O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais | O neofascismo brasileiro


O cenário

No último domingo, 8 de janeiro de 2023, uma semana após o mais emblemático rito de posse de um presidente da república na vida nacional, alguns milhares de terroristas invadiram o coração da República Federativa do Brasil, situado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Destruíram um patrimônio público de valor inestimável, obras de arte e mobílias históricas sem preço, porque únicas ou doadas por chefes de Estado desde o século XVII. Arrebentaram vidraças, portas, monitores, chão, tetos e paredes. Roubaram bens, HDs, documentos secretos.

Vilipendiaram o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto numa ação orquestrada pelo ex-governo fascista brasileiro, findado, então, há oito dias. Desde o fim do ano passado, quando ainda usufruía do seu passaporte diplomático, o ex-presidente encontra-se refugiado na Flórida, Estados Unidos. Noticiaram que ele estaria pensando em retornar ao Brasil para evitar o vexame da extradição. A Itália, ao menor sinal do neofascista brasileiro, já se mobilizou para evitar recebê-lo.

Seguem alguns adendos às possíveis análises sobre os últimos eventos promovidos pela extrema direita brasileira, emulando ações de uma extrema direita internacional, reavivada como não víamos desde a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

As condições históricas – O público e o privado

Em face do intento fracassado, de ruptura de um regime democrático recém restaurado em sua aparente plenitude, só podemos nos fiar por aquilo que nos precede.

Poderíamos facilmente visualizar – portanto, reconhecer – aqueles fascistas, despidos no último domingo, destruindo qualquer patrimônio público país afora, desde sempre, dada a nossa história colonial. De um banco de praça a um extinto orelhão, de uma vaso chinês a um quadro do Di Cavalcanti, como foi feito há três dias. Mais, em sua pulsão destrutiva, aquela horda poderia ser representada por um canalha qualquer que administra um condomínio de apartamentos como se fosse o seu castelo particular, a despeito das assembleias de moradores, ou por um capitão das Forças Armadas, ou da PM do Distrito Federal, que age sob o uniforme conforme a sua ideologia contrária ao sentido das suas atribuições e obrigações enquanto servidor público.

Todavia, dificilmente poderíamos imaginá-los destruindo o próprio apartamento, queimando o próprio carro, arrebentando uma agência do Itaú, um prédio do Starbucks, do McDonald’s ou defecando no salão da Ibovespa, enquanto comparsas quebram monitores e roubam iPhones deixados nas fartas gavetas da Faria Lima.

Tais projeções são possíveis somente porque todos somos embebidos em uma cultura historicamente patrimonialista e, ao mesmo tempo, quase todos somos destituídos de qualquer patrimônio material vultoso. Exceção feita a pouquíssimos, muitos dos quais – herdeiros numa história de exploração, escravidão, desigualdades, opressões e repressões – são os mais interessados em dinamitar quaisquer laços e relações orientados pela noção de coisa pública.

Desafortunadamente para esses poucos, hoje todos somos plenos de direitos, ao menos no papel, e podemos reivindicar livremente traços da nossa identidade. Somos, também, todos donos de um patrimônio público, material e imaterial. Somos todos filhos e agentes de uma cultura histórica e nacional, composta por um mosaico de inúmeras culturas e patrimônios regionais no tempo e no espaço brasileiro. Entre disputas e consensos, nos reconhecemos, por fim, por uma bandeira, por uma língua e por alguns sentimentos e ritos partilhados por muitos de nós. Convivemos, dessa forma, em uma democracia, através das instituições – sempre em disputa política – mas legalmente amparados e regidos por um Estado Democrático de Direito, fundado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após décadas de uma sanguinária ditadura civil-empresarial-militar instalada pelos Estados Unidos em nosso território.

Acontece que, desde as Manifestações de 2013 que resultaram no golpe empresarial-parlamentar de 2016, vivemos em mais um estado de anomia que reflete a disputa geopolítica do nosso tempo. Nele, soergueram forças do submundo institucional nutridas pelos traumas nacionais jamais elaborados – como a anistia aos torturadores e a todos os que cometeram crimes de Estado há poucas décadas – e por velhos e conhecidos interesses do exterior. Como se, subvertendo a máxima marxista, houvesse a possibilidade de repetir não a tragédia, mas a própria farsa botada em marcha na América Latina durante os anos 1960, 1970 e 1980, que promoveu a interdição de governos eleitos democraticamente com golpes militares que violentaram suas soberanias, prenderam, torturaram e assassinaram mais de 50 mil cidadãos sul-americanos. Estima-se que os corpos de mais de 30 mil pessoas estão desaparecidos até hoje.

