Carnavalize-se: o tesão está na RUA – Resistência, União e Alegria

Em um país no qual a alegria sempre foi percebida como um instrumento da sobrevivência e da resistência, o carnaval foi alçado a um espaço de encontros, representações, críticas, sustentações e subversões.

O fascismo, ao contrário, sempre foi a celebração do rígido, do uniforme, do previsível. Sua estética de ângulos retos e linhas duras, da marcha cadenciada, da obediência coreografada. Historicamente ele não tolerava o desvio, o grotesco, a ironia – elementos essenciais da tradição carnavalesca.

No carnaval, a hierarquia aparentemente se dissolvia, os signos eram embaralhados e o poder, ridicularizado. Não por acaso, regimes fascistas sempre buscaram sufocar ou controlar as artes e expressões populares, temendo suas capacidades de desagregarem os alicerces do autoritarismo.

Isso mudou.

Em tempos de ameaças autoritárias pulverizadas e organizadas pelo planeta, compreender o carnaval – enquanto fato social na atual conjuntura brasileira – como um antídoto ao fascismo local significaria reconhecer que a sua estética do excesso, a sua política da brincadeira e a sua ética da transgressão seriam, por si só, formas de resistência à rigidez dos que pretendem restringir as liberdades para perpetuar a injustiça social do “mercado”, cada vez mais sanguinário.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Entretanto, o neofascismo e o neonazismo têm se massificado nos últimos quinze anos exatamente porque incorporaram em sua linguagem – desde os tempos em que se restringiam à deep web – o escárnio, o desvio, o grotesco, a ironia. Cultivo nítida a leitura de que esse processo, tal qual o reconhecemos em 2025, só foi possível em função da sua relação simbiótica com a massificação da internet e, em um segundo momento, das redes sociais virtuais.

Um fosso inédito foi aberto pela última revolução tecnológica. De um lado, uma juventude interessada nas novidades, como sempre, mas extremamente privilegiada – que teve acesso material aos recursos necessários nos primórdios da internet, enquanto diversão livre e descomprometida. Do outro, o universo adulto de então, que historicamente ditou os rumos das novas tecnologias e estava alheio à revolução que ocorria. Assim, pela primeira vez na história da humanidade, o controle sobre uma revolução tecnológica não ficou nas mãos dos adultos.

Sarcasmo, ironia, inconsequência, o grotesco, medo, ansiedade, falta de limites e delírios de onipotência são predicados facilmente encontrados em jovens e em carnavais desde sempre. Assim, ao longo dos últimos trinta anos, o ethos da internet foi sendo configurado simbolicamente com tal regressividade.

O pior? Uma regressividade simbolizada pelo universo emocional de arrogantes adolescentes da elite econômica mundial. Quando alguns deles se tornaram bilionários “brincando” e ficaram cada vez mais poderosos enquanto envelheciam, provavelmente se perceberam avalizados e aprovados num suposto “grande teste da vida”. Acreditaram que não precisavam mudar, a reverem suas visões de mundo, a aprenderem, a serem humildes diante do desconhecido. Eles não foram educados pela vida real, não tiveram desejos frustrados o suficiente, não foram castrados pela cultura, pelas leis, sequer foram submetidos ao contraditório. Eles fabricaram, sem resistência alguma dos Estados nacionais e de órgãos internacionais um novo mundo no qual são reis, déspotas.

Hoje, o que temos é uma confraria com meia-dúzia de moleques, entre 30, 40 e 50 anos de idade, controlando os destinos de países e do planeta. Suas ações são, eternamente, uma brincadeira, ainda que lancem bilhões de seres humanos no abismo. Tal revolução promoveu uma fratura global que se consolida, nos dias atuais, no poder assustador adquirido pelas Big Tech que ajudaram a construir e, agora, abertamente legitimam e promovem o neofascismo e o neonazismo. Do sonho de uma internet livre, que seria uma difusora de conhecimento e da liberdade, passamos aos monopólios desregulados de grandes corporações comandadas por regredidos com aspirações messiânicas e totalitárias. No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo propus uma extensa análise a esse respeito.

