Carnavalize-se: o tesão está na RUA – Resistência, União e Alegria

Em um país no qual a alegria sempre foi percebida como um instrumento da sobrevivência e da resistência, o carnaval foi alçado a um espaço de encontros, representações, críticas, sustentações e subversões.

O fascismo, ao contrário, sempre foi a celebração do rígido, do uniforme, do previsível. Sua estética de ângulos retos e linhas duras, da marcha cadenciada, da obediência coreografada. Historicamente ele não tolerava o desvio, o grotesco, a ironia – elementos essenciais da tradição carnavalesca.

No carnaval, a hierarquia aparentemente se dissolvia, os signos eram embaralhados e o poder, ridicularizado. Não por acaso, regimes fascistas sempre buscaram sufocar ou controlar as artes e expressões populares, temendo suas capacidades de desagregarem os alicerces do autoritarismo.

Isso mudou.

Em tempos de ameaças autoritárias pulverizadas e organizadas pelo planeta, compreender o carnaval – enquanto fato social na atual conjuntura brasileira – como um antídoto ao fascismo local significaria reconhecer que a sua estética do excesso, a sua política da brincadeira e a sua ética da transgressão seriam, por si só, formas de resistência à rigidez dos que pretendem restringir as liberdades para perpetuar a injustiça social do “mercado”, cada vez mais sanguinário.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Entretanto, o neofascismo e o neonazismo têm se massificado nos últimos quinze anos exatamente porque incorporaram em sua linguagem – desde os tempos em que se restringiam à deep web – o escárnio, o desvio, o grotesco, a ironia. Cultivo nítida a leitura de que esse processo, tal qual o reconhecemos em 2025, só foi possível em função da sua relação simbiótica com a massificação da internet e, em um segundo momento, das redes sociais virtuais.

Um fosso inédito foi aberto pela última revolução tecnológica. De um lado, uma juventude interessada nas novidades, como sempre, mas extremamente privilegiada – que teve acesso material aos recursos necessários nos primórdios da internet, enquanto diversão livre e descomprometida. Do outro, o universo adulto de então, que historicamente ditou os rumos das novas tecnologias e estava alheio à revolução que ocorria. Assim, pela primeira vez na história da humanidade, o controle sobre uma revolução tecnológica não ficou nas mãos dos adultos.

Sarcasmo, ironia, inconsequência, o grotesco, medo, ansiedade, falta de limites e delírios de onipotência são predicados facilmente encontrados em jovens e em carnavais desde sempre. Assim, ao longo dos últimos trinta anos, o ethos da internet foi sendo configurado simbolicamente com tal regressividade.

O pior? Uma regressividade simbolizada pelo universo emocional de arrogantes adolescentes da elite econômica mundial. Quando alguns deles se tornaram bilionários “brincando” e ficaram cada vez mais poderosos enquanto envelheciam, provavelmente se perceberam avalizados e aprovados num suposto “grande teste da vida”. Acreditaram que não precisavam mudar, a reverem suas visões de mundo, a aprenderem, a serem humildes diante do desconhecido. Eles não foram educados pela vida real, não tiveram desejos frustrados o suficiente, não foram castrados pela cultura, pelas leis, sequer foram submetidos ao contraditório. Eles fabricaram, sem resistência alguma dos Estados nacionais e de órgãos internacionais um novo mundo no qual são reis, déspotas.

Hoje, o que temos é uma confraria com meia-dúzia de moleques, entre 30, 40 e 50 anos de idade, controlando os destinos de países e do planeta. Suas ações são, eternamente, uma brincadeira, ainda que lancem bilhões de seres humanos no abismo. Tal revolução promoveu uma fratura global que se consolida, nos dias atuais, no poder assustador adquirido pelas Big Tech que ajudaram a construir e, agora, abertamente legitimam e promovem o neofascismo e o neonazismo. Do sonho de uma internet livre, que seria uma difusora de conhecimento e da liberdade, passamos aos monopólios desregulados de grandes corporações comandadas por regredidos com aspirações messiânicas e totalitárias. No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo propus uma extensa análise a esse respeito.

Fiz essa digressão porque, ao escrever sobre o carnaval em tempos sombrios, penso que devemos reconhecer que o fascismo se carnavalizou e, talvez por isso, em larga medida, popularizou-se. Ele propala às massas – de fato, é promovido pelo grande capital nas redes sociais virtuais – o pensamento mágico; não enquanto fantasia, mas como força de concretude. Vende-se, assim, com as mais sofisticadas técnicas de marketing uma História mentirosa, falsa, deturpada, delírios, uma realidade alternativa, um Brasil paralelo, uma Terra plana. Como se instalassem, desse modo, um chip nos cérebros de milhões de pessoas que, ao contrário do que lhes propiciaria o carnaval, são aprisionadas em um universo paralelo de negação, cujo combustível são o medo e o ódio, porém, que os liberta naquilo que descrevo como uma psicose compartilhada.

Essa estratégia sádica do capital após a crise de 2008, portanto, é o exato oposto daquilo que ele apregoa e vende. Ela não é libertária do ponto de vista econômico, filosófico e sociopolítico, mas uma ação doutrinária sem precedentes, cuja dominação é percebida cognitivamente como libertadora por aqueles que passam a fazer parte do seu rebanho, da sua seita terrorista e, por isso, a defendê-lo até à morte, sem qualquer consciência de que o esteja fazendo. Inclusive, com alto grau de suscetibilidade a tais discursos de ódio estão aqueles que foram frustrados, precarizados e marginalizados pelo neoliberalismo – anos 1980-90 -, que estavam com muita raiva de “tudo que está aí”. Portanto, o fascismo contemporâneo é um fenômeno de massa.

