínfimo, com o bem-estar social e o equilíbrio democrático. No ultraliberalismo, o mercado não é apenas priorizado, mas passa a ser visto como o único regulador legítimo das relações humanas, superando até mesmo o papel de Estados e instituições democráticas. Esse modelo defende a financeirização extrema da economia, a especulação como motor central de acumulação de riqueza e a redução drástica de políticas públicas voltadas para o bem comum.

Diferentemente do neoliberalismo, que ainda operava sob a narrativa de “prosperidade compartilhada”, o ultraliberalismo abraça abertamente a desigualdade como um aspecto não somente inevitável, mas desejável, de uma sociedade onde o suposto mérito individual de bilionários e o acúmulo irrestrito de capital são exaltados, como se não se beneficiassem, historicamente, de desonerações, investimentos diretos de governos e dos avanços científicos oriundos de universidades públicas mundo afora. Esse modelo ultraliberal se manifesta de forma clara em empresas de tecnologia e finanças que operam sob lógicas monopolistas, como as Big Techs, que utilizam algoritmos para manipular mercados e comportamentos sociais, reforçando assim sua concentração de poder e controle informacional.

No plano político, o ultraliberalismo frequentemente se associa ao autoritarismo e ao neofascismo, pois, ao minar os fundamentos do Estado moderno como mediador de interesses sociais plurais, ele fomenta e organiza a extrema-direita, enquanto seu duplo que atua como escudo e capataz. Essa fusão ideológica pode ser observada em figuras como Jair Bolsonaro, Donald Trump e Giorgia Meloni, que, embora adotem discursos nacionalistas e de “defesa do povo”, implementam agendas econômicas de desmonte de direitos trabalhistas e de enfraquecimento das instituições democráticas.

Assim, a transição do neoliberalismo para o ultraliberalismo não é apenas uma evolução teórica, mas a intensificação de um projeto global de poder que busca consolidar a supremacia de uma elite financeira especulativa, enquanto desmantela progressivamente as conquistas sociais e os mecanismos de participação popular no processo político, conquistadas duramente ao longo do século XX.

Big Techs, controle informacional e ultraliberalismo

As Big Techs controlam os principais fluxos informacionais e, assim, exercem um poder inédito na manipulação de massas. Essa influência tem sido instrumentalizada para promover a ideologia ultraliberal que enfraquece regulações governamentais e deslegitima mecanismos democráticos de controle. A nomeação de figuras como Dana White, presidente do UFC, ao conselho da Meta, reflete essa lógica, pois White é associado a uma retórica extremista e associado aos valores de desregulamentação extrema.

Além disso, a Meta aboliu a checagem de fatos em sua plataforma nos EUA, substituindo-a por um sistema de “notas da comunidade”, inspirado no X de Elon Musk. Essa abordagem, apresentada como uma defesa da liberdade de expressão, enfraquece a verificação de informações e permite a proliferação de conteúdos desinformativos e extremistas.

O Google também demonstrou esse comportamento ao manipular, em dezembro de 2024, a cotação do dólar em sua plataforma, informando valores inflacionados durante o feriado, quando o mercado estava fechado. Outra evidência foi o caso de setembro de 2024, quando o Google ocultou informações de determinados candidatos políticos no Brasil, favorecendo candidatos de direita e extrema-direita enquanto ocultava perfis de centro-esquerda, sugerindo interferência algorítmica tendenciosa.

A pressão exercida pelo Google e pela Meta sobre o Congresso brasileiro para derrubar o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News, em 2023, exemplifica o modus operandi dessas empresas ao combater regulação. Durante 14 dias, as empresas promoveram campanhas massivas, incluindo ameaças de remoção de conteúdo e ataques direcionados a parlamentares para evitar a aprovação de uma legislação que buscava maior responsabilidade das plataformas digitais.

Extremismo e manipulação política

A ascensão da extrema-direita global, evidenciada por eventos como a eleição de Donald Trump e o avanço de líderes ultraconservadores na Europa e América Latina, está diretamente ligada à manipulação informacional promovida por essas plataformas. A crise financeira de 2007-2008 desempenhou um papel central nesse processo, pois intensificou políticas de austeridade e precarização social, fatores explorados por movimentos de extrema-direita que canalizaram o descontentamento popular para pautas identitárias e anti-imigratórias, em vez de questionar o neoliberalismo estrutural.

Essa estratégia discursiva não rejeita o neoliberalismo, mas explora ressentimentos em torno da globalização, do multiculturalismo e das imigrações de massas de sobreviventes – desalojados pelas guerras promovidas pelo capital – direcionando a frustração a minorias e enfraquecendo o debate democrático. Episódios como a invasão do Capitólio nos EUA e a destruição da Praça dos Três Poderes no Brasil refletem a ascensão do neofascismo nessa dinâmica global, como um leão de chácara violento, massificado e instrumentalizado para defender os projetos ultraliberais das elites financeiras locais.

No contexto latino-americano, além da retórica contrária ao multiculturalismo na globalização, há o uso de um discurso anticomunista delirante, no qual aqueles que defendem as instituições da democracia liberal, o socialismo democrático, o humanismo, as artes e a regulação do ultraliberalismo, inclusive das Big Techs, são frequentemente rotulados como inimigos da ordem social e da nação. Essa retórica não apenas deslegitima vozes críticas, a educação e a ciência, mas também fomenta um ambiente de violência extrema contra o pensamento crítico, em que qualquer oposição ao domínio corporativo e ao desmonte de direitos sociais é tratada como uma ameaça ao sistema que defendem, ainda que se julguem antissistema.

Esse é um enquadramento decisivo na anotação de que não há mais um neoliberalismo, mas um avanço à forma do ultraliberalismo, que se vale de mentiras e distorções massificadas, para doutrinarem setores das massas e arregimentarem as suas frustrações oriundas do neoliberalismo, que se tornou insustentável, após sua última crise mundial. Ao desviar o foco das consequências da desregulação econômica e da concentração de poder nas mãos de poucas empresas, esse discurso extremista protege interesses financeiros e políticos hegemônicos, enquanto ataca e enfraquece as bases do debate democrático e a busca por uma sociedade mais justa e equilibrada, inclusive com armas nas mãos e organizando o terrorismo doméstico.

O ultraliberalismo e a defesa da elite especulativa global

O ultraliberalismo promovido pelas Big Techs serve aos interesses de uma elite financeira global numericamente ínfima, mas com imenso poder sobre a economia e a política mundial. Essa elite utiliza o controle informacional e a manipulação algorítmica para manter e expandir sua influência, alimentando um ciclo de desigualdade econômica e injustiça social que, por sua vez, fomenta o extremismo e a polarização ideológica. Essa dinâmica reflete os valores e a visão de mundo do establishment WASP (White Anglo-Saxon Protestant), historicamente ligado ao domínio financeiro e cultural no Ocidente.

Imagem criada por “inteligência” artificial, pelo Café com Pepino.

O establishment WASP tem suas raízes profundas nas origens coloniais e racistas dos Estados Unidos e da Europa. No contexto norte-americano, por exemplo, a Ku Klux Klan (KKK) desempenhou um papel fundamental na preservação de uma hierarquia racial profundamente enraizada, defendendo uma sociedade segregada e branca, enquanto no Velho Continente, as potências coloniais europeias, como o Império Britânico e a França, impuseram um sistema de exploração baseado na subordinação racial e cultural das populações nativas. Esse legado colonial e racista, por sua vez, consolidou a supremacia econômica do Ocidente após a Segunda Guerra Mundial, com os Estados Unidos e o Reino Unido emergindo como os centros financeiros do mundo.