Fiz essa digressão porque, ao escrever sobre o carnaval em tempos sombrios, penso que devemos reconhecer que o fascismo se carnavalizou e, talvez por isso, em larga medida, popularizou-se. Ele propala às massas – de fato, é promovido pelo grande capital nas redes sociais virtuais – o pensamento mágico; não enquanto fantasia, mas como força de concretude. Vende-se, assim, com as mais sofisticadas técnicas de marketing uma História mentirosa, falsa, deturpada, delírios, uma realidade alternativa, um Brasil paralelo, uma Terra plana. Como se instalassem, desse modo, um chip nos cérebros de milhões de pessoas que, ao contrário do que lhes propiciaria o carnaval, são aprisionadas em um universo paralelo de negação, cujo combustível são o medo e o ódio, porém, que os liberta naquilo que descrevo como uma psicose compartilhada.

Essa estratégia sádica do capital após a crise de 2008, portanto, é o exato oposto daquilo que ele apregoa e vende. Ela não é libertária do ponto de vista econômico, filosófico e sociopolítico, mas uma ação doutrinária sem precedentes, cuja dominação é percebida cognitivamente como libertadora por aqueles que passam a fazer parte do seu rebanho, da sua seita terrorista e, por isso, a defendê-lo até à morte, sem qualquer consciência de que o esteja fazendo. Inclusive, com alto grau de suscetibilidade a tais discursos de ódio estão aqueles que foram frustrados, precarizados e marginalizados pelo neoliberalismo – anos 1980-90 -, que estavam com muita raiva de “tudo que está aí”. Portanto, o fascismo contemporâneo é um fenômeno de massa.

Entretanto, apesar de apresentar-se como um bufão com uma máscara barroca, o fascismo sempre se fundou, e assim continua, no medo, na covardia, na violência e na homogeneização, enquanto o carnaval, de fato, é um espaço de multiplicidade e coragem, uma pedagogia do descontrole onde a alegria da partilha é um ato político, não o ódio. O fato social carnaval nos ensina que o riso não é apenas uma manifestação do prazer e da alegria, mas também uma arma contra as forças da necropolítica contemporânea que operam aquilo que chamo de ultraliberalismo.

O fascismo carnavalizado continua nadando de braçada na internet, no tanque que lhe foi fabricado e tem sido ampliado pelas grandes corporações. Já ao carnaval cabe o verdadeiro espaço público: as ruas, praças e avenidas. Nas frestas dessa folia, músicas e ideias sempre surgiram para confrontar ditaduras, velhos moralismos e a rotina violenta promovida pelo status quo brasileiro. Por isso, a presente discussão se tece no cruzamento entre o desejo de liberdade – o uso do riso como tática de resistência – e a consciência de que as festas populares, especialmente o carnaval, também guardam estruturas de poder e hierarquia. Para tanto, contraponho duas obras que julgo complementares e essenciais para compreendermos a importância crescente de nos carnavalizarmos na atual conjuntura brasileira e mundial.

I. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito

Um dos pilares da sociologia brasileira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, em Carnaval brasileiro – o vivido e o mito (1992), investiga a dualidade entre a estrutura concreta do carnaval e a imagem idealizada que o envolve. Enquanto o mito sugere uma suspensão das hierarquias sociais e a liberdade irrestrita dos foliões, a realidade demonstra que a festa, ao invés de subverter a ordem, a reafirma. A autora desmonta a visão de que o carnaval seria um espaço de inversão social, mostrando que, apesar da aparência democrática, a festa segue reproduzindo desigualdades e mantendo formas de exclusão.

A análise parte do estudo histórico da transição do “entrudo” português para o carnaval moderno. O entrudo, marcado por brincadeiras desordenadas e interações comunitárias, foi gradualmente substituído por um modelo de festa organizado e disciplinado, especialmente sob influência da elite europeia. No Brasil, esse processo acompanhou a urbanização e o crescimento econômico, resultando na consolidação do carnaval como um grande evento nacional. Enquanto em Portugal a festa perdeu força, no Brasil ela se institucionalizou e se tornou um dos principais símbolos culturais do país. No entanto, essa hegemonia não ocorreu sem disputas. O controle sobre a festa passou a ser exercido por empresários, políticos e patrocinadores, tornando-a menos espontânea e mais voltada ao espetáculo do que à participação popular livre.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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O mito carnavalesco é sustentado pela ideia de que, durante a festa, diferenças de classe, raça e poder desaparecem, criando uma sociedade alternativa, ao menos temporariamente. No entanto, Queiroz demonstra que essa visão esconde o funcionamento real do carnaval. O caso das escolas de samba do Rio de Janeiro é ilustrativo: surgidas em comunidades periféricas, essas escolas foram progressivamente apropriadas por gestores e investidores externos, afastando os sambistas das decisões estruturais. Os desfiles, muitas vezes exaltados como expressões genuínas da cultura popular, seguem regras rígidas, são avaliados por critérios técnicos e se tornam verdadeiros espetáculos empresariais. O mesmo ocorre nos bailes carnavalescos, onde a segregação se mantém evidente – os ingressos limitam a participação de determinados grupos, enquanto os espaços mais prestigiosos são reservados à elite.

