Corona, conspiração, culpa e negação


Nos últimos anos, as redes sociais virtuais no Brasil, sobretudo o WhatsApp, ajudaram a constituir um pequeno legado: o movimento antivacina, o terraplanismo e outras tantas fake news diárias, antigamente conhecidas como mentiras.

Apesar deste alto custo ao conhecimento humano, existe um legado muito positivo no uso das mídias e comunicadores instantâneos. Por exemplo, o fato de que elas ajudam a aplacar alguns efeitos psíquicos do isolamento social. Porém, este artigo é sobre o legado anterior.

Há uma estrutura narrativa que tem funcionado de forma muito eficiente nestes novos tempos de instantaneidade, ao explorar certas demandas narcísicas das pessoas e se utilizar de recursos apelativos que escondem suas falsas premissas.

Podemos dizer que as teorias da conspiração formam o eixo social que coloca o carro da negação em movimento. A partir de qualquer uma delas tudo passa a ser descrito e articulado com uma incrível desenvoltura criativa. Elas demonstram um esforço de detalhamento obsessivo por parte dos seus criadores que, sem dúvida, seria condizente com o espírito transbordante de fantasias que rege, por exemplo, os grandes artistas.

Entretanto, esperávamos que duas questões fizessem com que o carro da negação não tivesse força para passar da primeira esquina.

 

  • A marcha da conspiração

Diferentemente do sentido proposto por qualquer obra de arte – seja ela um filme, série, música ou pintura – que pressupõe a comunicação, ainda que pela ruptura – as teorias da conspiração estimulam algo nada artístico: a anulação do outro. Para um teórico da conspiração não há escuta, logo, não há a fala do outro.

O problema é maior, porque, como a própria expressão sugere, há algo em comum a todas as múltiplas teorias: o caráter único da conspiração. Por isso, não as chamamos de teorias das conspirações, no plural.

Isso indica o porquê de tantas narrativas – ainda que extremamente diversas, como as fantasias são subjetivas – cativarem um público semelhante. Aos seus adeptos, elas satisfazem uma enorme demanda por reconhecimento. Para um teórico como esse só há uma grande, desconhecida e articulada conspiração, que somente uma articulada, enorme e conhecida pessoa descobriu em sua totalidade: ele.

No cerne das suas proposições há um explícito narcisismo infantil: ou você o aceita, ama incondicionalmente e o parabeniza pelas “descobertas” ou você passa a ser desprezível e merecedor da indiferença ou da raiva, uma vez que torna-se uma representação da própria conspiração.

Isto, por si só, é uma questão muito importante, porque afeta a vida social tanto do teórico da conspiração, quanto daqueles que o amam. Pessoas sofrem com isto, de parte a parte, e, certamente, a psicanálise e as diversas psicoterapias têm muito a contribuir nestes casos.

Entretanto, nestes novos tempos, um passo dado expandiu a dimensão daqueles que são afetados.

Diferentemente dos grande artistas, que produziram obras sublimes apreciadas pela sociedade – porque sublimaram suas fantasias – o outro grupo, heterogêneo, cresceu e se organizou com as mídias sociais. Dele, estimulados por um duelo interno de fantasias, seus membros resolveram partir juntos para a ação social.

O que há em comum nessas diversas fantasias em ação, além da autofagia, é a abolição da condição do outro enquanto sujeito, uma vez que somente aquele que detém a “ciência” da conspiração em curso sabe “a verdade”. Desta forma, o outro – que não aceita a (sua) verdade – torna-se um empecilho ao que – o conspiracionista acredita – é o seu dever de agir.

Algo que já era grave e perigoso em um contexto sociopolítico aparentemente normal, neste momento, ajuda a promover a calamidade pública.

Homens jogando boliche com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

Homens jogando bocha com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

  • O ponto morto da negação

A segunda questão que poderia fazer o carro da negação estacionar chama-se: realidade. Porém, é exatamente ela o alvo.

Obviamente, o impacto econômico provocado pela pandemia afetou ainda mais a combalida economia brasileira, impondo a muitos a necessidade de se exporem ao vírus, paradoxalmente, para conseguirem sobreviver. A partir de algumas perspectivas teóricas poderíamos pensar sobre alguns dos tantos sentidos do que seja a realidade, só que o que nos cabe discutir não espera.

Há algo posto em dados, nomeado nas notícias, de jornais e conhecidos, que está começando a ser compreendido pela ciência de fato. Esse algo chama-se pandemia provocada pela Covid-19 e as suas consequências devastadoras, como as milhões de pessoas que perderam parentes, amigos, e estão vivenciando o pior dos lutos: aquele em que não se pode despedir do morto.

A questão que nos interessa, aqui, portanto, circunscreve-se àqueles que poderiam sobreviver economicamente no isolamento social.

Há poucos anos poderíamos afirmar, sem medo de errar: a realidade se impõe a todos. Agora, a questão, de vida ou de morte, é : quando?

Quem já vivenciou a perda de alguém amado pode saber o que é o estado de negação, a primeira das cinco etapas do conhecido modelo do luto, criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. Segundo este modelo, para alguns que enfrentam o luto, a negação é a primeira reação, inconsciente, diante da perda de um objeto fundamental (para a psicanálise, um objeto pode ser tanto uma pessoa, quanto uma ideia, um pensamento, uma relação ou uma coisa física).