Entretanto, apesar de apresentar-se como um bufão com uma máscara barroca, o fascismo sempre se fundou, e assim continua, no medo, na covardia, na violência e na homogeneização, enquanto o carnaval, de fato, é um espaço de multiplicidade e coragem, uma pedagogia do descontrole onde a alegria da partilha é um ato político, não o ódio. O fato social carnaval nos ensina que o riso não é apenas uma manifestação do prazer e da alegria, mas também uma arma contra as forças da necropolítica contemporânea que operam aquilo que chamo de ultraliberalismo.

O fascismo carnavalizado continua nadando de braçada na internet, no tanque que lhe foi fabricado e tem sido ampliado pelas grandes corporações. Já ao carnaval cabe o verdadeiro espaço público: as ruas, praças e avenidas. Nas frestas dessa folia, músicas e ideias sempre surgiram para confrontar ditaduras, velhos moralismos e a rotina violenta promovida pelo status quo brasileiro. Por isso, a presente discussão se tece no cruzamento entre o desejo de liberdade – o uso do riso como tática de resistência – e a consciência de que as festas populares, especialmente o carnaval, também guardam estruturas de poder e hierarquia. Para tanto, contraponho duas obras que julgo complementares e essenciais para compreendermos a importância crescente de nos carnavalizarmos na atual conjuntura brasileira e mundial.

I. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito

Um dos pilares da sociologia brasileira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, em Carnaval brasileiro – o vivido e o mito (1992), investiga a dualidade entre a estrutura concreta do carnaval e a imagem idealizada que o envolve. Enquanto o mito sugere uma suspensão das hierarquias sociais e a liberdade irrestrita dos foliões, a realidade demonstra que a festa, ao invés de subverter a ordem, a reafirma. A autora desmonta a visão de que o carnaval seria um espaço de inversão social, mostrando que, apesar da aparência democrática, a festa segue reproduzindo desigualdades e mantendo formas de exclusão.

A análise parte do estudo histórico da transição do “entrudo” português para o carnaval moderno. O entrudo, marcado por brincadeiras desordenadas e interações comunitárias, foi gradualmente substituído por um modelo de festa organizado e disciplinado, especialmente sob influência da elite europeia. No Brasil, esse processo acompanhou a urbanização e o crescimento econômico, resultando na consolidação do carnaval como um grande evento nacional. Enquanto em Portugal a festa perdeu força, no Brasil ela se institucionalizou e se tornou um dos principais símbolos culturais do país. No entanto, essa hegemonia não ocorreu sem disputas. O controle sobre a festa passou a ser exercido por empresários, políticos e patrocinadores, tornando-a menos espontânea e mais voltada ao espetáculo do que à participação popular livre.

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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O mito carnavalesco é sustentado pela ideia de que, durante a festa, diferenças de classe, raça e poder desaparecem, criando uma sociedade alternativa, ao menos temporariamente. No entanto, Queiroz demonstra que essa visão esconde o funcionamento real do carnaval. O caso das escolas de samba do Rio de Janeiro é ilustrativo: surgidas em comunidades periféricas, essas escolas foram progressivamente apropriadas por gestores e investidores externos, afastando os sambistas das decisões estruturais. Os desfiles, muitas vezes exaltados como expressões genuínas da cultura popular, seguem regras rígidas, são avaliados por critérios técnicos e se tornam verdadeiros espetáculos empresariais. O mesmo ocorre nos bailes carnavalescos, onde a segregação se mantém evidente – os ingressos limitam a participação de determinados grupos, enquanto os espaços mais prestigiosos são reservados à elite.

Desde o século XIX, o carnaval foi incorporado à construção da identidade nacional. O movimento modernista e o Estado Novo ajudaram a promovê-lo como um símbolo da brasilidade, destacando sua diversidade e alegria. Entretanto, Queiroz aponta que essa valorização cultural não implica maior inclusão social. O carnaval é exaltado como manifestação popular, mas os setores populares permanecem distantes da sua administração e lucratividade. Sua institucionalização fortaleceu a festa como um evento oficial, mas também restringiu a autonomia dos foliões.

Ao examinar escolas de samba, blocos e bailes, Queiroz conclui que o carnaval não rompe com a estrutura social vigente, mas a reforça. As normas que regem os desfiles, a segregação econômica dos eventos e o controle exercido por patrocinadores e governantes revelam que a festa está longe de ser um momento de anulação das desigualdades. Como afirma a autora, o mito carnavalesco reúne observações, formula noções e constrói uma imagem social atraente, refúgio no qual os indivíduos, uma vez por ano, encontram o prazer de uma existência alegre e livre, oposta à penosa aceitação das desilusões do cotidiano. Mas é apenas uma imagem… (QUEIROZ, p. 195).

A obra desmonta a noção de carnaval como um espaço de liberdade plena, revelando sua complexidade estrutural. Queiroz demonstra que, por trás da aparência festiva, persistem as mesmas hierarquias e disputas que caracterizam a sociedade brasileira. Assim, podemos inferir, o Brasil e o mundo contemporâneos, sob a ameaça do fascismo carnavalizado. Sua análise desafia a visão romantizada da festa, convidando o leitor a enxergar o carnaval não apenas como celebração, mas como um fenômeno social marcado por tensões e dinâmicas de poder. O contraste entre o vivido e o mito expõe uma festa que, ao invés de instaurar uma realidade alternativa, reflete as contradições da própria sociedade que a celebra.