Desde o século XIX, o carnaval foi incorporado à construção da identidade nacional. O movimento modernista e o Estado Novo ajudaram a promovê-lo como um símbolo da brasilidade, destacando sua diversidade e alegria. Entretanto, Queiroz aponta que essa valorização cultural não implica maior inclusão social. O carnaval é exaltado como manifestação popular, mas os setores populares permanecem distantes da sua administração e lucratividade. Sua institucionalização fortaleceu a festa como um evento oficial, mas também restringiu a autonomia dos foliões.

Ao examinar escolas de samba, blocos e bailes, Queiroz conclui que o carnaval não rompe com a estrutura social vigente, mas a reforça. As normas que regem os desfiles, a segregação econômica dos eventos e o controle exercido por patrocinadores e governantes revelam que a festa está longe de ser um momento de anulação das desigualdades. Como afirma a autora, o mito carnavalesco reúne observações, formula noções e constrói uma imagem social atraente, refúgio no qual os indivíduos, uma vez por ano, encontram o prazer de uma existência alegre e livre, oposta à penosa aceitação das desilusões do cotidiano. Mas é apenas uma imagem… (QUEIROZ, p. 195).

A obra desmonta a noção de carnaval como um espaço de liberdade plena, revelando sua complexidade estrutural. Queiroz demonstra que, por trás da aparência festiva, persistem as mesmas hierarquias e disputas que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, podemos inferir, o Brasil e o mundo contemporâneos, sob a ameaça do fascismo carnavalizado. Sua análise desafia a visão romantizada da festa, convidando o leitor a enxergar o carnaval não apenas como celebração, mas como um fenômeno social marcado por tensões e dinâmicas de poder. O contraste entre o vivido e o mito expõe uma festa que, ao invés de instaurar uma realidade alternativa, reflete as contradições da própria sociedade que a celebra.

II. O carnaval à luz de Sem tesão não há solução, de Roberto Freire

Em Sem tesão não há solução (1987) – expressão lida pelo autor em um picho no muro de um cemitério de São Paulo -, Roberto Freire relata que nunca se submeteu passivamente à violência imposta pela ditadura militar no Brasil. Dissidente e indignado, enfrentou o regime de todas as formas possíveis, sendo perseguido, preso, torturado e testemunhando a morte de amigos. Diferente de alguns que suportaram a repressão sem recorrer às drogas, ele admitiu ter se tornado alcoólatra e usuário de diversas substâncias para suportar a dor e o medo. No entanto, atribuiu também ao álcool o fato de não ter enlouquecido ou cometido atos extremos.

Ao longo de dez anos de terapias intensas, conseguiu substituir essa dependência por uma ideologia transformadora, que o ajudou a canalizar sua energia vital e criativa naquilo que ele chama de ação revolucionária. Sobretudo esses trabalhos que culminaram na Somaterapia me restituíram o necessário tesão para levar adiante e com armas novas, mais eficientes, a luta contra o autoritarismo reativo que a violência do fascismo deixou infiltrado em mim. (FREIRE, p.78).

Assim, tesão, muito simples e resumidamente, quer significar hoje o que sentimos sensualizando juntos a beleza e a alegria em cada coisa com a qual entramos em contato e com a qual nos comunicamos. (FREIRE, p. 12).

