O outro, o inferno palaciano, o canalha e o drama brasileiro

O outro

O outro, essa pessoa, categoria analítica ou entidade fenomenológica, está sempre por aí. Na verdade, por aí, por aqui, por ali. Eu sou o seu outro, aqui. Você, caro leitor, é o meu outro neste momento em que escrevo.

Porém, convenhamos, o mundo é muito grande para que tenhamos somente um ao outro. Cada um de nós tem muitos outros outros.

Sim, porque o outro está presente mesmo quando estamos sozinhos. Ele é um inquilino permanente que nos habita. Nesta relação nada mercantil o pagamento vem em diversas moedas. Por vezes ele nos persegue, censura, entristece, fustiga, noutras ele nos acolhe, alegra, acalma, liberta, inspira. Dependendo do outro, recebemos um pouco de cada, em proporções variáveis.

O fato é que o outro sempre nos estimula. Quando este estímulo não vem do outro no mundo exterior, vem do outro no mundo interior.

Do ponto de vista das ciências sociais o outro é a instância fundamental de constituição do sujeito, porque somente a partir do outro ele pode se reconhecer por diferenciação, erigindo a sua subjetividade.

Para a psicanálise freudiana, na vida adulta o outro é mais um dos múltiplos objetos do mundo exterior no qual investimos nossa libido. Porém, antes, ele nos constitui desde o primeiro momento, nas relações parentais. Destino inalcançável das nossas fantasias, mas também das identificações, o outro é a última instância da realização e da interdição dos nossos desejos.

Por isso, buscamos a repetição de beijos e abraços dados e não escapamos às fantasias com aqueles nunca dados.

Há, também, o outro dentro de nós com quem repetimos discussões e ensaiamos arrependimentos pelo dito e pelo não dito.

Ah, se arrependimento matasse, diria o outro. Não mata, não. Nos constitui.

Mas há, aqui, duas importantes distinções: sentir arrependimento é diferente de sentir culpa. Esta última, por sua vez, difere-se também de responsabilidade. Voltaremos a estas diferenças mais a frente.

 

O inferno palaciano

Napoléon Ier à Fontainebleau le 31 mars 1814. Óleo sobre tela, 138 x 180 cm. Paul Delaroche,1840.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre não foi escrita em nenhum dos seus tantos livros, ensaios ou em uma entrevista. Ela veio a público no Théâtre du Vieux-Colombier, em maio de 1944, na première da peça Huis Clos (De portas fechadas), pela boca de Garcin, personagem criada pelo filósofo francês.

A trama, em ato único, desenrola-se a partir de três desconhecidos entre si, Inès, Estelle, Garcin, e O Garçom (ou O Criado na tradução brasileira). Este último, representante do Diabo, faz as vias de apresentar às demais personagens a sua nova morada eterna: o inferno.

Diferentemente daquilo que imaginamos, o cenário assemelha-se pouco ao inferno bíblico, exceções feitas ao calor escaldante e à iluminação total do ambiente. Não há torturadores, grelhas, estacas, castigos físicos. Antes, é um salão imperial, ao estilo do regime bonapartista, com móveis, uma lareira e uma estátua de bronze. Não há janelas, espelhos, nem nada que seja frágil.

A força e a solidez napoleônica são invocadas no cenário, na atemporalidade da eternidade onde não se dorme, nem se pisca, mas também no enfrentamento do qual não se escapa, dos erros cometidos, da má-fé que não pode mais ser mascarada, mas que deve ser paga.

Ali, sem espelhos, cada qual só pode ver a si mesmo no reflexo no olho do outro. Onde, para além do reflexo, encontra o julgamento deste outro, o carrasco que reflete a sua própria consciência da má-fé, a sua culpa.

As traduções do título da peça, em português, Entre quatro paredes, e em inglês, No exit, complementam o amplo sentido da reflexão de Sartre.

Há uma clausura intransponível na existência, jamais saímos de nós mesmos. Se somos vocacionados para a liberdade, ela não vem sem escolhas e à revelia do olhar dos outros.

A liberdade, para Sartre, certamente inspirado por Freud, é um constante vir-a-ser que só pode ser experimentado pela autorresponsabilização perante os nossos desejos, pela atitude de assumirmos as ações tomadas e as escolhas feitas que, sempre, envolvem o outro.

Caso contrário, quando nos desresponsabilizamos na busca pela satisfação dos nossos desejos, padecemos no inferno, fadados a nos reconhecermos eternamente e somente no olhar do outro. Nos enxergando no carrasco que nos julga, tortura e do qual não conseguimos escapar. No carrasco que nos descobre, desvenda, desnuda e revela aquilo que sempre escondemos: a nossa covardia diante da liberdade.