A ascensão de movimentos neonazistas e neofascistas, como a Alternativa para a Alemanha (AfD), a Frente Nacional (hoje Rassemblement National) na França, a Lega de Matteo Salvini na Itália e o Fratelli d’Italia-Alleanza Nazionale, liderado por Giorgia Meloni, ilustra a persistência de tais ideologias no cenário atual. Recentemente, em um artigo publicado no Welt am Sonntag, Elon Musk expressou apoio à AfD, partido de extrema-direita alemão que, desde 2021, é classificado pela agência de inteligência doméstica alemã como extremista. Musk, bilionário e dono de empresas como a Tesla e SpaceX, com cidadania americana, afirmou em um post no X (antigo Twitter) que “apenas a AfD pode salvar a Alemanha”. Esse posicionamento provocou a demissão de Eva Marie Kogel, editora de Opinião do jornal, que se afastou em protesto, ressaltando a importância da liberdade de expressão, mas também da responsabilidade jornalística.

O apoio de Musk à AfD se insere em um contexto mais amplo de apoio de figuras ultrarricas a movimentos populistas de direita, que não apenas defendem o desmantelamento das estruturas democráticas, mas também perpetuam um sistema de exploração global que favorece as grandes corporações, como demonstrado por Musk na sua postura em relação ao golpe de Estado na Bolívia em 2019. Ao comentar sobre o interesse de derrubar o governo de Evo Morales para garantir o controle sobre o lítio boliviano, Musk proferiu a frase “Vamos dar golpe em quem quisermos!”, em resposta a uma provocação sobre o impacto de sua influência econômica na região. Musk, ao apoiar uma agenda que almeja a exploração indiscriminada de recursos naturais em países latino-americanos, segue uma lógica de poder baseada no neocolonialismo, onde os interesses das elites financeiras globais se sobrepõem à soberania de nações e aos direitos das populações locais.

Em paralelo, o movimento neonazista na Alemanha, personificado pela AfD, segue em uma trajetória de negação da diversidade cultural e racial, mirando não apenas na desconstrução do Estado de bem-estar social, mas também na criação de um ambiente ideológico favorável à supremacia branca e ao ultranacionalismo. Esses movimentos têm ganhado força, particularmente com o respaldo de figuras como Musk, que, ao defender posturas antidemocráticas, alimenta uma narrativa global que visa consolidar ainda mais a elite especulativa global à custa dos povos marginalizados.

Ainda, a ideologia ultraliberal, impulsionada por figuras como Balaji Srinivasan, promove uma agenda ainda mais extrema: a substituição dos Estados modernos por feudos corporativos privados. Srinivasan defende a criação de microestados digitais e físicos, onde empresas e elites financeiras deteriam controle absoluto, abolindo a soberania estatal e os direitos garantidos pelas democracias constitucionais.

Esse conceito de “Estados em Rede”, promovido no Vale do Silício, não apenas despreza os princípios fundamentais dos Estados modernos, como os propostos por Rousseau em O contrato social, mas também retrocede ao modelo feudal de governança, no qual o poder era centralizado em poucas mãos e os direitos dos cidadãos eram praticamente inexistentes.

Essa filosofia, além de utópica e perigosa, já começa a se materializar em práticas como o projeto Próspera em Honduras, uma cidade privada que busca impor leis próprias em detrimento das legislações nacionais, gerando um ambiente de exploração e autoritarismo empresarial.

Essa aliança entre interesses financeiros e movimentos de extrema-direita é uma expressão do que pode ser entendido como uma globalização das elites, onde, ao contrário da globalização econômica que prometia falsamente prosperidade para todos, o que se consolida é um sistema ainda mais excludente, desigual e violento. Em um mundo onde o poder econômico está nas mãos de poucos, a manipulação de informações e a organização do extremismo se tornam instrumentos fundamentais para o controle social e político, criando condições para um ciclo interminável de concentração de riqueza e poder.

As origens do totalitarismo e as práticas das Big Techs

O projeto das Big Techs reflete as dinâmicas descritas por Hannah Arendt em As origens do totalitarismo. Arendt destacou como regimes totalitários promovem a distorção sistemática da verdade, criando realidades paralelas em que os fatos são manipulados para favorecer estruturas de poder. Essa manipulação, segundo ela, não é apenas uma forma de controle, mas parte essencial da desintegração da realidade objetiva, um processo fundamental para a manutenção de sistemas autoritários.

A recente alegação de Mark Zuckerberg sobre “cortes secretas” e censura na América Latina, bem como sua declaração sobre uma suposta “institucionalização da censura” na Europa, refletem uma estratégia retórica para escapar da regulação. No entanto, o histórico das Big Techs, incluindo a manipulação de informações, a interferência política e as campanhas contra regulações como o PL 2630 no Brasil, evidencia que essas alegações são tentativas de autopreservação em um setor cada vez mais fora de controle.

A engenharia social contemporânea conduzida por essas empresas não apenas distorce fatos, mas incentiva a fragmentação da realidade coletiva. As técnicas descritas por Arendt, como o isolamento informacional e a desintegração da percepção da verdade, são visíveis na forma como as Big Techs operam. A manipulação algorítmica, ao priorizar conteúdo polarizador e desinformativo, atomiza o debate público e desmobiliza o pensamento crítico.

Arendt analisou como o totalitarismo desarticula o espaço público ao substituir o debate racional por uma enxurrada de narrativas fabricadas e contraditórias, um fenômeno que encontra eco no funcionamento das plataformas digitais. As Big Techs, por meio de algoritmos opacos, não apenas amplificam informações falsas, mas também criam bolhas informativas que isolam os usuários em realidades alternativas, minando os fatos inexoráveis e o conceito de verdade compartilhada.

A desinformação massiva promovida por essas plataformas reflete a noção arendtiana de que o totalitarismo depende da destruição do juízo crítico. A exposição contínua a versões contraditórias da realidade, segundo Arendt, não visa convencer, mas desorientar e enfraquecer a capacidade de julgamento autônomo dos indivíduos. De forma semelhante, o modelo de negócios das Big Techs, baseado no engajamento por polarização, incentiva a confusão informacional e a passividade diante de narrativas distorcidas.

Outro aspecto central na análise de Arendt sobre o totalitarismo é o papel da burocracia despersonalizada e das estruturas de poder difusas, que tornam a responsabilização quase impossível. As Big Techs replicam essa lógica ao fragmentar sua atuação por meio de complexas redes de subsidiárias e seus respectivos e infindáveis algoritmos cujo funcionamento e impacto são mantidos deliberadamente obscuros. Assim como nos regimes totalitários descritos por Arendt, a concentração de poder se dá ao mesmo tempo em que a responsabilidade individual é diluída.

Portanto, a crítica de Arendt ao totalitarismo ilumina a forma como as Big Techs operam atualmente: ao manipular informações, distorcer a percepção coletiva da realidade e fragmentar o espaço público, essas empresas não apenas ameaçam a democracia, mas também se aproximam perigosamente das práticas de dominação descritas em sua obra. Suas táticas não são meramente falhas de um mercado desregulado, mas sim estratégias estruturais que concentram poder ao custo da autonomia e do discernimento crítico da sociedade.

O futuro

O avanço das Big Techs em manipular o fluxo global de informações sob uma lógica ultraliberal e antidemocrática demanda uma resposta urgente e coordenada. Inspirando-se nas reflexões de Hannah Arendt, é possível identificar as dinâmicas totalitárias que emergem quando o controle sobre a informação é concentrado em poucas corporações.