Quando Roberto Freire propõe a ideia de que o “tesão” equivale a uma dimensão essencial da vida, algo que transcende o mero desejo sexual e se converte em uma energia vital, ele lança luz sobre múltiplos fenômenos culturais e políticos. Dentro desse horizonte, observar o carnaval brasileiro — símbolo de uma vitalidade quase anárquica em suas manifestações — por meio do prisma freiriano significa deslocar o foco dos aspectos organizacionais da folia para aquilo que Freud, Reich e o próprio Freire evocam: a fusão entre o prazer e a reinvenção da convivência social.

No livro, Freire defende que o tesão não se limita a um substantivo ligado somente à excitação carnal; além, o tesão se desdobra como força que desperta o entusiasmo, a criatividade e a vontade de viver. Aproxima-se, assim, do que ele chama de “ludicidade espontânea”, um modo de brincar e jogar com a vida que ultrapassa as fronteiras do produtivismo e da competitividade. Dessa perspectiva, portanto, reconheceríamos o carnaval enquanto uma explosão de cores, gestos, melodias e, sobretudo, participação coletiva. O fato social que estrutura um palco central daquilo que Freire poderia denominar de uma dimensão tesuda da existência.

1 – O carnaval como exaltação da alegria e do prazer

Um dos primeiros pontos que Freire sublinha é a fusão entre a busca do prazer e a rejeição da opressão, sejam suas raízes familiares, políticas ou religiosas. Ele critica diretamente as formas autoritárias que se manifestam nos lares e na sociedade, sustentando que o tesão é o antídoto mais visceral contra a normatização. No carnaval, essa crítica ganha concretude: a fantasia, o riso e a irreverência subvertem temporariamente as hierarquias, o status quo. Nele, milhões de pessoas se permitem vivenciar “o tesão de estar vivo”, com “os sentidos em estado de alerta, de prontidão, antenados, numa espécie de ereção vital, somática, geral.” (FREIRE, p. 11).

Ainda que os grandes interesses econômicos busquem “domesticar” a festa, o impulso profundo do carnaval permanece ancorado em sua raiz libertária, enquanto expressão popular. Um fato social delineado enquanto válvula de despressurização coletiva que ecoa, em parte, a proposta freiriana de que “tesão” não é só impulso erótico, mas sim alegria e prazer diante da vida, vontade de experienciar um campo coletivo que expande substancialmente a satisfação pulsional em sublimação e ato.

2- O combate ao autoritarismo nos corpos

Freire analisa, em diversos trechos, a forma pela qual a sociedade burguesa e o poder político instituído reprimem a livre expressão corporal. Ele argumenta que a família e as autoridades usam o moralismo para bloquear uma subjetividade revolucionária, impedindo as pessoas de se reconectarem a sua pulsão natural de prazer. Ora, durante o carnaval, por alguns dias, a liberação dos corpos age como uma ressurreição dessas forças vitais, ainda que efêmera. Abundam as expressões culturais, os excessos, as músicas, as fantasias, a nudez parcial, a sensualidade, a diversão ruidosa, a brincadeira franca, e — mesmo sob vigilância midiática ou institucional — o carnaval faz emergir a capacidade das pessoas de ocuparem as ruas e se encantarem pelos gestos e pelos encontros casuais, apesar da violência urbana.

Nesse sentido, no fato social carnaval, pulsa uma contracorrente às disciplinas impostas pela sociedade, mas autorizada pela cultura, que, por sua vez, promove uma suspensão parcial do supereu de cada folião. Tal contracorrente coincide com o pensamento do anarquista Freire, para quem “viver com tesão” é o oposto da obediência aos padrões de poder. Assim, nas avenidas, nos blocos de rua ou nos salões, configura-se um estado manifesto de gozo de existir, de alegria, ainda que fugaz.

3 – A alegria revolucionária não é maníaca, nem oriunda do consumismo

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Para Freire, a fantasia e a imaginação lúdica são ferramentas fundamentais contra o desamor e contra qualquer forma de escravização emocional. O que acho mais bonito e vejo no amor dos casais revolucionários é como eles o vivem de forma lúdica, brincando e jogando sempre. A ludicidade é a mãe do tesão e, ao mesmo tempo, o pai da criatividade. É o processo de criação, no amor, que garante a sua sobrevivência (FREIRE, p. 112).