Esse olhar infernal do outro somos nós mesmos, quando somos obrigados a reencontrar, como culpa, a responsabilidade da qual acreditávamos estar desviando, deliberadamente, por má-fé.

Neste sentido, esta peça, encenada pela primeira vez quando a II Guerra Mundial caminhava para o seu desfecho, é uma alegoria que marca o início da transição pela qual passaria o próprio filósofo que já havia escrito o colossal O ser e o nada, considerada por muitos a sua obra máxima.

A partir dali, paulatinamente, para Sartre o conceito de liberdade expandiria de um imperativo ontológico para um destino do ser social e político.

Sua atuação política transbordou da sua filosofia, das linhas herméticas do existencialismo para as ruas de Paris, e o transformou em uma das referências da geração que marcou a história francesa e ocidental com as manifestações de maio de 1968.

 

O canalha

Samuel Johnson, um intelectual britânico do século XVIII disse que o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Sendo um conservador monarquista e anglicano devoto, devemos supor que ele sabia bem do que estava falando.

Obviamente, ele não se dirigiu aos patriotas, mas aos canalhas. Não são todos os patriotas que são canalhas. Mas o último reduto possível a um canalha, para Johnson, é o patriotismo ou o nacionalismo.

É com esta macroidentidade última que pode transitar aquele cuja canalhice já foi desmascarada em todos os outros enredos e esferas da vida social. Poderíamos, também, expandir a noção de patriotismo para a de moralismo.

O canalha, enquanto sujeito vil e grosseiro é um narcisista contumaz porque sabe que é insignificante para a maioria das pessoas. Assim, só lhe cabe destinar grande parte do seu amor a si próprio.

Não há problema no narcisismo, uma vez que todos necessitamos dele como um recurso permanente de sobrevivência. Tampouco, nada decorre de grave em excedermos eventualmente no nosso narcisismo.

Capa da 1ª edição de O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1943.

Ainda, mesmo alguém excessivamente narcisista na busca pela satisfação dos seus desejos pode não ser um canalha, uma vez que estas são dinâmicas psíquicas predominantemente inconscientes.

O que define um canalha é que além de ser excessivamente narcisista ele tem consciência e age de má-fé. Prejudicar o outro, para ele, é uma escolha. Mais, uma escolha trivial e recorrente.

Ao canalha há um certo espaço social, onde ele sempre encontrará amantes e cúmplices conscientes ou inconscientes das suas canalhices, contudo, ele não hesitará em prejudicar estas mesmas pessoas para satisfazer os seus desejos e empreender as suas fantasias.

O que geralmente decorre das suas canalhices é que ele não vai longe nas múltiplas realidades sociais, uma vez que poucas serão as redes sociais parciais que o aturarão por muito tempo.

Alguns poderiam apontar nestas características os traços da psicopatia, o que seria correto, não fosse o fato de que o psicopata domina plenamente, no mais das vezes com elegância, o trânsito das normas.

Ao psicopata, o exercício da empatia tende a ter uma baixa modulação, fazendo com que ele precise se apegar, dominar e transitar com extrema perícia pela normatividade para satisfazer os seus desejos. (Um adendo necessário: aqui não tratamos do serial killer estereotipado dos filmes. Algo que, inclusive, faz muito mal à compreensão coletiva da psicopatia).

Já ao canalha o que não costuma faltar é empatia, paixão. Ele é regredido como uma criança que busca o perdão da mãe, no pior sentido possível, porque ele tem a força e as armas de um adulto.

Ele pode até circular com certa perícia nas relações, mas sempre, invariavelmente, cairá em suas próprias tramas. Porque lhe falta uma dose de compreensão sobre os próprios afetos e uma certa inteligência social, uma vez que é tomado pelas suas fantasias e delírios de grandeza.

Assim, o canalha aproxima-se mais do psicótico, do paranoico, porque orienta o mundo ao seu redor a partir da sua culpa, do seu inferno particular.

Portanto, ao contrário do que o senso comum tende a acreditar, as esferas pública, midiática e de políticas institucionais não são um ambiente propício ao canalha. Estes não são espaços que favorecem a sua camuflagem, por serem posições de muita exposição e escrutínio público onde é necessária a interlocução permanente com muitos outros.

Ao menos era assim, quando compartilhava-se socialmente a noção de que canalhas não merecem ser os depositários de desejos, esperanças e anseios coletivos.

 

O drama brasileiro

Voltamos às distinções entre o responsável, o arrependido e o culpado.