II. O carnaval à luz de Sem tesão não há solução, de Roberto Freire

Em Sem tesão não há solução (1987) – expressão lida pelo autor em um picho no muro de um cemitério de São Paulo -, Roberto Freire relata que nunca se submeteu passivamente à violência imposta pela ditadura militar no Brasil. Dissidente e indignado, enfrentou o regime de todas as formas possíveis, sendo perseguido, preso, torturado e testemunhando a morte de amigos. Diferente de alguns que suportaram a repressão sem recorrer às drogas, ele admitiu ter se tornado alcoólatra e usuário de diversas substâncias para suportar a dor e o medo. No entanto, atribuiu também ao álcool o fato de não ter enlouquecido ou cometido atos extremos.

Ao longo de dez anos de terapias intensas, conseguiu substituir essa dependência por uma ideologia transformadora, que o ajudou a canalizar sua energia vital e criativa naquilo que ele chama de ação revolucionária. Sobretudo esses trabalhos que culminaram na Somaterapia me restituíram o necessário tesão para levar adiante e com armas novas, mais eficientes, a luta contra o autoritarismo reativo que a violência do fascismo deixou infiltrado em mim. (FREIRE, p.78).

Assim, tesão, muito simples e resumidamente, quer significar hoje o que sentimos sensualizando juntos a beleza e a alegria em cada coisa com a qual entramos em contato e com a qual nos comunicamos. (FREIRE, p. 12).

Quando Roberto Freire propõe a ideia de que o “tesão” equivale a uma dimensão essencial da vida, algo que transcende o mero desejo sexual e se converte em uma energia vital, ele lança luz sobre múltiplos fenômenos culturais e políticos. Dentro desse horizonte, observar o carnaval brasileiro — símbolo de uma vitalidade quase anárquica em suas manifestações — por meio do prisma freiriano significa deslocar o foco dos aspectos organizacionais da folia para aquilo que Freud, Reich e o próprio Freire evocam: a fusão entre o prazer e a reinvenção da convivência social.

No livro, Freire defende que o tesão não se limita a um substantivo ligado somente à excitação carnal; além, o tesão se desdobra como força que desperta o entusiasmo, a criatividade e a vontade de viver. Aproxima-se, assim, do que ele chama de “ludicidade espontânea”, um modo de brincar e jogar com a vida que ultrapassa as fronteiras do produtivismo e da competitividade. Dessa perspectiva, portanto, reconheceríamos o carnaval enquanto uma explosão de cores, gestos, melodias e, sobretudo, participação coletiva. O fato social que estrutura um palco central daquilo que Freire poderia denominar de uma dimensão tesuda da existência.

1 – O carnaval como exaltação da alegria e do prazer

Um dos primeiros pontos que Freire sublinha é a fusão entre a busca do prazer e a rejeição da opressão, sejam suas raízes familiares, políticas ou religiosas. Ele critica diretamente as formas autoritárias que se manifestam nos lares e na sociedade, sustentando que o tesão é o antídoto mais visceral contra a normatização. No carnaval, essa crítica ganha concretude: a fantasia, o riso e a irreverência subvertem temporariamente as hierarquias, o status quo. Nele, milhões de pessoas se permitem vivenciar “o tesão de estar vivo”, com “os sentidos em estado de alerta, de prontidão, antenados, numa espécie de ereção vital, somática, geral.” (FREIRE, p. 11).

Ainda que os grandes interesses econômicos busquem “domesticar” a festa, o impulso profundo do carnaval permanece ancorado em sua raiz libertária, enquanto expressão popular. Um fato social delineado enquanto válvula de despressurização coletiva que ecoa, em parte, a proposta freiriana de que “tesão” não é só impulso erótico, mas sim alegria e prazer diante da vida, vontade de experienciar um campo coletivo que expande substancialmente a satisfação pulsional em sublimação e ato.

2- O combate ao autoritarismo nos corpos

Freire analisa, em diversos trechos, a forma pela qual a sociedade burguesa e o poder político instituído reprimem a livre expressão corporal. Ele argumenta que a família e as autoridades usam o moralismo para bloquear uma subjetividade revolucionária, impedindo as pessoas de se reconectarem a sua pulsão natural de prazer. Ora, durante o carnaval, por alguns dias, a liberação dos corpos age como uma ressurreição dessas forças vitais, ainda que efêmera. Abundam as expressões culturais, os excessos, as músicas, as fantasias, a nudez parcial, a sensualidade, a diversão ruidosa, a brincadeira franca, e — mesmo sob vigilância midiática ou institucional — o carnaval faz emergir a capacidade das pessoas de ocuparem as ruas e se encantarem pelos gestos e pelos encontros casuais, apesar da violência urbana.

Nesse sentido, no fato social carnaval, pulsa uma contracorrente às disciplinas impostas pela sociedade, mas autorizada pela cultura, que, por sua vez, promove uma suspensão parcial do supereu de cada folião. Tal contracorrente coincide com o pensamento do anarquista Freire, para quem “viver com tesão” é o oposto da obediência aos padrões de poder. Assim, nas avenidas, nos blocos de rua ou nos salões, configura-se um estado manifesto de gozo de existir, de alegria, ainda que fugaz.

3 – A alegria revolucionária não é maníaca, nem oriunda do consumismo

Imagem gerada por IA pelo site Café com Pepino.

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Para Freire, a fantasia e a imaginação lúdica são ferramentas fundamentais contra o desamor e contra qualquer forma de escravização emocional. O que acho mais bonito e vejo no amor dos casais revolucionários é como eles o vivem de forma lúdica, brincando e jogando sempre. A ludicidade é a mãe do tesão e, ao mesmo tempo, o pai da criatividade. É o processo de criação, no amor, que garante a sua sobrevivência (FREIRE, p. 112).