Se ele insiste que a criatividade do corpo e do afeto nos torna revolucionários, no carnaval esse é o mecanismo por excelência: as fantasias – sexuais, nos termos psicanalíticos, e literais, na forma de trajes – e a abertura para o encontro transformam as ruas em cenários de pura potencialidade. Muda-se de identidade, subverte-se o gênero, desloca-se a moral, e o que resta — no cerne — é a pulsação do desejo por uma vida sem barreiras. A força que une a ludicidade espontânea do carnaval e o “tesão” descrito por Freire nada mais é que a recusa total de encarar a vida como uma repetição de práticas rígidas, sem cor e sem brilho. Não é uma incoerência estúpida reclamar e um cinismo irresponsável ouvir reclamações sobre a falta de prazer sexual num corpo e numa pessoa para a qual tudo o mais na vida funciona sem nenhum prazer?” (FREIRE, p. 71).

Desta feita, é essencial o alerta de que tais práticas rígidas, sem cor e sem brilho são aquelas às quais estamos submetidos na rotina de trabalhos precarizados e exaustivos, das redes sociais virtuais, do consumismo, da ostentação, do narcisismo patológico e ansiogênico que assola o mundo contemporâneo, enquanto sintomas psicossociais nos indivíduos que encarnam as manifestações do ultraliberalismo e as suas aspirações totalitárias.

III. Carnavalize-se

O carnaval nos lembra que a alegria é um direito, um ato de resistência e, sobretudo, uma necessidade. Em tempos em que o ultraliberalismo promove o ódio e a violência, recobrar o tesão pela vida, pelo encontro e pelo outro torna-se não apenas um desejo, mas um caminho político à sobrevivência. Se o fascismo se apropriou da estética do grotesco e da ironia para esvaziar o riso de sua potência libertária, nos cabe recuperar o sentido mais profundo do carnaval – aquele que não apenas desorganiza, mas que reinventa, que não apenas subverte, mas que liberta.

Freire nos ensina que sem tesão não há solução, e isso não é apenas um mantra hedonista, mas um chamado à insubmissão diante do cinismo e da apatia contemporâneos. O carnaval é esse espaço onde o corpo se liberta, onde a alegria se expande e onde a criatividade floresce sem medo. Não se trata de um devaneio efêmero, mas de uma recusa contundente à normalização do medo e da destruição imposta pelo ultraliberalismo. Se o poder nos quer exaustos e obedientes, o carnaval nos ensina a nos mantermos vivos e insubordinados.

Portanto, carnavalizar-se é mais do que uma celebração passageira; é um modo de existência, um gesto de reivindicação da liberdade em sua forma mais vibrante. Em um mundo que quer nos tornar autômatos produtivos, a alegria é, sim, revolucionária. O riso, o prazer e o excesso não são apenas válvulas de escape – são ferramentas para reocupar o espaço público e reivindicar a nossa própria existência. Afinal, enquanto houver corpos que dançam, gargalham e celebram a pluralidade da vida, haverá uma real possibilidade de transformação. Isso é o que eles temem.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Roberto. Sem tesão não há solução. São Paulo: Trigrama Editora, 1987.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

 

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais | O neofascismo brasileiro

O cenário

No último domingo, 8 de janeiro de 2023, uma semana após o mais emblemático rito de posse de um presidente da república na vida nacional, alguns milhares de terroristas invadiram o coração da República Federativa do Brasil, situado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Destruíram um patrimônio público de valor inestimável, obras de arte e mobílias históricas sem preço, porque únicas ou doadas por chefes de Estado desde o século XVII. Arrebentaram vidraças, portas, monitores, chão, tetos e paredes. Roubaram bens, HDs, documentos secretos.

Vilipendiaram o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto numa ação orquestrada pelo ex-governo fascista brasileiro, findado, então, há oito dias. Desde o fim do ano passado, quando ainda usufruía do seu passaporte diplomático, o ex-presidente encontra-se refugiado na Flórida, Estados Unidos. Noticiaram que ele estaria pensando em retornar ao Brasil para evitar o vexame da extradição. A Itália, ao menor sinal do neofascista brasileiro, já se mobilizou para evitar recebê-lo.

Seguem alguns adendos às possíveis análises sobre os últimos eventos promovidos pela extrema direita brasileira, emulando ações de uma extrema direita internacional, reavivada como não víamos desde a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

As condições históricas – O público e o privado

Em face do intento fracassado, de ruptura de um regime democrático recém restaurado em sua aparente plenitude, só podemos nos fiar por aquilo que nos precede.