Enquanto o responsável, movido pelos seus desejos inconscientes, orienta-se pela boa-fé e pela ética, o arrependido é o responsável que fez uma escolha de boa-fé, mas percebeu que foi a escolha errada.

Já o culpado é aquele que agiu deliberadamente, conscientemente, de má-fé. Quando ele atua reencenando a sua culpa cotidianamente em prejuízo dos outros, o chamamos de canalha. No entanto, se este prejuízo, dano ou dor causada no outro for a própria meta dos seus desejos, o chamamos de sádico.

Como falta capacidade e coragem de se responsabilizar e, nos termos de Sartre, se comprometer com a sua própria liberdade, ao canalha encerrado em seu palácio bonapartista só restam duas saídas falsas para tentar fugir do seu inferno particular: acreditar que é Napoleão Bonaparte ou exterminar o olhar do outro.

A saída napoleônica ocorre após o estágio da paranoia, quando esta ergue uma defesa mitomaníaca que, não raramente, envolve espadas, armas de grosso calibre e cavalos. Assim, batendo bumbo, o canalha tenta diluir o seu inferno particular no mundo exterior, para compensar a sua pequenez. Desta forma, ele consegue um alívio pessoal ao angariar provisoriamente seguidores que se identificam com ele, mas que logo se devorarão uns aos outros neste inferno expandido.

A outra falsa saída do seu inferno particular é, simplesmente, tentar aniquilar o mundo exterior, inclusos os adeptos que não o seguirem cegamente em uma identificação total. Isso se faz, como apontou Johnson, travestido de nacionalista, último espaço social e simbólico possível para tentar camuflar a sua canalhice, enquanto tenta silenciar e exterminar o olhar do outro. Porque ali, no outro, o canalha vê refletida a sua culpa, a sua má-fé, os seus erros e a sua insignificância.

Acontece que falsos napoleões e verdadeiros canalhas não costumavam chegar às altas esferas do poder desde o fim da II Guerra Mundial. Em momentos de aparente continuidade histórica, canalhas e sádicos costumam ser contidos naturalmente nas linhas mais baixas das instituições, exatamente porque não hesitam em colocar populações, a coisa pública e o próprio país em risco. Seja no exército, nos partidos políticos, no congresso, na igreja ou no aparato judiciário.

Quando ocorre um processo de anomia, geralmente provocado por duros embates geopolíticos após graves crises econômicas, forças deste submundo das instituições começam a emergir com os seus bumbos, estimulados por poderosos interesses organizados interna e externamente. Nesta empreitada, como antes, esta ascensão conta com muitos outros cúmplices poderosos, agora arrependidos ou culpados.

Este processo, obviamente, gera uma resposta que tende a se organizar também através das instituições e na sociedade civil.

São momentos em que os infernos particulares e as fantasias transbordaram em violência, paranoia e, no século XXI, em um negacionismo, princípio de psicose coletiva instigada por mentiras pulverizadas e a destituição de referenciais e das verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas.

Eis o retorno do reprimido, agora nas versões WhatsApp e YouTube. Eis uma sociedade em que massas se reconheceram pela via do consumismo, ao invés de terem um Estado de bem-estar social. Eis uma pandemia.

Eis o drama brasileiro. Impasse do qual só sairemos quando nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, orientados pela boa-fé e por princípios éticos, quando reconhecermos no olhar dos outros o nosso próprio desejo de liberdade.

O arrependimento edifica, a culpa destrói.

Corona, conspiração, culpa e negação

Nos últimos anos, as redes sociais virtuais no Brasil, sobretudo o WhatsApp, ajudaram a constituir um pequeno legado: o movimento antivacina, o terraplanismo e outras tantas fake news diárias, antigamente conhecidas como mentiras.

Apesar deste alto custo ao conhecimento humano, existe um legado muito positivo no uso das mídias e comunicadores instantâneos. Por exemplo, o fato de que elas ajudam a aplacar alguns efeitos psíquicos do isolamento social. Porém, este artigo é sobre o legado anterior.

Há uma estrutura narrativa que tem funcionado de forma muito eficiente nestes novos tempos de instantaneidade, ao explorar certas demandas narcísicas das pessoas e se utilizar de recursos apelativos que escondem suas falsas premissas.

Podemos dizer que as teorias da conspiração formam o eixo social que coloca o carro da negação em movimento. A partir de qualquer uma delas tudo passa a ser descrito e articulado com uma incrível desenvoltura criativa. Elas demonstram um esforço de detalhamento obsessivo por parte dos seus criadores que, sem dúvida, seria condizente com o espírito transbordante de fantasias que rege, por exemplo, os grandes artistas.