Esta reação ocorre porque o objeto perdido estruturava narcisicamente o psiquismo, naquele lugar que nos faz ser e saber quem somos. Assim, a negação é a tentativa do Inconsciente de reagir ao desmoronamento do Eu. Ou seja, quando a dor é tamanha e o medo de viver sem aquele objeto é tão grande, a realidade torna-se insuportável. Portanto, em um primeiro momento, o psiquismo a nega, porque precisa sobreviver.

Uma boa parte do clima conspiracionista que avança pelas correntes do WhatsApp – para além das mentiras de poucos, por má-fé – também desponta como uma negação da realidade. Cada qual com suas questões na vida encontrou, através dessas fantasiosas narrativas, um meio para organizar os seus sentimentos.

Botar em marcha o carro da negação, portanto, é a ação que promove, não a obra de arte enquanto fruto da sublimação das fantasias, mas o avanço destas sobre a realidade social. Por isso, a consequência da ação não será, jamais, a criação que partilha sentidos, mas a sobreposição ou a imposição deles.

Esta imposição permite, àquele que impõe, extravasar os seus fracassos e perdas. O expurgo dos afetos de pequenos lutos diários, que antes não encontravam o devido escape, encontram uma prazerosa sensação, progressiva e libertadora, para a qual pouco importa a realidade.

Assim, tragicamente, neste momento, vemos algumas dimensões da experiência unirem-se na negação. De um lado, parentes de pessoas mortas pela pandemia, e, do outro, movimentos antivacina e demais negacionistas.

Esse carro acelerado nos leva a um último aspecto importante.

 

  • A culpa após a pandemia

A culpa é um sentimento que acumula-se em doses homeopáticas. Todos a sentimos ao menos uma vez na vida. Ela é traiçoeira, porque assemelha-se à fatura do cartão de crédito quando chega. Enquanto compramos tudo está uma maravilha, mas lá no fundo desconfiamos que não deveríamos fazer aquilo.

Um sentimento que pode ser antecipado pelo psiquismo, diferentemente daqueles suscitados por grandes eventos traumáticos que escapam ao nosso controle. Afinal, ao menos no caso das compras, sabemos que a fatura chegará.

Em outras alçadas da vida não muda muito, quase sempre é assim.

Entretanto, continuamos insistindo nos erros (mas também acertos), porque esta condição desejante, agitada em fantasias, não cessa jamais. Também, porque temos a certeza de que satisfazer um desejo sempre é profundamente prazeroso e sabemos bem que há algumas culpas e outras culpas.

Neste momento de necessário isolamento social, quando estados de negação da realidade tristemente confluem rumo à calamidade pública, muitos que não são teóricos da conspiração, nem necessitariam sair do isolamento – por sobrevivência ou devido à profissão – estão fazendo exatamente isto.

De fato, ficar sem abraçar quem amamos e sem sair de casa são duas privações que estimulam as fantasias e, assim, caso a negação não se coloque, o desejo de voltar à normalidade só tende a crescer e apertar o peito em ansiedade e saudade.

Porém, há um fator importante nisto tudo.

O fato de raramente podermos identificar, em meio a uma epidemia ou pandemia, quem foi o agente transmissor que infectou alguém, aparentemente tem feito muitos se desresponsabilizem por suas atitudes. Sobretudo, porque o coronavírus pode ser assintomático para 80% das pessoas. Como jamais saberemos com certeza quem contaminou quem, é impossível estabelecer legalmente um culpado.

Isto significa que, principalmente os jovens – mas não só – estão fortemente imantados pelas suas fantasias e desejos e tentados a saírem pelas ruas despreocupadamente. O equívoco não se dá, somente, ao subestimar as estatísticas que apontam que 20% podem ter sintomas e 5% correm o sério risco de morrer. Ele ocorre quando esta desresponsabilização, em sua jornada narcisista, expõe outras pessoas ao risco. Outras pessoas que não podem aderir ao isolamento, por necessidade.

Os que agem desta forma estão impondo o seu desejo e as suas fantasias às custas da vida dos outros.

Estas pessoas não estão em um estado de negação, mas podem estar se deixando levar, inconscientemente, pelo clima de alguns que estão. O que elas não vislumbram é que quando a pandemia passar, com boas chances de que sobrevivam, a culpa interior pode tornar-se a mais dolorosa das penas, que nenhum tribunal seria capaz de impor. Principalmente, caso percam alguém amado.

No luto, a negação quase sempre passa. Ele é elaborado em função do tempo e, também, de uma boa terapia. A vida segue.

Porém, quando a culpa envolve-se na história, o luto vira melancolia.

Notem: na vida conhecemos muitos perdoados e desculpados por erros graves, mas dificilmente encontramos um ex melancólico.

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Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, recomendo a leitura de dois textos de S. Freud: Introdução ao Narcisismo e Luto e melancolia.


1 Comment Corona, conspiração, culpa e negação

  1. Ângela Maria Rodrigues

    Excelente!! Obrigada, por esse bálsamo! A “loucura” está entronizada e a coerência, na masmorra, nestes dias, mais especialmente. Sua reflexão, traz, ar puro e clareza sobre essa inversão!

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