Poderíamos facilmente visualizar – portanto, reconhecer – aqueles fascistas, despidos no último domingo, destruindo qualquer patrimônio público país afora, desde sempre, dada a nossa história colonial. De um banco de praça a um extinto orelhão, de uma vaso chinês a um quadro do Di Cavalcanti, como foi feito há três dias. Mais, em sua pulsão destrutiva, aquela horda poderia ser representada por um canalha qualquer que administra um condomínio de apartamentos como se fosse o seu castelo particular, a despeito das assembleias de moradores, ou por um capitão das Forças Armadas, ou da PM do Distrito Federal, que age sob o uniforme conforme a sua ideologia contrária ao sentido das suas atribuições e obrigações enquanto servidor público.

Todavia, dificilmente poderíamos imaginá-los destruindo o próprio apartamento, queimando o próprio carro, arrebentando uma agência do Itaú, um prédio do Starbucks, do McDonald’s ou defecando no salão da Ibovespa, enquanto comparsas quebram monitores e roubam iPhones deixados nas fartas gavetas da Faria Lima.

Tais projeções são possíveis somente porque todos somos embebidos em uma cultura historicamente patrimonialista e, ao mesmo tempo, quase todos somos destituídos de qualquer patrimônio material vultoso. Exceção feita a pouquíssimos, muitos dos quais – herdeiros numa história de exploração, escravidão, desigualdades, opressões e repressões – são os mais interessados em dinamitar quaisquer laços e relações orientados pela noção de coisa pública.

Desafortunadamente para esses poucos, hoje todos somos plenos de direitos, ao menos no papel, e podemos reivindicar livremente traços da nossa identidade. Somos, também, todos donos de um patrimônio público, material e imaterial. Somos todos filhos e agentes de uma cultura histórica e nacional, composta por um mosaico de inúmeras culturas e patrimônios regionais no tempo e no espaço brasileiro. Entre disputas e consensos, nos reconhecemos, por fim, por uma bandeira, por uma língua e por alguns sentimentos e ritos partilhados por muitos de nós. Convivemos, dessa forma, em uma democracia, através das instituições – sempre em disputa política – mas legalmente amparados e regidos por um Estado Democrático de Direito, fundado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após décadas de uma sanguinária ditadura civil-empresarial-militar instalada pelos Estados Unidos em nosso território.

Acontece que, desde as Manifestações de 2013 que resultaram no golpe empresarial-parlamentar de 2016, vivemos em mais um estado de anomia que reflete a disputa geopolítica do nosso tempo. Nele, soergueram forças do submundo institucional nutridas pelos traumas nacionais jamais elaborados – como a anistia aos torturadores e a todos os que cometeram crimes de Estado há poucas décadas – e por velhos e conhecidos interesses do exterior. Como se, subvertendo a máxima marxista, houvesse a possibilidade de repetir não a tragédia, mas a própria farsa botada em marcha na América Latina durante os anos 1960, 1970 e 1980, que promoveu a interdição de governos eleitos democraticamente com golpes militares que violentaram suas soberanias, prenderam, torturaram e assassinaram mais de 50 mil cidadãos sul-americanos. Estima-se que os corpos de mais de 30 mil pessoas estão desaparecidos até hoje.

A gênese do neofascismo brasileiro

Da farsa da farsa renasceu a extrema direita no Brasil no século XXI, seguindo uma tendência mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008. Ano inicial daquele que viraria um fenômeno de massas nas democracias ocidentais, formado por milhões de pessoas mobilizadas pelas forças mais destrutivas que existem dentro de cada uma delas. Forças canalizadas e direcionadas contra a cultura, a sociedade, a civilização.

O que vimos no último domingo foi a expressão explícita do ódio. Todavia, reestruturado por uma nova linguagem da experiência subjetiva e afetiva daqueles que pretendiam provocar uma ruptura na unidade nacional com uma guerra civil, ainda que muitos nem tivessem essa instrumentalizada consciência. Presenciamos, infelizmente de maneira esperada, uma ação terrorista visando a, mais um, golpe de Estado. O modus operandi, emulado da extrema direita dos Estados Unidos, só atestou de onde vieram as ordens e as diretrizes: da matriz trumpista.