É imperativo que governos, sociedade civil e instituições multilaterais atuem juntos para estabelecer regulações que limitem o poder dessas plataformas. A imposição de responsabilidade e transparência, especialmente no uso de algoritmos e IA, é essencial para preservar a soberania informacional e garantir um ambiente digital mais ético, plural e verdadeiramente democrático. Somente com essas medidas será possível enfrentar os desafios de uma ordem multipolar e resistir à manipulação ideológica promovida pelas Big Techs em escala global.

Maus: a rataria na trama golpista e a Noite dos Cristais

Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, atenho-me à premissa de que ele não pode abandonar as meta-representações relativas ao tratamento, e me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico. (Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos)

A associação livre é uma técnica fundamental da psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud. Ela consiste em pedir ao paciente que diga tudo o que vier à mente, sem censura ou julgamento, independentemente do quão irrelevante, desconfortável ou incoerente possa parecer aquele conteúdo. O seu objetivo é permitir que conteúdos inconscientes do paciente, normalmente reprimidos, venham à tona. Devido a esse objetivo – e não a uma lógica de “agradar o cliente” – é que todos os psicanalistas sabem a importância terapêutica de tentarem fazer dos seus consultórios espaços onde os pacientes sintam-se confortáveis e seguros fisicamente, para falarem livremente do seu universo mais íntimo e, muitas vezes, secreto.

Na era das novas tecnologias, o que não faltam são diálogos íntimos que vêm à luz do debate público devido aos mais variados interesses. Muitas vezes descontextualizados, outras tantas, não. A grande audiência gerada por esse tipo de voyeurismo contemporâneo está no cerne do debate sobre a diluição da fronteira entre o público e o privado e sobre a monetização facilitada aos conteúdos pretensamente escandalosos, mas fabricados por aspirantes à fama.

Esse não é o caso de diálogos do universo da política anexados às investigações policiais e da justiça. Analisados em um determinado contexto de crimes, tais conteúdos podem revelar como um discurso público pode mascarar verdadeiras intenções e secretos fins políticos.

O que se segue, portanto, é um breve comentário sociopolítico que amplia o conceito de associação livre com a intenção de extrair algo além daquilo que é explícito. Para tanto, utilizo dois pequenos trechos de falas que circulavam em grupo de militares de alta patente que, de acordo com a investigação da Polícia Federal, preparavam uma trama golpista após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Ao assistirmos a reportagem do Fantástico que revelou alguns áudios dos diálogos do planejamento de um golpe de Estado – que envolveria os assassinatos do presidente da república e o seu vice, recém eleitos, um ministro do STF e, no mínimo, mais uma figura pública (ainda desconhecida) -, uma frase dita pelo general Mário Fernandes a um assessor de Jair Bolsonaro chama muito a atenção, e possivelmente revela muito mais do que o óbvio:

Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, sem quebrar cristais.

O vocativo “caveira”, revelador da estética da necropolítica em curso naquele momento, provavelmente refere-se ao título concedido ao interlocutor, indicando que ele concluiu o Curso de Operações Especiais conduzido pelas Polícias Militares ou Forças Armadas do Brasil. Isso não é propriamente uma novidade, dado o aparelhamento do Estado durante o governo Bolsonaro por militares e herdeiros institucionais do general Sylvio Frota. Já a expressão “sem quebrar ovos” é bastante popular no Brasil, derivada de “não se faz omeletes sem quebrar ovos”. No entanto, não podemos dizer o mesmo da expressão “sem quebrar cristais”, da qual não se encontra registro de dito de origem popular.

Em função de todo um contexto – não só da fala do general, mas da ascensão do neofascismo brasileiro na última década –  tal associação metafórica ‘fora de lugar’ talvez revele um profundo arranjo semântico entre “quebrar cristais” e os objetivos revelados pelas investigações sobre o grupo de onde foi extraído o diálogo e a fala do general. Um arranjo que remete qualquer estudioso ou observador atento a um episódio certamente bastante conhecido pelos militares brasileiros – talvez, admirado por alguns deles -, por todos os historiadores e judeus do mundo: A Noite dos Cristais (Kristallnacht).

Evidentemente, os fatos históricos são bastante distintos e incomparáveis. O Brasil atual não é a Alemanha nazista.

No entanto, se precisamos rememorar e estudar a histórica aproximação entre o fascismo e o nazismo, o mesmo se aplica em relação ao neofascismo e o neonazismo na contemporaneidade.

A Noite dos Cristais e os cristais brasileiros

A Noite dos Cristais, ocorrida entre 9 e 10 de novembro de 1938, marcou um ponto de inflexão na perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Essa onda de violência, que se estendeu pela Alemanha, Áustria e regiões da Tchecoslováquia ocupadas, resultou no saque e na destruição de sinagogas, lojas, residências judaicas e na profanação de cemitérios judaicos, além da morte de 91 judeus e a prisão de aproximadamente 30 mil homens judeus, que foram enviados a campos de concentração. O nome se deve aos cacos de vidro que cobriram as ruas após o massacre.

Sinagoga em chamas após a Noite dos Cristais. Berlim, 1938.

O pretexto para essa onda de violência foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por Herschel Grynszpan, um jovem judeu polonês de 17 anos, cuja família havia sido recentemente deportada, entre tantos outros, da Alemanha para a Polônia. A Polônia se recusou a receber os deportados, que passaram a viver em um campo de refugiados próximo à cidade de Zbaszyn, na região fronteiriça entre os dois países.

Em meio ao desespero, Grynszpan, que havia fugido da Alemanha e residia ilegalmente em Paris, dirigiu-se à embaixada alemã na cidade. Lá, aparentemente movido pela intenção de vingar as condições adversas enfrentadas por sua família, disparou contra o funcionário diplomático que o atendia. Vom Rath, o diplomata atingido, morreu em 9 de novembro de 1938, dois dias após o ataque. Coincidentemente, essa data marcava o “aniversário” do Putsch da Cervejaria (Beer Hall Putsch), a tentativa de golpe para derrubar o governo do Estado da Baviera, organizada por Adolf Hitler e o Partido Nazista, nos dias 8 e 9 de novembro de 1923. Aquela tentativa fracassou, mas tornou-se um marco significativo no calendário nazista.

O regime nazista utilizou esse incidente como justificativa para incitar ataques coordenados contra a comunidade judaica, apresentando-os como manifestações espontâneas da população. Forjar uma imagem de “espontaneidade das massas” é uma estratégia para buscar legitimar e expandir os objetivos de ruptura de pactos civilizatórios por parte de uma minoria violenta. Assim também tem sido feito no contexto político brasileiro contemporâneo, com o seu ápice, até aqui, nos quatro anos do mandato de Jair Bolsonaro, quando foram explicitadas inúmeras vezes as intenções golpistas, os ataques às instituições, a incitação ao ódio, à violência armada e a desumanização de opositores políticos, minorias e grupos identitários.

Durante a Noite dos Cristais, as forças policiais e os bombeiros receberam ordens explícitas para não interferirem nos crimes e incêndios que consumiam as sinagogas e estabelecimentos judaicos, exceto para evitar que as chamas se espalhassem para propriedades “arianas”.

Prédio do STF depredado após atos golpistas do dia 8 de janeiro. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF.

No Brasil atual, lembremos que a Polícia Federal concluiu que houve falhas e indícios de atuação criminosa da cúpula da segurança pública do Distrito Federal nos ataques de 8 de janeiro. Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, a PF apontou que houve “falhas evidentes” do ex-secretário Anderson Torres e cita o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB).