A gênese do neofascismo brasileiro

Da farsa da farsa renasceu a extrema direita no Brasil no século XXI, seguindo uma tendência mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008. Ano inicial daquele que viraria um fenômeno de massas nas democracias ocidentais, formado por milhões de pessoas mobilizadas pelas forças mais destrutivas que existem dentro de cada uma delas. Forças canalizadas e direcionadas contra a cultura, a sociedade, a civilização.

O que vimos no último domingo foi a expressão explícita do ódio. Todavia, reestruturado por uma nova linguagem da experiência subjetiva e afetiva daqueles que pretendiam provocar uma ruptura na unidade nacional com uma guerra civil, ainda que muitos nem tivessem essa instrumentalizada consciência. Presenciamos, infelizmente de maneira esperada, uma ação terrorista visando a, mais um, golpe de Estado. O modus operandi, emulado da extrema direita dos Estados Unidos, só atestou de onde vieram as ordens e as diretrizes: da matriz trumpista.

Do país onde a organização social orienta-se por uma cultura concentrada daquilo que Max Weber teorizou, em 1905, como uma simbiose entre a ética protestante e o capitalismo. Distintamente do contexto de vida do intelectual alemão, na configuração contemporânea, o capitalismo é muito mais voraz, globalizado e a sociedade estadunidense não sustenta a herança da social-democracia construída no período do pós-guerra na Europa ocidental. Algo que enraizou e dimensionou a esfera pública tão valorizada, até hoje, no continente.

Por isso, os atos terroristas em Brasília foram repudiados até por ícones ascendentes da extrema direita do outro lado do Atlântico. Porque aquilo que os neofascistas brasileiros odeiam e atacam é tudo – absolutamente tudo – o que é público, de todos nós, brasileiros. Isso é um contrassenso a um neofascista ou a um ultranacionalista europeu, que, em sua nefasta ideologia, direciona grande parte do seu ódio aos imigrantes – inclusive aos brasileiros.

Aqui, os neofascistas (incorporados neonazistas e integralistas) foram arregimentados por uma composição política Frankenstein, que elegeu o último governo federal num processo eleitoral sob intervenção objetiva dos Estados Unidos. Tal composição continha setores da mídia, dos militares, milicianos, fisiologistas, evangélicos fundamentalistas e ultraliberais. Expoentes máximos, cada qual em seu campo, do velho patrimonialismo e da sua defesa. Esse grupo que chegou ao centro do poder federal valendo-se de táticas novas, até então, de massivas mentiras espalhadas pelas redes sociais virtuais, assumiu para si somente uma missão: deter um projeto nacional popular de longo prazo e reverter todas as conquistas dos governos anteriores.

Não foi difícil, dado o nosso histórico violento e colonial, canalizar o ódio dos seus eleitores precisamente ao solo da coletividade e do pluralismo que constitui um país. Chão cada vez mais exíguo aos pés no mundo ultraliberal, terreno árido ao caminhar da justiça e das disputas políticas, dos corpos e das mentes, dos desejos e gestos de todos. Espaço público de solavancos e comunhão, onde se pode falar, mas onde também se faz necessário ouvir e respeitar todas as manifestações plurais e divergentes que compõem uma determinada sociedade.

Contrariamente são os espaços privados. Sejam aqueles herdados desde a época das capitanias hereditárias, sejam aqueles, ainda hoje, públicos e almejados num vir-a-ser particular. Porque os espaços que excluem são aqueles onde as dinâmicas sociopolíticas respondem e, na maior parte do tempo, submetem-se aos desejos de um ou poucos donos, atuais e futuros. Foi a partir desse terreno fertilizado sinteticamente – alavancado e associado, num primeiro momento, aos discursos de um liberalismo raso como um pires – que brotou novamente o fascismo brasileiro. Agora, ainda mais subserviente e inconsciente da sua função nos novos tempos, configurando todo um campo ideológico de indivíduos disciplinados para devorarem uns aos outros com um sorriso no rosto.

A fabricação do neofascista

Num novo universo tecnológico, completamente alienado das dinâmicas que o enredam, o “patriota” foi programado por esse campo que lhe ofereceu não só o pertencimento, mas o ethos que lhe autorizou – finalmente – o gozo através do pathos do ódio. Por isso, o logos não foi necessário e, para quem olha de fora, não há lógica alguma em suas tentativas de elaborar argumentos. Porque ele foi condicionado numa crescente repetição esvaziada, mais e mais, o levando ao limite das palavras, das imagens, dos discursos, da comunicação e das “ideias” dele. De tal forma saturado, o “patriota” foi movido pela recompensa ofertada ao desejo de reconhecimento, esgarçando os próprios sentidos até a implodi-los no prazeroso vazio da própria consciência, libertando, por força bruta, o reprimido.