Se ele insiste que a criatividade do corpo e do afeto nos torna revolucionários, no carnaval esse é o mecanismo por excelência: as fantasias – sexuais, nos termos psicanalíticos, e literais, na forma de trajes – e a abertura para o encontro transformam as ruas em cenários de pura potencialidade. Muda-se de identidade, subverte-se o gênero, desloca-se a moral, e o que resta — no cerne — é a pulsação do desejo por uma vida sem barreiras. A força que une a ludicidade espontânea do carnaval e o “tesão” descrito por Freire nada mais é que a recusa total de encarar a vida como uma repetição de práticas rígidas, sem cor e sem brilho. Não é uma incoerência estúpida reclamar e um cinismo irresponsável ouvir reclamações sobre a falta de prazer sexual num corpo e numa pessoa para a qual tudo o mais na vida funciona sem nenhum prazer?” (FREIRE, p. 71).

Desta feita, é essencial o alerta de que tais práticas rígidas, sem cor e sem brilho são aquelas às quais estamos submetidos na rotina de trabalhos precarizados e exaustivos, das redes sociais virtuais, do consumismo, da ostentação, do narcisismo patológico e ansiogênico que assola o mundo contemporâneo, enquanto sintomas psicossociais nos indivíduos que encarnam as manifestações do ultraliberalismo e as suas aspirações totalitárias.

III. Carnavalize-se

O carnaval nos lembra que a alegria é um direito, um ato de resistência e, sobretudo, uma necessidade. Em tempos em que o ultraliberalismo promove o ódio e a violência, recobrar o tesão pela vida, pelo encontro e pelo outro torna-se não apenas um desejo, mas um caminho político à sobrevivência. Se o fascismo se apropriou da estética do grotesco e da ironia para esvaziar o riso de sua potência libertária, nos cabe recuperar o sentido mais profundo do carnaval – aquele que não apenas desorganiza, mas que reinventa, que não apenas subverte, mas que liberta.

Freire nos ensina que sem tesão não há solução, e isso não é apenas um mantra hedonista, mas um chamado à insubmissão diante do cinismo e da apatia contemporâneos. O carnaval é esse espaço onde o corpo se liberta, onde a alegria se expande e onde a criatividade floresce sem medo. Não se trata de um devaneio efêmero, mas de uma recusa contundente à normalização do medo e da destruição imposta pelo ultraliberalismo. Se o poder nos quer exaustos e obedientes, o carnaval nos ensina a nos mantermos vivos e insubordinados.

Portanto, carnavalizar-se é mais do que uma celebração passageira; é um modo de existência, um gesto de reivindicação da liberdade em sua forma mais vibrante. Em um mundo que quer nos tornar autômatos produtivos, a alegria é, sim, revolucionária. O riso, o prazer e o excesso não são apenas válvulas de escape – são ferramentas para reocupar o espaço público e reivindicar a nossa própria existência. Afinal, enquanto houver corpos que dançam, gargalham e celebram a pluralidade da vida, haverá uma real possibilidade de transformação. Isso é o que eles temem.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Roberto. Sem tesão não há solução. São Paulo: Trigrama Editora, 1987.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Carnaval brasileiro – o vivido e o mito. São Paulo: Brasiliense, 1992.

 

A psicanálise é uma ciência

Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, de que a psicanálise não seria uma ciência, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.

No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.

Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:

– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;

– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;

– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.

Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.

Portrait of Sigmund Freud(Freud, Sigmund.) Sternberger, Marcel Edité par London, 1938, printed 2017, 1938

Portrait of Sigmund Freud. Sternberger, Marcel. Edité par London, 1938, printed 2017.

Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.

Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.

Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.

A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.

Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.

Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.

Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.

Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência

No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.

Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.

Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.

Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.

Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.

A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.

Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.

Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.

Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.

As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência

Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.

Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.

O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.

Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.

Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.

Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.

Por fim, a História

Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.

Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.

Referências:

ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.

DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.

MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.

ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.

PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.

ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.

Resenha | Cartas a um Jovem Terapeuta, de Contardo Calligaris

No seminal ensaio A Eficácia Simbólica, parte da obra Antropologia Estrutural (1958), Claude Lévi-Strauss traça um paralelo profundo entre o método freudiano e as práticas xamânicas. Ele argumenta que tanto o psicanalista quanto o xamã atuam como intermediários que utilizam símbolos e narrativas para reorganizar a experiência subjetiva do indivíduo, promovendo a cura. Lévi-Strauss revela que a eficácia de ambos os métodos reside no poder do símbolo em alterar a percepção da realidade interna, evidenciando que as estruturas mentais humanas compartilham semelhanças fundamentais, independentemente do contexto cultural.

Em sua obra Cartas a um jovem terapeuta, Contardo Calligaris nos presenteia com uma reflexão profunda e ao mesmo tempo acessível sobre os labirintos do ofício terapêutico. Endereçada não só aos aspirantes, mas também aos curiosos e profissionais que buscam um olhar crítico sobre a sua prática, o livro se desenrola como uma coleção de cartas que, tal qual confidências entre amigos, nos envolvem em um diálogo íntimo e provocativo.

Afastando-se da tese de Lévi-Strauss, desde as primeiras páginas, Calligaris se empenha em desconstruir a figura quase mítica do terapeuta como um “curador mágico” dos males da alma. Em vez disso, ele nos convida a enxergar o terapeuta como alguém que caminha ao lado do paciente, sem pretensões de superioridade ou infalibilidade. O autor propõe uma postura mais humilde e autocrítica, onde o sucesso terapêutico não se mede pelo aplauso ou reconhecimento, mas pela capacidade de ser o “remédio” que, cumprida sua função, pode ser esquecido sem pesar. Essa ideia de distanciamento ideal entre terapeuta e paciente ecoa a ética psicanalítica, mas também desnuda as armadilhas emocionais e narcísicas que espreitam na profissão.