Do país onde a organização social orienta-se por uma cultura concentrada daquilo que Max Weber teorizou, em 1905, como uma simbiose entre a ética protestante e o capitalismo. Distintamente do contexto de vida do intelectual alemão, na configuração contemporânea, o capitalismo é muito mais voraz, globalizado e a sociedade estadunidense não sustenta a herança da social-democracia construída no período do pós-guerra na Europa ocidental. Algo que enraizou e dimensionou a esfera pública tão valorizada, até hoje, no continente.

Por isso, os atos terroristas em Brasília foram repudiados até por ícones ascendentes da extrema direita do outro lado do Atlântico. Porque aquilo que os neofascistas brasileiros odeiam e atacam é tudo – absolutamente tudo – o que é público, de todos nós, brasileiros. Isso é um contrassenso a um neofascista ou a um ultranacionalista europeu, que, em sua nefasta ideologia, direciona grande parte do seu ódio aos imigrantes – inclusive aos brasileiros.

Aqui, os neofascistas (incorporados neonazistas e integralistas) foram arregimentados por uma composição política Frankenstein, que elegeu o último governo federal num processo eleitoral sob intervenção objetiva dos Estados Unidos. Tal composição continha setores da mídia, dos militares, milicianos, fisiologistas, evangélicos fundamentalistas e ultraliberais. Expoentes máximos, cada qual em seu campo, do velho patrimonialismo e da sua defesa. Esse grupo que chegou ao centro do poder federal valendo-se de táticas novas, até então, de massivas mentiras espalhadas pelas redes sociais virtuais, assumiu para si somente uma missão: deter um projeto nacional popular de longo prazo e reverter todas as conquistas dos governos anteriores.

Não foi difícil, dado o nosso histórico violento e colonial, canalizar o ódio dos seus eleitores precisamente ao solo da coletividade e do pluralismo que constitui um país. Chão cada vez mais exíguo aos pés no mundo ultraliberal, terreno árido ao caminhar da justiça e das disputas políticas, dos corpos e das mentes, dos desejos e gestos de todos. Espaço público de solavancos e comunhão, onde se pode falar, mas onde também se faz necessário ouvir e respeitar todas as manifestações plurais e divergentes que compõem uma determinada sociedade.

Contrariamente são os espaços privados. Sejam aqueles herdados desde a época das capitanias hereditárias, sejam aqueles, ainda hoje, públicos e almejados num vir-a-ser particular. Porque os espaços que excluem são aqueles onde as dinâmicas sociopolíticas respondem e, na maior parte do tempo, submetem-se aos desejos de um ou poucos donos, atuais e futuros. Foi a partir desse terreno fertilizado sinteticamente – alavancado e associado, num primeiro momento, aos discursos de um liberalismo raso como um pires – que brotou novamente o fascismo brasileiro. Agora, ainda mais subserviente e inconsciente da sua função nos novos tempos, configurando todo um campo ideológico de indivíduos disciplinados para devorarem uns aos outros com um sorriso no rosto.

A fabricação do neofascista

Num novo universo tecnológico, completamente alienado das dinâmicas que o enredam, o “patriota” foi programado por esse campo que lhe ofereceu não só o pertencimento, mas o ethos que lhe autorizou – finalmente – o gozo através do pathos do ódio. Por isso, o logos não foi necessário e, para quem olha de fora, não há lógica alguma em suas tentativas de elaborar argumentos. Porque ele foi condicionado numa crescente repetição esvaziada, mais e mais, o levando ao limite das palavras, das imagens, dos discursos, da comunicação e das “ideias” dele. De tal forma saturado, o “patriota” foi movido pela recompensa ofertada ao desejo de reconhecimento, esgarçando os próprios sentidos até a implodi-los no prazeroso vazio da própria consciência, libertando, por força bruta, o reprimido.

Nesse ponto, quando se sentiu “livre”, as estratégias e os métodos de repetição esvaziada da nova extrema direita internacional já haviam lhe ofertado a palha que reestruturou simbolicamente o seu reprimido de forma rudimentar e instrumental. Simplesmente lhe dando uma mínima sustentação simbólica que propiciou a vazão de aspirações psicóticas em ações de violência concreta, na destruição dos objetos apontados. Como numa autofagia purificadora, para os seus membros provarem quem é o mais obediente cão de guarda do poderoso e ínfimo universo onde desfilam os que lucram na combalida economia mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008.