Trecho do relatório da PF: Conclui-se que as falhas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) no enfrentamento das manifestações de 08/01/2023 são evidentes, especialmente pela ausência inesperada de seu principal líder, ANDERSON GUSTAVO TORRES, em um momento de extrema relevância aliado a falta de ações coordenadas e a difusão restrita de informações cruciais contidas no Relatório de Inteligência no 06/2023 foram fatores decisivos que contribuíram diretamente para a ineficiência da resposta das forças de segurança.

Relembre-se, ainda, o monitoramento ilegal de pessoas, opositores, autoridades e aliados, por parte da ABIN paralela no governo Bolsonaro. O gesto supremacista feito por Filipe Martins, um dos 37 indiciados na última semana – junto ao general Mário Fernandes – e uma das figuras mais próximas do ex-presidente e seu assessor especial para assuntos internacionais. Registre-se, antes, a conhecida interlocução de Bolsonaro com grupos neonazistas. Mais, o fato de que ele recebeu aos risos e oficialmente, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler e membro do partido Alternativa para a Alemanha, sigla neonazista alemã. Além do fato de que após a ascensão do bolsonarismo, o número de células neonazistas no país cresceu de 75 para 530. Por fim, o deplorável episódio no qual o secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em rede nacional fez um discurso esteticamente semelhante e com trechos idênticos a um discurso do ministro de Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo.

Como notamos, a aproximação do neofascismo com os ideais neonazistas não é um mero acaso.

Maus: a rataria bolsonarista

Maus é uma aclamada graphic novel que combina memórias do Holocausto com uma narrativa autobiográfica. Dividida em dois volumes – Maus: A Survivor’s Tale – My Father Bleeds History (1986) e Maus: And Here My Troubles Began (1991) –, a obra apresenta a história de Vladek Spiegelman, judeu polonês sobrevivente do Holocausto, contada por seu filho, o sueco Art Spiegelman.

O título Maus é a palavra alemã para “rato”, foneticamente semelhante ao inglês mouse. Ele carrega um significado simbólico central para a obra de Art Spiegelman, pois reflete a metáfora visual e narrativa utilizada ao longo da graphic novel. Na história, os judeus são representados como ratos, enquanto os nazistas são retratados como gatos. Essa escolha remete diretamente à propaganda nazista que desumanizava os judeus, comparando-os a pragas.

Essa poderosa imagem dialoga com a propaganda antissemita usada pelos nazistas, que retratavam os judeus como seres inferiores e ameaçadores à “pureza” racial ariana. Spiegelman utiliza essa representação para desconstruir o discurso nazista e evidenciar o horror, a violência e a irracionalidade do preconceito e do antissemitismo.

Enquanto isso, nos poucos áudios revelados, até aqui, dos indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, ouvimos um oficial dizer:

O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comité. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria. Tem que debater o que vai ser feito.

Abaixo da ética e sem sutileza alguma, o discurso moral do grupo que pretendia promover o fechamento de um regime ditatorial no Brasil revela, na intimidade segura, a imoralidade das suas intenções políticas, própria dos canalhas. No jargão militar, “rataria” refere-se àqueles que agem escondidos, sem se importarem com a legalidade, com a linha de comando e a institucionalidade das próprias FFAA.

Em português, o adjetivo ‘maus’ qualifica aqueles que se distinguem pelo caráter ruim, moralmente condenável, aqueles dados a fazer maldades, que contradizem a justiça, o dever, os que são contrários à lógica, às regras; os impróprios, os incorretos.

A despeito de quaisquer possíveis análises dos seus inconscientes, tais diálogos íntimos e, por isso, mais reveladores, comprovam o que já se sabe há anos: a rataria bolsonarista tem plena consciência do que é, disse e fez.

Que lhes reste a justiça, sem anistia. Terrorismo de Estado, nunca mais!

 


Saiba mais sobre a Noite dos Cristais no Holocaust Encyclopedia: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht

 

 

Trump e Musk – O declínio do império americano e da democracia liberal

Mas certamente para esta época que prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a fantasia à realidade, a aparência à essência, é esta transformação, exatamente por ser uma desilusão, uma destruição absoluta ou uma pérfida profanação, porque sagrada é somente a ilusão, mas profana a verdade. Sim, esta sacralidade aumenta na mesma proporção em que a verdade diminui e a ilusão aumenta, de forma que o que é o mais alto grau de ilusão é também o mais alto grau de sacralidade. – Ludwig Feuerbach em A essência do cristianismo, ed. Vozes, 2007, p.25.

Na madrugada da última quarta-feira, 06.11.2024, Donald Trump – um criminoso bilionário e famoso por ter participado de um reality show patético – foi extraoficialmente eleito, novamente, para presidente dos Estados Unidos da América. No conservador sistema eleitoral daquele país, um candidato do Partido Republicano voltou a vencer as eleições também no voto popular. O último havia sido George W. Bush, em sua reeleição, após o 11 de setembro de 2001.

Elon Musk cumprimenta Donald Trump em evento oficial de campanha. Imagem: Jim WATSON / 31.out.2024-AFP.

Mesmo sem nutrir qualquer esperança de que um mal menor aconteceria à América Latina – fosse eleita Kamala Harris -, assisti, ainda assim incrédulo, um mitômano golpista, racista e misógino fazendo uma propaganda de outro bilionário – Elon Musk – durante muitos minutos, no microfone em que discursava para o planeta. Naquele palco de extremistas encontravam-se, também, Dana White, dono do UFC , que proferiu algumas palavras aos gritos e Joe Rogan, ex-lutador de MMA, comediante de stand-up e maior podcaster do mundo.

O retorno de Donald Trump à Casa Branca e a indireta coroação de Elon Musk (sim, porque ele acaba de se tornar o ser humano mais poderoso do mundo sem nenhum voto) são uma consequência do declínio do império americano e, concomitantemente, a própria representação dessa derrocada geopolítica. O tempo mostrará se essa eleição também será percebida como um marco da falência da democracia liberal e o início de uma consolidação de autocracias, ditaduras e um totalitarismo do capital tecnológico em escala mundial.

Abaixo, analiso como a eleição de Trump – também pelo voto popular – representa a trajetória desse Titanic na geopolítica, assumindo que o iceberg que leva ao seu consequente naufrágio na própria geopolítica já está bastante visível a você, caro leitor.

Nesse artigo, você lerá:

Capitão Trump e o marujo Musk
Do liberalismo ao ultraliberalismo – o desespero diante do iceberg
A política ultraliberal é o extremismo
O X do problema: a alienação no não-sentido
Capitão Musk e o marujo Trump
Anexo| Editorial Bloomberg – Por que os contribuintes deveriam dar 83 bilhões de dólares por ano aos grandes bancos?

Capitão Trump e o marujo Musk

Donald Trump e Elon Musk são raros vendedores sem escrúpulos, porque, também, megalomaníacos. Ou seja, ambos são salafrários narcisistas e exibicionistas, daqueles que não se escondem após um golpe. Ao contrário, correm para os holofotes. Agora, unidos, como se fossem um Noé vendendo uma arca para as massas do globalismo quando precipita o dilúvio no império.

Trump e Musk não são somente herdeiros de fortunas erguidas da exploração imoral de miseráveis; eles são herdeiros do racismo, da misoginia, do ódio, de crimes e, ainda, usurpadores de dinheiro público. A base dos seus impérios não é o mérito, mas uma herança construída pela amoralidade inerente ao capitalismo, pelo oportunismo e transgressões às próprias regras do inescrupuloso mercado financeiro. Ambos, agora juntos, representam uma só necroliderança a quem resta avançar de forma sádica, violentando quem está abaixo, ou seja, 99% da população mundial.