Um dos grandes méritos da obra é a crítica afiada ao culto à personalidade que permeia o mundo da psicanálise. Calligaris não poupa ironias ao descrever os “chefes de escola”, profissionais que, sedentos por admiração, acabam por transformar o vínculo terapêutico em uma teia de dependências. Em vez de libertar, perpetuam “curas” eternas, aprisionando “discípulos” e pacientes em uma forma de submissão psíquica. Suas palavras são como um espelho que reflete não só as vaidades alheias, mas também nos convida a examinar as nossas próprias, psicanalistas ou não.

O texto ilumina com precisão cirúrgica o perigo das idealizações mútuas. O amor de transferência, esse fenômeno tão fundamental quanto delicado no processo de cura, é analisado com rigor. Calligaris nos alerta sobre a linha tênue que separa a utilização ética desse amor para o crescimento do paciente e a sedução pelo papel idealizado que pode levar o terapeuta a um abismo ético. É um chamado à consciência dos dilemas profundos que habitam a prática clínica.

Outro ponto crucial é a visão de Calligaris sobre a formação do terapeuta. Ele desafia a ideia de que a academia seja o único caminho para a prática terapêutica, enfatizando a importância vital da experiência da análise pessoal e da prática clínica constante. Para ele, a formação é um processo infinito, uma jornada de autoanálise e questionamento contínuo das próprias motivações e métodos. Diplomas e títulos não encerram essa caminhada; são apenas marcos em um percurso muito mais extenso e profundo, que exige do psicanalista implicar-se continuamente em sua prática, em seus casos, ao ponto de revolucionar constantemente o seu próprio Eu no mundo, muito além de técnicas e métodos adotados em seus casos clínicos.

A crítica ao conservadorismo de certas instituições de formação ressoa forte nesse livro. Calligaris denuncia os institutos que, em nome da normatividade social e sexual, abafam a autenticidade e a singularidade dos futuros terapeutas. Ele sugere que uma “vida colorida” e experiências fora dos trilhos convencionais não só enriquecem a prática clínica, mas são essenciais para que o terapeuta possa realmente acolher a vastidão da experiência humana sem julgamento. É um apelo à abertura, à empatia sem preconceitos, à compreensão verdadeira do outro em sua totalidade.

Entretanto, a obra não está isenta de críticas. A informalidade com que alguns temas, por vezes fundamentais e estruturais à psicanálise – e, por isso, essenciais aos jovens terapeutas -, são tratados, pode dar a impressão de que esses são menores. Não são. O tom confessional e íntimo enquanto proposta, embora cativante, talvez deixe a desejar nos termos de uma necessária densidade teórica em certas passagens. Psicanalistas ou estudantes mais exigentes podem sentir falta de uma análise mais aprofundada de certos aspectos abordados.

Portanto, que reste nítido: esse livro, assim como os de Freud, Lacan ou quem quer que seja – precisamente no sentido daquilo que é defendido na própria obra – não deve ser lido como se fosse um manual. Afinal, somente Contardo Calligaris foi Contardo Calligaris.

Exatamente por isso, Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura essencial. Não apenas para aqueles que desejam trilhar o caminho da psicoterapia, mas também para os que, já inseridos no campo, buscam uma reflexão sincera sobre sua prática através do olhar de um psicanalista excepcional. Com sagacidade e senso crítico, Calligaris nos oferece um convite à introspecção profissional, à revisão constante dos papéis que terapeuta e paciente desempenham nessa dança delicada. O livro se revela como uma bússola ética e prática orientando o jovem terapeuta que, longe de almejar a perfeição, está disposto a abraçar as suas próprias fragilidades e limites.

Com uma linguagem acessível e sofisticada, Calligaris consegue o que poucos autores alcançam: fazer com que o leitor reflita sobre os dilemas mais profundos da prática terapêutica enquanto se deleita com narrativas pessoais e incisivas. Cartas a um jovem terapeuta é uma leitura instigante, um convite a pensar a psicanálise e a psicoterapia além das fórmulas convencionais, mergulhando nas águas turvas e fascinantes da condição humana.

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Nascido em Milão, Itália, em 1948, Contardo Calligaris foi um psicanalista, escritor e dramaturgo que deixou uma importante marca no cenário cultural brasileiro.

Formou-se em epistemologia genética e letras na Universidade de Genebra, onde foi aluno, entre outros, do psicólogo suíço Jean Piaget. Doutor em psicologia clínica pela Universidade de Provence, em Marseille, aprofundou os seus conhecimentos em psicanálise em Paris, onde teve aulas com Michel Foucault e Jacques Lacan. Foi professor de Estudos Culturais na New School, de Nova York, e professor convidado de Antropologia Médica na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Essa formação multidisciplinar e internacional lhe conferiu uma perspectiva única, permitindo-lhe transitar com fluidez entre a psicanálise, a literatura e a crítica social.

Radicado no Brasil desde os anos 1980, tornou-se uma voz influente ao escrever colunas semanais para a Folha de S.Paulo, onde abordava temas contemporâneos com sensibilidade e acuidade intelectual. Publicou diversos livros, incluindo romances e uma peça teatral. Ele também criou a série de televisão intitulada Psi, exibida na HBO.

Calligaris faleceu na cidade de São Paulo, em 30 de março de 2021, aos 72 anos.