Entretanto, esperávamos que duas questões fizessem com que o carro da negação não tivesse força para passar da primeira esquina.

 

  • A marcha da conspiração

Diferentemente do sentido proposto por qualquer obra de arte – seja ela um filme, série, música ou pintura – que pressupõe a comunicação, ainda que pela ruptura – as teorias da conspiração estimulam algo nada artístico: a anulação do outro. Para um teórico da conspiração não há escuta, logo, não há a fala do outro.

O problema é maior, porque, como a própria expressão sugere, há algo em comum a todas as múltiplas teorias: o caráter único da conspiração. Por isso, não as chamamos de teorias das conspirações, no plural.

Isso indica o porquê de tantas narrativas – ainda que extremamente diversas, como as fantasias são subjetivas – cativarem um público semelhante. Aos seus adeptos, elas satisfazem uma enorme demanda por reconhecimento. Para um teórico como esse só há uma grande, desconhecida e articulada conspiração, que somente uma articulada, enorme e conhecida pessoa descobriu em sua totalidade: ele.

No cerne das suas proposições há um explícito narcisismo infantil: ou você o aceita, ama incondicionalmente e o parabeniza pelas “descobertas” ou você passa a ser desprezível e merecedor da indiferença ou da raiva, uma vez que torna-se uma representação da própria conspiração.

Isto, por si só, é uma questão muito importante, porque afeta a vida social tanto do teórico da conspiração, quanto daqueles que o amam. Pessoas sofrem com isto, de parte a parte, e, certamente, a psicanálise e as diversas psicoterapias têm muito a contribuir nestes casos.

Entretanto, nestes novos tempos, um passo dado expandiu a dimensão daqueles que são afetados.

Diferentemente dos grande artistas, que produziram obras sublimes apreciadas pela sociedade – porque sublimaram suas fantasias – o outro grupo, heterogêneo, cresceu e se organizou com as mídias sociais. Dele, estimulados por um duelo interno de fantasias, seus membros resolveram partir juntos para a ação social.

O que há em comum nessas diversas fantasias em ação, além da autofagia, é a abolição da condição do outro enquanto sujeito, uma vez que somente aquele que detém a “ciência” da conspiração em curso sabe “a verdade”. Desta forma, o outro – que não aceita a (sua) verdade – torna-se um empecilho ao que – o conspiracionista acredita – é o seu dever de agir.

Algo que já era grave e perigoso em um contexto sociopolítico aparentemente normal, neste momento, ajuda a promover a calamidade pública.

Homens jogando boliche com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

Homens jogando bocha com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

  • O ponto morto da negação

A segunda questão que poderia fazer o carro da negação estacionar chama-se: realidade. Porém, é exatamente ela o alvo.

Obviamente, o impacto econômico provocado pela pandemia afetou ainda mais a combalida economia brasileira, impondo a muitos a necessidade de se exporem ao vírus, paradoxalmente, para conseguirem sobreviver. A partir de algumas perspectivas teóricas poderíamos pensar sobre alguns dos tantos sentidos do que seja a realidade, só que o que nos cabe discutir não espera.

Há algo posto em dados, nomeado nas notícias, de jornais e conhecidos, que está começando a ser compreendido pela ciência de fato. Esse algo chama-se pandemia provocada pela Covid-19 e as suas consequências devastadoras, como as milhões de pessoas que perderam parentes, amigos, e estão vivenciando o pior dos lutos: aquele em que não se pode despedir do morto.

A questão que nos interessa, aqui, portanto, circunscreve-se àqueles que poderiam sobreviver economicamente no isolamento social.

Há poucos anos poderíamos afirmar, sem medo de errar: a realidade se impõe a todos. Agora, a questão, de vida ou de morte, é : quando?

Quem já vivenciou a perda de alguém amado pode saber o que é o estado de negação, a primeira das cinco etapas do conhecido modelo do luto, criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. Segundo este modelo, para alguns que enfrentam o luto, a negação é a primeira reação, inconsciente, diante da perda de um objeto fundamental (para a psicanálise, um objeto pode ser tanto uma pessoa, quanto uma ideia, um pensamento, uma relação ou uma coisa física).

Esta reação ocorre porque o objeto perdido estruturava narcisicamente o psiquismo, naquele lugar que nos faz ser e saber quem somos. Assim, a negação é a tentativa do Inconsciente de reagir ao desmoronamento do Eu. Ou seja, quando a dor é tamanha e o medo de viver sem aquele objeto é tão grande, a realidade torna-se insuportável. Portanto, em um primeiro momento, o psiquismo a nega, porque precisa sobreviver.