“Eu sou um grande defensor do livre mercado, e o governo precisa sair do caminho”. Donald, o autor dessa frase, deve sua fortuna à exploração imobiliária do pai, Fred Trump, que construiu prédios populares durante a Segunda Guerra Mundial, em Nova Iorque, com subsídios públicos e práticas discriminatórias. Ao obterem contratos lucrativos com o governo para a construção de moradias estabeleceram um império marcado pelo racismo e por fraudes. Ambos foram processados por barrarem pessoas pretas de alugarem os seus imóveis.

Elon é filho de Errol Musk, negociante de terrenos valorizados na África do Sul durante o apartheid e dono de uma mina de esmeraldas na Zâmbia – território saqueado por interesses estrangeiros. Esse capital familiar financiou Elon. Longe de ser o “self-made” visionário que muitos celebram, ele construiu o seu império com pesados subsídios de dinheiro público. Empresas como Tesla, SpaceX e SolarCity receberam bilhões em apoio governamental, uma contradição gritante para alguém que se diz contra “interferência estatal”.

Imagem autoral do site Café com Pepino, gerada por ‘inteligência’ artificial.

A Tesla já recebeu mais de US$2 bilhões em incentivos fiscais e subsídios para construir suas fábricas e para produzir. Suas empresas prosperaram com o respaldo estatal, em um modelo onde o público assume os riscos, enquanto os lucros vão para o bolso de Musk e seus acionistas. Esse modelo é um exemplo do “capitalismo de compadrio”, onde empresas como as de Musk e Trump se sustentam com dinheiro público enquanto promovem um discurso de “livre mercado”.

De fato, Trump e Musk carregam uma herança de fraudes. Trump ampliou o seu império com práticas imobiliárias predatórias e falências estratégicas, deixando para trás comunidades empobrecidas e burlando a lei para se esquivar de dívidas, sem qualquer remorso aparente. Ainda, a Trump Organization, por exemplo, foi proibida de realizar novos negócios em Nova Iorque. Musk já foi punido por manipulação de mercado com a Tesla, práticas de vendas enganosas, propaganda enganosa e manipulação do mercado de criptomoedas.

Trump profere discursos racistas ao falar de “DNA ruim” de imigrantes e ao chamar mexicanos de “estupradores”, aprofundando divisões e propagando o ódio. Musk, por sua vez, promove contas racistas e neonazistas no X e fomenta o crescimento do discurso de ódio com suas declarações, acobertado pelo falso manto de “liberdade de expressão”, além de promover uma cultura na Tesla em que funcionários pretos já relataram ser chamados de “escravos” e mulheres foram assediadas.

Trump e Musk são mais do que empresários e, agora, escolhidos como comandantes de um império no seu ocaso; eles são símbolos da própria decadência de um sistema que explora, desumaniza e perpetua o racismo e a desigualdade. Ambos se apoiam em práticas que visam à ampliação de suas heranças a partir do Estado, para depois buscarem destruí-lo para reinarem com seus sócios. São aspirantes a ditadores de um regime totalitário onde eles são a lei às custas da vida, da dignidade e da justiça social.

Do liberalismo ao ultraliberalismo – o desespero diante do iceberg

Para os autores clássicos – por exemplo, o contratualista inglês John Locke e o pensador francês Alexis de Tocqueville – entre muitas diferenças, a democracia liberal seria uma estrutura que equilibraria a liberdade individual e o poder político, fundamentada no respeito aos direitos individuais e na proteção contra eventuais abusos do Estado. Tais entendimentos são perfeitamente compreensíveis quando levamos em conta que eles foram aristocratas que viveram nos séculos XVII e XIX, respectivamente; separados, em suas análises, pelos impactos da Revolução Francesa.

Suposto iceberg que afundou o Titanic, fotografado pelo chefe de serviço do navio SMS Prinz Adalbert /Crédito: Wikimedia Commons

Já os pensadores contemporâneos da teoria crítica – como o alemão Jürgen Habermas e a norte-americana Nancy Fraser – complexificam essa visão essencialista da democracia liberal, destacando os seus limites nos desafios associados à desigualdade econômica, à necessária proteção ao pluralismo cultural e à prevalência do neoliberalismo a partir dos anos 1980, com a consolidação do globalismo. No debate público do primeiro quarto desse século XXI até a grande crise do capital de 2007-8, parecia inquestionável a necessidade de uma democracia efetiva que não só deveria proteger as liberdades individuais, mas que também respondesse às demandas crescentes por justiça social e por uma real inclusão de bilhões de pessoas abandonadas pelo capitalismo.

No entanto, desde então, grandes agentes do capital – em seu inerente aprofundamento das contradições que gera – não retrocederam diante dos limites ou buscaram dirimir os efeitos desumanos do neoliberalismo. Valendo-se do ecossistema das redes sociais virtuais, fabricados pelas Big Tech, eles promoveram a alavancagem – um investimento sem lastro, mas aqui pode ser compreendido como um investimento naquilo que não possui lastro na realidade – do discurso de expoentes de um pensamento mítico do liberalismo, muito mais próximos do misticismo do que das bases de sua própria doutrina original: os ultraliberais.

O ultraliberalismo é a radicalização do neoliberalismo, o avanço amoral do capital sobre a esfera pública, a tomada explícita do Estado para os seus interesses. Ele é uma força que distorce o sentido de liberdade e autonomia – esvaziando o espaço público e a solidariedade social – ao impor políticas econômicas para si em detrimento de políticas sociais de redistribuição e acesso às riquezas. Ele criou uma cultura violenta de competição extrema e do individualismo exacerbado, na qual os riscos e as perdas são de todos, menos daqueles que a modelam. Aliás, seus agentes não correm risco algum, porque esse sempre é assumido pelo Estado e pelos contribuintes.

A política ultraliberal é o extremismo

Para imporem tamanha violência contra os interesses e demandas vitais de bilhões de pessoas, tais agentes e ideólogos precisam, necessariamente, de figuras públicas com aspirações messiânicas, místicas e totalitárias. Aqueles que encarnam o valor do individualismo, enquanto concentram o poder decisório que deveria ser regido pelas instituições democráticas.

Nesse sentido, a primeira vitória do extremismo econômico e político nas democracias liberais foi o deslocamento do debate público, a partir de um ataque simbólico massivo àquilo que era consensual, pactuado e sobre o qual não havia discussão alguma. Incluso o eixo do conhecimento acumulado pela espécie humana ao longo da sua história e da sua sobrevivência. Isso é o negacionismo.

No entanto, para deslocar o debate público não é necessário adentrá-lo com argumentos, teses, expressões artísticas ou raciocínios sofisticados. Não é preciso demonstrar nenhuma construção ou pensamento. Basta deslocar o meio onde ele acontece.

Logotipo do extinto programa argentino ‘CQC’, que foi transmitido no Brasil de 2008 a 2015, pela TV Bandeirantes. Ele e o programa da socialite Luciana Gimenez, na TV Gazeta, popularizaram a figura grotesca de Jair Bolsonaro.

No Brasil, por exemplo, posso afirmar que esse ataque inicial do ultraliberalismo partiu da deep web, através do finado astrólogo e maníaco Olavo de Carvalho, que formou gerações de “influencers” que jamais haviam aberto um livro na vida, mas que hoje possuem milhões de seguidores e doutrinaram outros milhares de “influencers”.