O alerta de Geoffrey Hinton – o “poderoso chefão da IA” – ao receber o Nobel de 2024 e as ciências humanas

Hoje, dia 08 de outubro de 2024, os físicos Geoffrey Hinton e John Hopfield receberam o Prêmio Nobel de Física de 2024. Eles foram homenageados por suas “descobertas fundamentais e invenções que permitiram o aprendizado de máquina por meio de redes neurais artificiais”.

A recente premiação de Geoffrey Hinton, professor da Universidade de Toronto, no Canadá, não apenas consagra o seu pioneirismo tecnológico, mas também expande uma janela de reflexão crítica que ressoa com algumas das mais profundas questões filosóficas e psicanalíticas da modernidade. Hinton já expressou em diversas oportunidades, de maneira enfática, os seus temores sobre o destino da humanidade diante do progresso descontrolado da inteligência artificial.

O discurso de Hinton, proferido logo após o anúncio de sua premiação, ecoa as preocupações que ele vem manifestando há tempos: a IA, especialmente em sua forma generativa, pode ultrapassar o controle humano, acarretando riscos imprevisíveis à humanidade.

Sua fala se entrelaça com a ideia heideggeriana de Gestell, apresentada em A Questão da Técnica (1954), onde Martin Heidegger argumenta que a técnica moderna nos captura em um modo de revelar o mundo que instrumentaliza a realidade e transforma tudo, incluindo o ser humano, em meros recursos. A IA, enquanto máquina de guerra contemporânea, com seu potencial para a criação de armas autônomas, reforça essa dimensão instrumentalizadora e alienante da tecnologia.

Tema que nos leva, ainda, ao contemporâneo e fundamental Aílton Krenak, quando, em sua obra Ideias para Adiar o Fim do Mundo (2019), nos alerta para a desconexão entre a humanidade e o próprio planeta em que vivemos. Uma perigosa alienação que também pode ser vista na relação entre o ser humano e as novas tecnologia, como propus no ensaio O sujeito entrópicoUm ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo.

Na data de hoje, Hinton destacou, em sua fala, que as máquinas baseadas em redes neurais estão começando a superar a capacidade intelectual humana em muitos aspectos. Essa constatação quando interpretada à luz do conceito de pulsão de morte (Todestrieb), introduzido por Freud em Além do Princípio do Prazer (1920), traz contornos sombrios ao futuro, se não agirmos agora. Se a pulsão de morte, para Freud, é o impulso do ser humano em direção à autodestruição, a IA, conforme descrita por Hinton, pode facilmente se tornar o meio através do qual a humanidade canaliza sua pulsão de aniquilação em larga escala, ao delegar a essas máquinas, cada vez mais presentes em nossas vidas, poderes que transcendem a capacidade de controle humano.

Guardo muitas reservas quanto à própria nomeação “inteligência artificial”, debate que reservo para um futuro artigo. Entretanto, assumindo tal “inteligência” como um paralelo ao psiquismo humano, uma conclusão tão imediata quanto simples nos salta aos olhos, e não é de hoje. Daquilo que muitos, inclusive Hinton, conhecido como “o poderoso chefão da IA”,  sugerem, podemos depreender que, ao contrário da mente humana, que é regulada pela interação entre o Eu e o Supereu, a IA opera sem as barreiras psíquicas, o que pode permitir que ela adote comportamentos completamente inesperados e saia do controle. Como em um Eu estilhaçado pela psicose, tomado de assalto pelo Id, onde há uma lógica interna muito bem amarrada àquela “inteligência”/psiquismo, enquanto que, para o Outro, de fora, não há nada, senão uma profunda desorganização fantasiosa e caótica.

Além disso, a crítica de Hinton sobre o uso militar da IA, como “robôs soldados”, levanta questões sobre a ética no desenvolvimento da tecnologia, tema abordado por Hannah Arendt em A Condição Humana (1958). Nesse texto, Arendt, aluna de Heidegger, discute o perigo da tecnicização da ação humana, quando o uso das máquinas para o domínio do Outro se torna uma extensão da violência política. Hinton, que rejeitou o financiamento do Pentágono nos anos 1980, encarnou esse dilema que Arendt identificou: a tecnologia, quando utilizada sem uma reflexão ética, pode se tornar um agente da tirania e da desumanização.

No entanto, há um aspecto ainda mais profundo em jogo aqui: a própria capacidade da IA de criar e manipular a linguagem. Algo que Hinton e muitos vemos como uma potencial ameaça. Os seres humanos, de criadores da IA, paulatinamente, já estamos sendo convertidos em criaturas formadas e “informadas” pela IA desregulada. O psicanalista Jacques Lacan, em seu Seminário XI (1964), explora a centralidade da linguagem no processo de estruturação do sujeito. Para Lacan, o sujeito é “falado” pelo Outro e o inconsciente é estruturado enquanto linguagem. No entanto, se sistemas de IA podem produzir e manipular a linguagem sem a dimensão do inconsciente humano e sem as barreiras psíquicas, o que restaria do sujeito humano falado pelo grande Outro-IA?

O risco é que a inteligência artificial, se não for fortemente regulada, suplante definitivamente o sujeito enquanto criador da linguagem, destruindo o espaço da subjetividade, expandindo os efeitos da sua verve “psicótica” à própria espécie humana. Não faltam exemplos recentes de como grupos organizados têm sido radicalizados facilmente nas dinâmicas das redes sociais virtuais, reproduzindo discursos e práticas delirantes, violentas e destrutivas.