Uma boa parte do clima conspiracionista que avança pelas correntes do WhatsApp – para além das mentiras de poucos, por má-fé – também desponta como uma negação da realidade. Cada qual com suas questões na vida encontrou, através dessas fantasiosas narrativas, um meio para organizar os seus sentimentos.

Botar em marcha o carro da negação, portanto, é a ação que promove, não a obra de arte enquanto fruto da sublimação das fantasias, mas o avanço destas sobre a realidade social. Por isso, a consequência da ação não será, jamais, a criação que partilha sentidos, mas a sobreposição ou a imposição deles.

Esta imposição permite, àquele que impõe, extravasar os seus fracassos e perdas. O expurgo dos afetos de pequenos lutos diários, que antes não encontravam o devido escape, encontram uma prazerosa sensação, progressiva e libertadora, para a qual pouco importa a realidade.

Assim, tragicamente, neste momento, vemos algumas dimensões da experiência unirem-se na negação. De um lado, parentes de pessoas mortas pela pandemia, e, do outro, movimentos antivacina e demais negacionistas.

Esse carro acelerado nos leva a um último aspecto importante.

 

  • A culpa após a pandemia

A culpa é um sentimento que acumula-se em doses homeopáticas. Todos a sentimos ao menos uma vez na vida. Ela é traiçoeira, porque assemelha-se à fatura do cartão de crédito quando chega. Enquanto compramos tudo está uma maravilha, mas lá no fundo desconfiamos que não deveríamos fazer aquilo.

Um sentimento que pode ser antecipado pelo psiquismo, diferentemente daqueles suscitados por grandes eventos traumáticos que escapam ao nosso controle. Afinal, ao menos no caso das compras, sabemos que a fatura chegará.

Em outras alçadas da vida não muda muito, quase sempre é assim.

Entretanto, continuamos insistindo nos erros (mas também acertos), porque esta condição desejante, agitada em fantasias, não cessa jamais. Também, porque temos a certeza de que satisfazer um desejo sempre é profundamente prazeroso e sabemos bem que há algumas culpas e outras culpas.

Neste momento de necessário isolamento social, quando estados de negação da realidade tristemente confluem rumo à calamidade pública, muitos que não são teóricos da conspiração, nem necessitariam sair do isolamento – por sobrevivência ou devido à profissão – estão fazendo exatamente isto.

De fato, ficar sem abraçar quem amamos e sem sair de casa são duas privações que estimulam as fantasias e, assim, caso a negação não se coloque, o desejo de voltar à normalidade só tende a crescer e apertar o peito em ansiedade e saudade.

Porém, há um fator importante nisto tudo.

O fato de raramente podermos identificar, em meio a uma epidemia ou pandemia, quem foi o agente transmissor que infectou alguém, aparentemente tem feito muitos se desresponsabilizem por suas atitudes. Sobretudo, porque o coronavírus pode ser assintomático para 80% das pessoas. Como jamais saberemos com certeza quem contaminou quem, é impossível estabelecer legalmente um culpado.

Isto significa que, principalmente os jovens – mas não só – estão fortemente imantados pelas suas fantasias e desejos e tentados a saírem pelas ruas despreocupadamente. O equívoco não se dá, somente, ao subestimar as estatísticas que apontam que 20% podem ter sintomas e 5% correm o sério risco de morrer. Ele ocorre quando esta desresponsabilização, em sua jornada narcisista, expõe outras pessoas ao risco. Outras pessoas que não podem aderir ao isolamento, por necessidade.

Os que agem desta forma estão impondo o seu desejo e as suas fantasias às custas da vida dos outros.

Estas pessoas não estão em um estado de negação, mas podem estar se deixando levar, inconscientemente, pelo clima de alguns que estão. O que elas não vislumbram é que quando a pandemia passar, com boas chances de que sobrevivam, a culpa interior pode tornar-se a mais dolorosa das penas, que nenhum tribunal seria capaz de impor. Principalmente, caso percam alguém amado.

No luto, a negação quase sempre passa. Ele é elaborado em função do tempo e, também, de uma boa terapia. A vida segue.

Porém, quando a culpa envolve-se na história, o luto vira melancolia.

Notem: na vida conhecemos muitos perdoados e desculpados por erros graves, mas dificilmente encontramos um ex melancólico.

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Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, recomendo a leitura de dois textos de S. Freud: Introdução ao Narcisismo e Luto e melancolia.