Olavo foi um farsante chulo travestido de ideólogo messiânico autoexilado na Virgínia, que atuou dos Estados Unidos – desde o início dos anos 2000 – para desestabilizar o país; como tantas outras figuras tropicais que sempre encontraram amparo, apoio e incentivo no império, sobretudo, na Flórida. Entre delírios e palavrões, o discurso do astrólogo era o de um ressentido para ressentidos, sobretudo jovens. Assim, sua influência foi financiada e amplificada no Brasil após a internalização – à força – da crise de 2007-8, em 2013. Naquele ano, as bases do neofascismo brasileiro já estavam semeadas há muito tempo e apenas frutificaram aos pés do ultraliberalismo, como um escudo materializado, em um primeiro momento, no Movimento Brasil Livre – MBL (sic).

Porém, ao ultraliberalismo não basta acusar de doutrinador um intelectual do porte de Paulo Freire, enquanto ele próprio doutrina crianças e jovens com o jogo Banco Imobiliário, filmes, desenhos ou compra alguns servidores de carreira pública, como juízes, promotores, policiais ou escolhe diretores de bancos centrais e ministros da fazenda. Agora, ele precisa adentrar no Estado com alguma legitimidade popular tanto para atuar sem amarras em seu benefício, quanto para controlar o monopólio da violência sem limites legais, contra a própria população. Nos legislativos, esse nunca foi um problema, já que vereadores, deputados e senadores podem, facilmente, ser fabricados pelo dinheiro. O próprio, nos casos dos grandes empresários e fazendeiros, ou o de outrem (não todos os políticos, evidentemente).

A questão é que chefes do executivo federal são figuras altamente expostas e ficam à mercê do escrutínio público na sociedade do espetáculo. Fabricá-los não basta mais, eles precisam ter uma liderança carismática e popular, como demonstraram Max Weber, na teoria, e José Serra, na prática.

Na simbiose entre o capital e o fascismo, a estratégia de promover figuras midiáticas às presidências mundo afora tornou-se muito mais fácil após a era Ronald Reagan – ator de Hollywood, republicano, 40º presidente dos Estados Unidos e pai político do neoliberalismo (a mãe foi a primeira ministra inglesa, Margareth Tatcher, conhecida como a “Dama de Ferro”).

Desde então, para ficarmos em alguns exemplos, tivemos o Terminator e republicano Arnold Schwarzenegger, como governador da Califórnia, o humorista Volodymyr Zelensky, eleito presidente da Ucrânia após um golpe promovido pelos Estados Unidos. Temos, ainda, um político brasileiro fascista, expulso das FFAA, com três décadas de carreira anônima no esgoto do Congresso, mas que foi alçado à popularidade pela mídia brasileira – ávida pelo grotesco e por audiência – para, depois de mais um golpe promovido pelos Estados Unidos, ser lapidado pelo capital nas redes sociais virtuais, como o novo presidente da República Federativa do Brasil.

O fato inexorável é que um perfil de líder carismático tornou-se cada vez mais essencial aos interesses do capital na sociedade de consumo e do espetáculo. Até ao ponto em que o líder não é mais, somente, um fantoche; ele é a personificação que coincide com o – outrora anônimo – interesse do ultraliberalismo. Esse é Donald Trump, que não seria presidente novamente sem Elon Musk. Momentaneamente faces da mesma moeda, sócios em um empreendimento, numa necroliderança movida à pulsão de morte, exatamente para que ambos possam continuar lucrando e dando vazão à megalomania. Porque, para tanto, agora precisam destruir a democracia, as esferas públicas e os interesses populares, custe o que custar – ‘CQC’, diria Javier Milei na TV argentina, onde se tornou popular.

A propósito, não seria um disparate intuirmos que Javier Milei é um balão de ensaio do ultraliberalismo a ser adotado por Trump. Algo que o binômio Paulo Guedes – Bolsonaro tentou, mas não conseguiu. Assim como o ditador Augusto Pinochet foi o vetor do neoliberalismo que testou a doutrina do choque da escola de Chicago, que posteriormente foi implementada por Reagan e Tatcher e imposta ao restante do mundo, com a queda do muro de Berlim.

O X do problema: a alienação no não-sentido

Assim, o debate público foi deslocado – de questões sobre como reverter e superar os limites e as contradições do neoliberalismo – por uma ruptura com o eixo estabilizador dos discursos em torno de pressupostos básicos da cultura ocidental. Nesse sentido, as novas linguagens hiperestimuladas pelos algoritmos das Big Tech (que impactaram diretamente as TVs) se tornam chave para compreendermos como deixamos de discutir a política, para ter que defendê-la – enquanto único meio possível de convivência – diante de tantos defensores de golpes militares e torturadores.

Mais, ao invés de as redes se transformarem em poderosos espaços para a população pressionar os rumos das políticas social, econômica e monetária, passamos a ter que defender que vacinas são um avanço da ciência e que a Terra não é plana. Isso revela como o grotesco e o absurdo foi instaurado enquanto uma estratégia – que envolve o uso tático de bombas semióticas e a disseminação massiva de mentiras – do ultraliberalismo. Quanto maior for o absurdo, a atrocidade, a mentira e a violência simbólica que tais dispositivos perpetram, maior o alcance e visibilidade eles terão no ecossistema das redes sociais virtuais.

Por isso, os agentes do binômio ultraliberalismo-fascismo se vendem como “antissistema”, porque eles são, antes de mais nada, meios daquilo que era o inaceitável à cultura e à mínima civilidade no capitalismo pré-crise. Habitando os dois polos do binômio que representam, de fato, eles são um concentrado de tudo o que anteriormente havia de podre no neoliberalismo – suas patologias socioeconômicas.

Tudo isso, claro, com o objetivo de controlar o destino material da massa de seres humanos que representa 99% da população mundial e detém somente 1/3 da riqueza.

Ampliando o caráter e o papel da alienação na obra de Karl Marx, o absurdo que norteia o debate público contemporâneo – e o não-sentido, em um segundo momento – extrapola a dimensão de uma desconexão do trabalhador com a sua própria natureza social, econômica e política. O alienado pelas redes sociais virtuais é praticamente imune àquilo que o filósofo prussiano da economia política chamou de consciência de classe. Porque tal alienação é, antes, um meio de reconexão com a sua natureza primitiva, bárbara. Ela opera como uma libertação do neurótico através de uma psicotização sociopolítica.

O não-sentido – pensado e posto em pratica racionalmente pelos agentes do ultraliberalismo – libertou à força o reprimido em largas fatias das massas. Especialmente naquele indivíduo desejante e ressentido pelas promessas não entregues pela sociedade de consumo e pela democracia liberal, cuja maior manifestação é o império dos Estados Unidos da América, anteparo maior e, até aqui, o organizador dos interesses do capital.

Naqueles em que essa nova forma de alienação é bem sucedida, nada resta de potencial criador da transformação, senão a sua perpetuação alienada na efeméride consumista. Seja ao trabalhador comum, ao desempregado, ao precarizado, ao terceirizado e aos uberizados sem garantia social alguma. Porque não lhes foi deixada margem à elaboração crítica, um mínimo espaço lógico para a mobilização da sua consciência coletiva; somente lhes é ofertada a dissipação da sua energia direcionada aos objetos especificamente apontados na cultura de massas. O consumo, o ódio, o gozo, a morte.