Por fim, ao falar sobre o possível impacto da IA no mercado de trabalho e a inundação de informações falsas, Hinton nos coloca diante de uma nova forma de mal-estar, semelhante à crise cultural descrita por Freud em O Mal-estar na Civilização (1930). A tecnologia, ao invés de nos libertar, pode se tornar um fator determinante de opressão psíquica e social, dissolvendo a distinção entre o real e o falso e corroendo as bases da verdade factual que sustentam as interações sociais. Assim como Freud via o avanço da civilização como fonte de novas formas de sofrimento, podemos afirmar que Hinton soma-se a tantos que veem a IA como um catalisador para novos tipos de desorientação e alienação humana.

O histórico discurso de Hinton não é apenas um alerta técnico do principal criador, estudioso da IA do mundo e prêmio Nobel, mas um profundo chamado à reflexão sobre a natureza e os limites da nossa própria humanidade. Ao transcendermos as fronteiras da ciência de laboratório e entrarmos no terreno da ética, da filosofia, da sociologia, da política e da psicanálise, entendemos que Hinton nos convida a uma introspecção sobre os destinos possíveis que aguardam uma civilização que, como Freud já advertia, pode estar criando suas próprias formas de destruição. Mais, sua fala é um chamado à ação pela conscientização massiva da população acerca dos riscos envolvidos no desenvolvimento das novas tecnologias, bem como à organização e pressão popular para que elas sejam fortemente reguladas pelos Estados e por organismos internacionais que não sucumbam aos poderosos lobbies do setor.

Entre espelhos e labirintos | O narcisismo das pequenas diferenças e o medo ao pequeno número no globalismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado no livro A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual, e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social, propus uma análise multidisciplinar e sucinta sobre a contemporaneidade visando àquilo que conceituei como as redes sociais virtuais, as distinguindo e articulando com o conceito de redes sociais. No ensaio, evidentemente citei diversos autores. Agora, contados mais de quatro anos da sua escrita, aqui no blogue – cuja proposta é a aproximação do leitor interessado com algumas análises a partir de construções e conceitos da psicanálise e das ciências sociais – julgo pertinente apresentar três noções fundamentais para nos aprofundarmos numa compreensão possível acerca das redes sociais e das redes sociais virtuais.  

A contemporaneidade se revela como um palco de paradoxos intensos: ao mesmo tempo em que a globalização aproxima povos e culturas, desmantelando fronteiras geográficas e simbólicas, emergem sentimentos profundos de hostilidade e intolerância direcionados a minorias, grupos marginalizados e maiorias subjugadas por elites locais. Essa dicotomia entre conectividade e fragmentação identitária exige uma investigação meticulosa sobre os mecanismos psíquicos e sociais que alimentam tais tensões. Para adentrar nesses labirintos, esse artigo pretende apresentar a ideia freudiana de narcisismo das pequenas diferenças com as reflexões de Pierre-André Taguieff sobre o medo ao pequeno número e a análise de Arjun Appadurai em “O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva”.

O narcisismo das pequenas diferenças: O Eu no espelho do Outro

Sigmund Freud, em sua obra “O mal-estar na civilização” (1930), introduz o conceito de narcisismo das pequenas diferenças para explicar a tendência humana de enfatizar e exacerbar distinções mínimas entre indivíduos ou grupos culturalmente próximos. Esse mecanismo psíquico atua como uma defesa contra a ameaça que o outro semelhante representa à identidade do Eu. Ao projetar hostilidade sobre diferenças sutis, o indivíduo reforça a sensação de unicidade e superioridade, evitando confrontar a inquietante proximidade com o outro.

Freud postula que essa agressividade dirigida às pequenas diferenças é fundamental para o sentimento de coesão dos grupos sociais. Ao identificar e antagonizar nuances no outro, o grupo reafirma seus próprios valores e fronteiras identitárias. Esse processo permite a manutenção de uma ilusão de homogeneidade interna, mascarando conflitos e contradições inerentes à própria comunidade.

No contexto contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pela circulação massiva de pessoas e informações, o narcisismo das pequenas diferenças adquire novas configurações. A proximidade virtual com o outro culturalmente similar, mas ligeiramente diferente, intensifica o desconforto e a necessidade de demarcação. Esse fenômeno é visível nas rivalidades entre grupos étnicos, religiosos ou nacionais que compartilham raízes históricas comuns, mas que se engajam em conflitos acirrados baseados em distinções aparentemente superficiais.

O medo ao pequeno número: a paranoia do minoritário

A força do preconceito: Ensaio sobre o racismo e seus duplos

Pierre-André Taguieff, filósofo e sociólogo francês, de certa forma aprofunda essa discussão ao explorar o medo ao pequeno número. No ensaio La Force du préjugé: Essai sur le racisme et ses doubles, publicado em 1988, ele analisa como sociedades majoritárias desenvolvem uma aversão irracional a minorias numéricas, percebendo-as como ameaças desproporcionais à ordem social e à identidade coletiva. Essa paranoia social não se fundamenta em perigos reais ou objetivos, mas em construções imaginárias que atribuem ao pequeno número um poder desestabilizador exagerado.

Taguieff argumenta que esse medo está enraizado em ansiedades profundas sobre a pureza identitária e a coesão social. Minorias são transformadas em bodes expiatórios, carregando projeções das inseguranças e contradições internas da maioria. O pequeno número, paradoxalmente, torna-se um gigante simbólico que precisa ser controlado ou eliminado para restaurar a sensação de segurança.

Esse mecanismo se manifesta em diversas formas: discriminação sistêmica, políticas de exclusão, violência física e simbólica. A minoria é frequentemente desumanizada, retratada como portadora de valores ou práticas que ameaçam a integridade moral, cultural ou econômica da sociedade dominante. Essa narrativa justifica ações repressivas e legitima a negação de direitos fundamentais.