Nesse ponto, quando se sentiu “livre”, as estratégias e os métodos de repetição esvaziada da nova extrema direita internacional já haviam lhe ofertado a palha que reestruturou simbolicamente o seu reprimido de forma rudimentar e instrumental. Simplesmente lhe dando uma mínima sustentação simbólica que propiciou a vazão de aspirações psicóticas em ações de violência concreta, na destruição dos objetos apontados. Como numa autofagia purificadora, para os seus membros provarem quem é o mais obediente cão de guarda do poderoso e ínfimo universo onde desfilam os que lucram na combalida economia mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008.

Por isso, Samuel Johnson, um conservador anglicano e monarquista atestou, com conhecimento de causa, no século XVIII: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. Sob o manto do nacionalismo, àqueles que o encampam com um vigor que aumenta conforme o número de câmeras ao redor, “por Deus e pela pátria”, mascara-se toda sorte de perversões que precisam ser satisfeitas e escondidas do restante da sociedade, nos termos do falso moralismo. Alguns exemplos são a decretação de sigilos centenários sobre documentos de interesse público, a não dissociação entre o bem público e o privado, a destruição da esfera pública, a privatização de setores estratégicos nacionais, a instauração do autoritarismo, a antipolítica (anauê, Sérgio Moro) e tantas outras modalidades que revelam a prevalência do gozo sádico, como a homenagem a milicianos, assassinos e torturadores.

Disse um ex-presidente neofascista brasileiro, ao vivo para o país, através da Rede Globo, em uma nada sutil cumplicidade atuante no golpe de 2016: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Ustra, por “pedaladas fiscais”… . Ele se tornou presidente depois, e, como sabemos, de forma trágica não sofreu impeachment.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais

O prazer na dor do outro é o ponto de encontro entre a Brasília destruída no último domingo e “o” mercado.

Entretanto, aos fascistas de hoje só cabe o papel de massa de manobra, de farsa da farsa. Eles só servem para “o” mercado tentar botar a faca no pescoço de um possível governo minimamente popular, mas não matá-lo. Como uma chantagem a um governo que pode restaurar uma linha democrática e inclusiva, que foi sufocada na trama geopolítica através do discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais, construído desde 2013 e eleito em 2018, no soar do apito do Juiz de Fora.

Na revolução da extrema direita do século XXI, os dispositivos contemporâneos e as novas tecnologias na sociedade da informação são fundamentais ao método da ruptura sociopolítica através da linguagem. Essencialmente, a partir de táticas e estratégias incubadas por anos na deep web, e que, botadas em marcha na última década, como numa revolução francesa às avessas, inverteram o sentido da comunicação pela implosão de significados amplamente consensuais na vida pública. Esse método visa à ressignificação de significantes estruturantes das ideias de nação, cultura e patrimônio público imaterial. Isso libertou, do ponto de vista da teoria freudiana das pulsões, os que se percebiam medíocres, incapazes e impotentes em sua cultura e ainda foram dragados pela devastação econômica pós 2008.

No contexto brasileiro, que adotou uma política econômica anticíclica de maneira bem sucedida para proteger sua economia naquele período, a crise precisou ser fabricada a partir de 2013, com uma desestabilização vinda de fora. Afinal, nenhum império deseja um postulante aos holofotes em seu “quintal”.

Em todos os regimes de inspiração fascista, ao longo da história recente, os ditadores precisaram forjar um sentido de emancipação e libertação ao seu secto – cujo ápice, aqui no Brasil, vimos no último domingo – enquanto aumentam seus patrimônios. Seja vendendo ou se apropriando da esfera coletiva, avançando suas posses, ainda mais, sobre o patrimônio público material. Sobre aquilo que na realidade física e comum ainda prepondera sobre as especulações e lastreia a economia global.

Porém, nessa falsa revolução francesa, onde quase tudo é uma fraude – exceção feita à vazão da pulsão de morte – o seu sentido social e político sempre foi o de um aprisionamento e não o de uma emancipação. Começando pelas intenções dos seus artífices e terminando com os girondinos, capatazes da velha oligarquia, gozando com uma mudança de regime que não veio e não virá, para depois serem presos.

Porque o que almejam é a libertação pela psicose, pela quebra de qualquer sentido de realidade comum, pelo misticismo que encontraria o seu destino final numa farsa da farsa de uma nova Idade Média. Só eles não sabem que isso não interessa aos seus tiranos, seja na Faria Lima ou em Wall Street.

No final das contas, são os tiranos a quem servem, e não eles, que controlam, não só as suas coleiras, mas as guilhotinas no regime do terror contemporâneo.


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