Por isso, Samuel Johnson, um conservador anglicano e monarquista atestou, com conhecimento de causa, no século XVIII: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. Sob o manto do nacionalismo, àqueles que o encampam com um vigor que aumenta conforme o número de câmeras ao redor, “por Deus e pela pátria”, mascara-se toda sorte de perversões que precisam ser satisfeitas e escondidas do restante da sociedade, nos termos do falso moralismo. Alguns exemplos são a decretação de sigilos centenários sobre documentos de interesse público, a não dissociação entre o bem público e o privado, a destruição da esfera pública, a privatização de setores estratégicos nacionais, a instauração do autoritarismo, a antipolítica (anauê, Sérgio Moro) e tantas outras modalidades que revelam a prevalência do gozo sádico, como a homenagem a milicianos, assassinos e torturadores.

Disse um ex-presidente neofascista brasileiro, ao vivo para o país, através da Rede Globo, em uma nada sutil cumplicidade atuante no golpe de 2016: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Ustra, por “pedaladas fiscais”… . Ele se tornou presidente depois, e, como sabemos, de forma trágica não sofreu impeachment.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais

O prazer na dor do outro é o ponto de encontro entre a Brasília destruída no último domingo e “o” mercado.

Entretanto, aos fascistas de hoje só cabe o papel de massa de manobra, de farsa da farsa. Eles só servem para “o” mercado tentar botar a faca no pescoço de um possível governo minimamente popular, mas não matá-lo. Como uma chantagem a um governo que pode restaurar uma linha democrática e inclusiva, que foi sufocada na trama geopolítica através do discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais, construído desde 2013 e eleito em 2018, no soar do apito do Juiz de Fora.

Na revolução da extrema direita do século XXI, os dispositivos contemporâneos e as novas tecnologias na sociedade da informação são fundamentais ao método da ruptura sociopolítica através da linguagem. Essencialmente, a partir de táticas e estratégias incubadas por anos na deep web, e que, botadas em marcha na última década, como numa revolução francesa às avessas, inverteram o sentido da comunicação pela implosão de significados amplamente consensuais na vida pública. Esse método visa à ressignificação de significantes estruturantes das ideias de nação, cultura e patrimônio público imaterial. Isso libertou, do ponto de vista da teoria freudiana das pulsões, os que se percebiam medíocres, incapazes e impotentes em sua cultura e ainda foram dragados pela devastação econômica pós 2008.

No contexto brasileiro, que adotou uma política econômica anticíclica de maneira bem sucedida para proteger sua economia naquele período, a crise precisou ser fabricada a partir de 2013, com uma desestabilização vinda de fora. Afinal, nenhum império deseja um postulante aos holofotes em seu “quintal”.

Em todos os regimes de inspiração fascista, ao longo da história recente, os ditadores precisaram forjar um sentido de emancipação e libertação ao seu secto – cujo ápice, aqui no Brasil, vimos no último domingo – enquanto aumentam seus patrimônios. Seja vendendo ou se apropriando da esfera coletiva, avançando suas posses, ainda mais, sobre o patrimônio público material. Sobre aquilo que na realidade física e comum ainda prepondera sobre as especulações e lastreia a economia global.

Porém, nessa falsa revolução francesa, onde quase tudo é uma fraude – exceção feita à vazão da pulsão de morte – o seu sentido social e político sempre foi o de um aprisionamento e não o de uma emancipação. Começando pelas intenções dos seus artífices e terminando com os girondinos, capatazes da velha oligarquia, gozando com uma mudança de regime que não veio e não virá, para depois serem presos.

Porque o que almejam é a libertação pela psicose, pela quebra de qualquer sentido de realidade comum, pelo misticismo que encontraria o seu destino final numa farsa da farsa de uma nova Idade Média. Só eles não sabem que isso não interessa aos seus tiranos, seja na Faria Lima ou em Wall Street.

No final das contas, são os tiranos a quem servem, e não eles, que controlam, não só as suas coleiras, mas as guilhotinas no regime do terror contemporâneo.