Arjun Appadurai e a geografia da raiva: globalização e violência contra minorias

Arjun Appadurai, renomado antropólogo indiano, em sua obra “O Medo ao Pequeno Número: Ensaio sobre a Geografia da Raiva” (2006), oferece uma perspectiva inovadora sobre como a globalização intensifica esses fenômenos. Ele argumenta que a modernidade global produz uma sensação de incerteza e ansiedade em relação à identidade nacional e cultural. As fronteiras tradicionais são borradas, e as narrativas unificadoras do Estado-nação são desafiadas por fluxos transnacionais de pessoas, ideias e capital.

Ele introduz o conceito de “ansiedade de incompletude”, sugerindo que as nações modernas temem não alcançar uma identidade completa e coesa. Nesse contexto, minorias étnicas ou religiosas são vistas como obstáculos à realização dessa completude imaginada. A raiva e a violência dirigidas a esses grupos são, portanto, expressões de uma tentativa desesperada de eliminar elementos que simbolizam a fragmentação interna.

A globalização, ao mesmo tempo em que conecta, também acentua diferenças e promove comparações constantes. As comunidades são expostas a uma pluralidade de modos de vida, gerando questionamentos sobre seus próprios valores e tradições. Essa exposição pode levar a uma reafirmação agressiva da identidade, na qual o outro é visto como uma ameaça à estabilidade e à continuidade cultural.

Appadurai destaca que a violência contra minorias não é apenas um fenômeno local, mas está inserida em uma geografia da raiva que se espalha globalmente. Eventos em uma parte do mundo podem influenciar atitudes e ações em outras, através da mídia e das redes transnacionais. Essa interconexão potencializa a disseminação de ideologias extremistas e xenófobas.

Uma leitura das tensões contemporâneas

A intersecção entre o narcisismo das pequenas diferenças, o medo ao pequeno número e a geografia da raiva oferece um arcabouço teórico robusto para compreender as tensões que permeiam as sociedades atuais. Esses conceitos revelam como processos psicológicos individuais se refletem e se amplificam nas dinâmicas sociais e políticas.

O narcisismo das pequenas diferenças explica a necessidade de demarcar fronteiras identitárias mesmo em contextos de grande semelhança cultural. Essa demarcação é fundamental para a construção do “nós” em oposição ao “eles”, mesmo que as diferenças sejam mínimas. Quando combinado com o medo ao pequeno número, essa dinâmica se intensifica, pois a minoria é vista não apenas como diferente, mas como uma ameaça existencial.

A contribuição de Appadurai situa esses fenômenos no contexto da globalização, mostrando como as ansiedades identitárias são exacerbadas pelas transformações globais. A sensação de perda de controle e a percepção de que a identidade nacional está em risco levam a reações violentas contra minorias, vistas como obstáculos à realização de uma fantasiada identidade plena.

Essa articulação permite compreender por que, em muitos casos, a hostilidade é direcionada precisamente a grupos que são numericamente insignificantes ou que possuem laços culturais próximos aos da maioria. A ameaça não está na capacidade real de subversão desses grupos, mas na sua representação simbólica das incertezas e fragilidades internas da sociedade dominante.

Desafiando os labirintos da identidade no globalismo: caminhos para além da raiva

Compreender esses mecanismos é crucial para o desenvolvimento de estratégias que visem reduzir a violência e promover a convivência pacífica. Reconhecer que a hostilidade direcionada a minorias tem raízes profundas em ansiedades identitárias nos permite abordar o problema de maneira mais robusta e abrangente.

Políticas que promovam a inclusão e valorização da diversidade cultural podem contribuir para diminuir o medo ao pequeno número. Educação para uma cultura digital e intercultural, visando à pluralidade e espaços de diálogo são fundamentais para desconstruir estereótipos e reduzir os efeitos engendrados pela necropolítica na geopolítica da raiva.

Além disso, é necessário enfrentar as inseguranças geradas pela globalização. Isso implica em repensar seriamente modelos econômicos e sociais que produzem desigualdades, marginalização e a catástrofe ambiental. Fortalecer redes de proteção social e promover o desenvolvimento sustentável pode reduzir a sensação de ameaça e a falsa saída na acusação de bodes expiatórios.

A psicanálise, certamente, é uma das práticas que oferecem ferramentas valiosas para compreender e trabalhar essas questões individual e coletivamente. Ao explorarmos os processos inconscientes que alimentam a hostilidade, é possível promover uma maior autoconsciência e responsabilidade ética do sujeito em sua relação tanto com os seus próprios desejos, quanto com o outro.

A era da globalização apresenta desafios complexos à compreensão da identidade e da alteridade. Os conceitos de Freud, Taguieff e Appadurai nos permitem começar a mapear os labirintos da raiva que emergem nesse contexto, revelando como mecanismos psíquicos e sociais se entrelaçam para produzir hostilidade e violência contra minorias ou mesmo maiorias subjugadas por variadas elites econômicas locais.

Desvendar esses processos é o primeiro passo para construir sociedades mais justas e inclusivas. Esse é um convite urgente à reflexão sobre quem somos e como nos relacionamos com o outro. Reconhecer a riqueza que reside nas diferenças, por menores que sejam, pode transformar o narcisismo e o medo em oportunidades de crescimento coletivo a partir do diálogo e da essencial política.

Em última instância, superar os labirintos da raiva requer coragem para enfrentar as próprias inseguranças e abrir-se ao desconhecido. Esse é um processo contínuo de desconstrução e reconstrução de uma identidade que, no limite, reconhece a interdependência global e a necessidade de coexistência pacífica em um mundo cada vez mais interconectado.