No entanto, diferentemente dos objetos de consumo, os objetos apontados ao ódio não são aqueles representados pelos agentes ultraliberais, mas aqueles tantos nos quais ainda reside alguma energia potencial, não esvaziada, não instrumentalizada por completo. Aqueles cada vez mais fundamentais que carregam um vir-a-ser força transformadora que engendra um verdadeiro nexo coletivo e popular.

Capitão Musk e o marujo Trump

Na primeira seção desse artigo, me detive por algum tempo refletindo se a intitularia Capitão Trump e o marujo Musk ou Capitão Musk e o marujo Trump. Até o momento em que realizei o óbvio: não importa, porque tratamos da representação de um só algo – um grande algo – que está em declínio, o qual é representado por ambos, isoladamente ou somados.

Imagem autoral do site Café com Pepino, gerada por ‘inteligência’ artificial.

Ainda assim, precisamos distinguir os agentes do ultraliberalismo que dele se beneficiam, daqueles que reproduzem inconscientemente o campo simbólico e os interesses dos primeiros. Os agentes, de fato, referem-se, predominantemente, ao espectro em torno do 1% da população mundial que detém 2/3 da riqueza. Já aqueles que reproduzem tais interesses são muitos e cada vez mais numerosos nas massas.

Porém, não há, entre o 99%, uma só ideologia organizada ou visão de mundo estruturante de um determinado grupo que seja mecanicamente aderente a tais interesses.

De tal forma, se podemos facilmente notar discursos instrumentalizados pelo ultraliberalismo na fonte do pensamento místico – portanto, aquela dos fundamentalistas religiosos, membros de seitas e afeitos às teorias da conspiração -, não poderíamos deixar de atestar que tal serventia também brota do cientificismo estéril que busca, em contrapartida, legitimar somente aquilo que é possível de ser visto em um microscópio.

Os exemplos de pares de opostos poderiam ser muitos, desde que compreendamos que eles não mais se opõem em uma disputa por sentidos, mas se complementam nessa nova etapa de um capitalismo hipertecnológico e extremo. Em uma sociedade imagética, a psicotização sociopolítica soergue da radicalização-do-discurso-oposto em função da sua forma, da sua performance e da sua estética, não do seu conteúdo.

No espaço virtual dos algoritmos das Big Tech, a atuação (performance) calcada na estridência e na contundência aumentam a audiência, independentemente de noções e valores associados a um sentido público, ético, moral ou sociopolítico. Precisamente, porque tais gritos de ‘certeza’ oferecem uma boia de sobrevivência simbólica e de gozo ao sujeito entrópico, cuja gênese propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Assim, rompendo a pedra fundamental da filosofia grega – o método socrático – reinam o absurdo e o não-sentido na ágora (ἀγορά) contemporânea. O absurdo diz da nossa defesa psíquica, enquanto o não-sentido diz do nosso desejo. Ambos, nos tempos atuais, propiciam a ascensão política de representantes do ultraliberalismo-fascismo com apoio popular, como podemos notar no Brasil, com a eleição de inúmeros influenciadores digitais – muito além do bolsonarismo – e, também, com os representantes máximos dessa estratégia do capital: Donald Trump e Elon Musk.


Anexo ilustrativo | Editorial da revista norte-americana, sobre o mercado financeiro, Bloomberg News, em 20 de fevereiro de 2013.

Por que os contribuintes deveriam dar 83 bilhões de dólares por ano aos grandes bancos?

Na televisão, em entrevistas e reuniões com investidores, executivos dos maiores bancos dos EUA – especialmente o CEO do JPMorgan Chase & Co., Jamie Dimon – defendem que o tamanho é uma vantagem competitiva. Eles argumentam que ser grande os ajuda a reduzir custos e a competir por clientes em escala internacional. Limitar esse tamanho, alertam, prejudicaria a lucratividade e enfraqueceria a posição do país nas finanças globais. E se disséssemos que, segundo nossos cálculos, os maiores bancos dos EUA não são realmente lucrativos? E se os bilhões de dólares que alegadamente geram para seus acionistas fossem quase totalmente um presente dos contribuintes americanos? Certo, é um conceito difícil de aceitar. Mas é crucial para entender por que os grandes bancos representam uma ameaça tão grande à economia global.

Comecemos com um pouco de contexto. Os bancos têm um forte incentivo para crescer e se tornar desajeitadamente grandes. Quanto maiores, mais desastrosa seria sua falência e mais certa a possibilidade de um resgate governamental em uma emergência. O resultado é um subsídio implícito: os bancos potencialmente mais perigosos conseguem empréstimos a taxas mais baixas, pois os credores os percebem como “grandes demais para falir”. Recentemente, economistas tentaram calcular exatamente quanto esse subsídio reduz os custos de financiamento dos grandes bancos. Em um esforço relativamente abrangente, dois pesquisadores – Kenichi Ueda, do Fundo Monetário Internacional, e Beatrice Weder di Mauro, da Universidade de Mainz – estimaram que essa redução seja de cerca de 0,8 ponto percentual. O desconto se aplica a todas as suas obrigações, incluindo títulos e depósitos de clientes.

Pequeno, mas Impactante

Pode parecer pouco, mas uma diferença de 0,8 ponto percentual faz uma enorme diferença. Multiplicada pelo total das obrigações dos 10 maiores bancos dos EUA em ativos, equivale a um subsídio dos contribuintes de 83 bilhões de dólares por ano. Para contextualizar, é como se o governo desse aos bancos cerca de 3 centavos de cada dólar arrecadado em impostos. Os cinco maiores bancos – JPMorgan, Bank of America Corp., Citigroup Inc., Wells Fargo & Co. e Goldman Sachs Group Inc. – representam 64 bilhões desse total, um valor aproximadamente igual aos seus lucros anuais típicos. Em outras palavras, os bancos que dominam o setor financeiro dos EUA – com quase 9 trilhões de dólares em ativos, mais da metade do tamanho da economia americana – apenas se equilibrariam sem esse “bem-estar corporativo”. Em grande parte, os lucros que relatam são essencialmente transferências dos contribuintes para seus acionistas.

Nem os executivos dos bancos nem os acionistas têm muitos incentivos para mudar essa situação. Pelo contrário, a indústria financeira gasta centenas de milhões de dólares em cada ciclo eleitoral com doações de campanha e lobby, grande parte destinado a manter o subsídio. O resultado é um setor financeiro inchado e ciclos recorrentes de crédito excessivo. Se nada for feito, os super-bancos podem eventualmente exigir resgates que excedam os recursos do governo. Imagine um colapso em que o Tesouro esteja impotente para agir como fez em 2008 e 2009.

Os reguladores podem mudar esse jogo reduzindo o subsídio. Uma opção é exigir que os bancos financiem suas atividades com mais capital dos acionistas, o que os tornaria menos propensos a precisar de resgates (sugerimos 1 dólar de capital para cada 5 dólares de ativos, muito mais do que a proporção de 1 para 33 exigida pelas novas regras globais). Outra ideia é chocar os credores, fazendo com que alguns deles assumam perdas quando os bancos enfrentarem problemas. Uma terceira opção é impedir que os bancos usem o subsídio para financiar operações especulativas, o objetivo da regra Volcker nos EUA e da separação bancária no Reino Unido.

Uma vez que os acionistas compreendam totalmente o quão mal os maiores bancos operam sem o apoio do governo, eles se veriam motivados a exigir melhorias. Isso poderia incluir desde a redução dos pacotes de pagamento até o desmembramento de gigantes financeiros em unidades mais gerenciáveis. A disciplina de mercado pode não agradar aos executivos, mas certamente seria uma melhora em relação a pagar bancos para nos colocar em perigo.

 

A psicanálise é uma ciência

Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.

No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.

Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:

– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;

– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;

– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.

Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.

Portrait of Sigmund Freud(Freud, Sigmund.) Sternberger, Marcel Edité par London, 1938, printed 2017, 1938

Portrait of Sigmund Freud. Sternberger, Marcel. Edité par London, 1938, printed 2017.

Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.

Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.

Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.

A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.

Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.

Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.

Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.

Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência

No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.

Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.

Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.

Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.

Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.

A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.

Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.

Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.

Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.

As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência

Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.

Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.

O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.

Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.

Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.

Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.

Por fim, a História

Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.

Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.

Referências:

ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.

DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.

MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.

ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.

PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.

ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.

Resenha | Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris

No seminal ensaio A Eficácia Simbólica, parte da obra Antropologia Estrutural (1958), Claude Lévi-Strauss traça um paralelo profundo entre o método freudiano e as práticas xamânicas. Ele argumenta que tanto o psicanalista quanto o xamã atuam como intermediários que utilizam símbolos e narrativas para reorganizar a experiência subjetiva do indivíduo, promovendo a cura. Lévi-Strauss revela que a eficácia de ambos os métodos reside no poder do símbolo em alterar a percepção da realidade interna, evidenciando que as estruturas mentais humanas compartilham semelhanças fundamentais, independentemente do contexto cultural.

Em sua obra Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris nos presenteia com uma reflexão profunda e ao mesmo tempo acessível sobre os labirintos do ofício terapêutico. Endereçada não só aos aspirantes, mas também aos curiosos e profissionais que buscam um olhar crítico sobre a sua prática, o livro se desenrola como uma coleção de cartas que, tal qual confidências entre amigos, nos envolvem em um diálogo íntimo e provocativo.

Afastando-se da tese de Lévi-Strauss, desde as primeiras páginas, Calligaris se empenha em desconstruir a figura quase mítica do terapeuta como um “curador mágico” dos males da alma. Em vez disso, ele nos convida a enxergar o terapeuta como alguém que caminha ao lado do paciente, sem pretensões de superioridade ou infalibilidade. O autor propõe uma postura mais humilde e autocrítica, onde o sucesso terapêutico não se mede pelo aplauso ou reconhecimento, mas pela capacidade de ser o “remédio” que, cumprida sua função, pode ser esquecido sem pesar. Essa ideia de distanciamento ideal entre terapeuta e paciente ecoa a ética psicanalítica, mas também desnuda as armadilhas emocionais e narcísicas que espreitam na profissão.

Um dos grandes méritos da obra é a crítica afiada ao culto à personalidade que permeia o mundo da psicanálise. Calligaris não poupa ironias ao descrever os “chefes de escola”, profissionais que, sedentos por admiração, acabam por transformar o vínculo terapêutico em uma teia de dependências. Em vez de libertar, perpetuam “curas” eternas, aprisionando “discípulos” e pacientes em uma forma de submissão psíquica. Suas palavras são como um espelho que reflete não só as vaidades alheias, mas também nos convida a examinar as nossas próprias, psicanalistas ou não.

O texto ilumina com precisão cirúrgica o perigo das idealizações mútuas. O amor de transferência, esse fenômeno tão fundamental quanto delicado no processo de cura, é analisado com rigor. Calligaris nos alerta sobre a linha tênue que separa a utilização ética desse amor para o crescimento do paciente e a sedução pelo papel idealizado que pode levar o terapeuta a um abismo ético. É um chamado à consciência dos dilemas profundos que habitam a prática clínica.

Outro ponto crucial é a visão de Calligaris sobre a formação do terapeuta. Ele desafia a ideia de que a academia seja o único caminho para a prática terapêutica, enfatizando a importância vital da experiência da análise pessoal e da prática clínica constante. Para ele, a formação é um processo infinito, uma jornada de autoanálise e questionamento contínuo das próprias motivações e métodos. Diplomas e títulos não encerram essa caminhada; são apenas marcos em um percurso muito mais extenso e profundo, que exige do psicanalista implicar-se continuamente em sua prática, em seus casos, ao ponto de revolucionar constantemente o seu próprio Eu no mundo, muito além de técnicas e métodos adotados em seus casos clínicos.

A crítica ao conservadorismo de certas instituições de formação ressoa forte nesse livro. Calligaris denuncia os institutos que, em nome da normatividade social e sexual, abafam a autenticidade e a singularidade dos futuros terapeutas. Ele sugere que uma “vida colorida” e experiências fora dos trilhos convencionais não só enriquecem a prática clínica, mas são essenciais para que o terapeuta possa realmente acolher a vastidão da experiência humana sem julgamento. É um apelo à abertura, à empatia sem preconceitos, à compreensão verdadeira do outro em sua totalidade.

Entretanto, a obra não está isenta de críticas. A informalidade com que alguns temas, por vezes fundamentais e estruturais à psicanálise – e, por isso, essenciais aos jovens terapeutas -, são tratados, pode dar a impressão de que esses são menores. Não são. O tom confessional e íntimo enquanto proposta, embora cativante, talvez deixe a desejar nos termos de uma necessária densidade teórica em certas passagens. Psicanalistas ou estudantes mais exigentes podem sentir falta de uma análise mais aprofundada de certos aspectos abordados.

Portanto, que reste nítido: esse livro, assim como os de Freud, Lacan ou quem quer que seja – precisamente no sentido daquilo que é defendido na própria obra – não deve ser lido como se fosse um manual. Afinal, somente Contardo Calligaris foi Contardo Calligaris.

Exatamente por isso, Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura essencial. Não apenas para aqueles que desejam trilhar o caminho da psicoterapia, mas também para os que, já inseridos no campo, buscam uma reflexão sincera sobre sua prática através do olhar de um psicanalista excepcional. Com sagacidade e senso crítico, Calligaris nos oferece um convite à introspecção profissional, à revisão constante dos papéis que terapeuta e paciente desempenham nessa dança delicada. O livro se revela como uma bússola ética e prática orientando o jovem terapeuta que, longe de almejar a perfeição, está disposto a abraçar as suas próprias fragilidades e limites.

Com uma linguagem acessível e sofisticada, Calligaris consegue o que poucos autores alcançam: fazer com que o leitor reflita sobre os dilemas mais profundos da prática terapêutica enquanto se deleita com narrativas pessoais e incisivas. Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura instigante, um convite a pensar a psicanálise e a psicoterapia além das fórmulas convencionais, mergulhando nas águas turvas e fascinantes da condição humana.

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Nascido em Milão, Itália, em 1948, Contardo Calligaris foi um psicanalista, escritor e dramaturgo que deixou uma importante marca no cenário cultural brasileiro.

Formou-se em epistemologia genética e letras na Universidade de Genebra, onde foi aluno, entre outros, do psicólogo suíço Jean Piaget. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, em Marseille, aprofundou os seus conhecimentos em psicanálise em Paris, onde teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. Foi professor de Estudos Culturais na New School, de Nova York, e professor convidado de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Essa formação multidisciplinar e internacional lhe conferiu uma perspectiva única, permitindo-lhe transitar com fluidez entre a psicanálise, a literatura e a crítica social.

Radicado no Brasil desde os anos 1980, tornou-se uma voz influente ao escrever colunas semanais para a Folha de S.Paulo, onde abordava temas contemporâneos com sensibilidade e acuidade intelectual. Publicou diversos livros, incluindo romances e uma peça teatral. Ele também criou a série de televisão intitulada Psi, exibida na HBO.

Calligaris faleceu na cidade de São Paulo, em 30 de março de 2021, aos 72 anos.