Onde está Wally? | A juventude transviada e o poder da citação

“…e ambos vieram de boas famílias”.

Uma prática muito comum nos colegiais e cursinhos, ao menos, antigamente, era aquela de mandar bilhetinhos para que o professor lesse. Essencialmente, em voz alta. Por mais que, eventualmente, chegassem também cantadas e brincadeiras não lidas.

Os bilhetes eram, geralmente, referentes a alguma tola brincadeira ou piada adolescente, própria a um nexo muito particular daquele grupo, turma ou geração, mas que serviam como pontos de alívio na extenuante obrigação educacional, conforme chegava o momento de escolher o futuro aos que tinham a sorte de estar ali.

Não me lembro de ter enviado bilhete algum, sequer uma vez. Talvez, esse seja um arrependimento a elaborar futuramente. Entretanto, guardo comigo alguns que presenciei. Melhor, vivi, enquanto estudante.

Como quando, em um inverno, numa sala de cursinho com uns cem alunos, vi um querido professor abrir um dos tantos bilhetes que recebeu e gargalhar alto, numa sala silenciosa, enquanto fazíamos exercícios. Todos os chamamentos adolescentes à atenção haviam sido sumariamente silenciados por ele, até então. Devidamente, em prol do bom andamento da matéria e dos interesses de todos, no longo prazo, professor e alunos.

Porém, incontido, ao reagir espontaneamente àquele bilhetinho, ele disse no microfone, subvertendo sua proposição e intento: “esse eu preciso ler”. Naquele momento, mais ou menos 200 olhos fugiram das apostilas e o miraram em excitação. O que viria?

Então, ele continuou com a brevidade humorística dos grandes chistes: “Onde está Wally?”.

Quando todos se entreolharam, naquele emaranhado de moletons em moles e fáceis tons pastéis e escuros de adolescentes que pretendiam sumir na coletividade, rapidamente, os olhos saltaram para um colega que trajava uma bela blusa de lã, com largas listras na horizontal, vermelhas e brancas.

Havia ali, entre nós, alguém único, que, diferente, se destacava naquele dia e ninguém tinha notado, salvo o autor do bilhete. E o rapaz, de quem não me lembro o nome, cuja blusa era o objeto do riso, ria conosco, ciente de aquilo não era uma violência, mas um congraçamento.

Só faltava o gorro para que ele fosse o próprio Wally.

Imagine o professor, de frente, ao ler e ver aquele anfiteatro lotado. O autor foi genial e o momento, às vésperas do vestibular, sensacional. Todos rimos muito e nos aliviamos em meio aos exercícios. Cada qual com suas questões objetivas e existenciais.

Lembro-me, também, de um bilhete endereçado a outro querido professor que, no caso, faz-se necessário ressaltar, era, sabidamente por todos, gay. Ao ler o bilhete, ele fez questão de relê-lo em voz alta, parando a aula: “Onde termina essa seta?”.

Naquele dia, ele tinha ido com uma camiseta da Dolce & Gabanna estampada que, nas costas, tinha somente o desenho de uma grande seta, apontada para baixo. Frequentemente, ele respondia às provocações homofóbicas citando suas roupas e perfumes, com bom humor. Depois de um tempo compreendi que tais respostas eram suas únicas defesas, diante das tantas violências que certamente sofreu. Sobretudo, em escolas da elite econômica do interior de São Paulo.

Sua ação imediata foi simples e eficaz. Como todos os professores com um pouco de experiência já intuíram a essa altura, ele dobrou o bilhete, devolveu ao aluno na primeira fileira que lhe entregou originalmente e disse: “volta para quem te passou”.

Então, em um silêncio sepulcral, o auditório acompanhou lentamente o retorno do bilhete ao autor, sentado lá em cima, no fundão, na diagonal oposta do anfiteatro. Outrora um bravo, popular, carismático e corajoso, desmascarado em sua covardia violenta, sua cara foi ao chão e, ainda que com certa distância, pude notar suas bochechas rosas tremerem levemente.

A voz do professor ecoou nas caixas do anfiteatro: “Em primeiro lugar, essa é uma camisa Dolce & Gabanna de muito bom gosto, coisa que o senhor e, provavelmente, a sua família, não têm. E não deve ser por falta de dinheiro. Em segundo lugar, e o senhor um dia vai descobrir, cada um goza por onde sente tesão, e isso não é da conta de ninguém. Mas o senhor, provavelmente virgem, ainda não descobriu isso”.

A sala veio abaixo. Ao menos que eu me lembre, essa foi uma das ocasiões em que mais ri em minha vida. Todos nós. Risos enquanto respostas. Cada qual com as suas. Nesse dia não houve um congraçamento total, porque somente uma pessoa não deu risada: o autor do bilhete. Até hoje me pergunto se ele aprendeu a lição.

Mais de um quarto de século depois, pautando o universo das redes sociais virtuais, enchendo o saco com suas insignificâncias adolescentes no real e necessário debate público de adultos, desestabilizando, manipulando, derrubando, elegendo governos mundo afora e, consequentemente, piorando a vida de todo mundo, estão os piores “meninos do fundão”. Geralmente, os que menos estudaram e que faziam as brincadeiras mais sem graça pra chamar a atenção de todos. Atraindo cliques com postagens estridentes, cheias de manipulações, com gritos fraudulentos, apelativos, sem fontes ou, ainda, em um anonimato covarde.

Porém, agora, muito além do humor que ri dos reais opressores, daquele de congraçamento, ou mesmo daquele reacionário, dito “politicamente incorreto”, a juventude transviada contemporânea, guiada por velhacos, defende os opressores, dissemina distorções, negacionismos, mentiras e perpetra crimes diariamente, servindo ao velho fascismo que quer achar o Wally para matá-lo com as setas que usam como lanças.

Você, jovem ou velho, quando se deparar com algum texto ou vídeo que soe uma informação, algo que você não sabia, ainda que elementar, travestida de opinião ou de pergunta, busque o autor da citação, a fonte fidedigna daquele texto, daquela ideia ou raciocínio apresentado. De onde veio aquilo, de fato, e qual é a intenção do autor real, que, na imensa maioria das vezes não é a mesma daquele que compartilhou com você. Ainda, quem orientou aquela disseminação artificialmente? Por quê?

Por sua vez, quando você se deparar com um desinformado por ocasião ou um neofascista assumido que saiba, minimamente, dialogar, aprofunde a conversa, o argumento. Peça para ele citar suas fontes, elaborar o seu raciocínio. Coloque a prova na mesa. Mande, educadamente, ele voltar o bilhete e acompanhe até onde ele vai.

Com muita sorte ele chegará até o fundão da internet, todavia, o conteúdo não passará da página dois. Ao menos aos que se importam não só consigo, mas com o restante da turma, com os professores e todos os funcionários do colégio.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais | O neofascismo brasileiro

O cenário

No último domingo, 8 de janeiro de 2023, uma semana após o mais emblemático rito de posse de um presidente da república na vida nacional, alguns milhares de terroristas invadiram o coração da República Federativa do Brasil, situado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Destruíram um patrimônio público de valor inestimável, obras de arte e mobílias históricas sem preço, porque únicas ou doadas por chefes de Estado desde o século XVII. Arrebentaram vidraças, portas, monitores, chão, tetos e paredes. Roubaram bens, HDs, documentos secretos.

Vilipendiaram o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto numa ação orquestrada pelo ex-governo fascista brasileiro, findado, então, há oito dias. Desde o fim do ano passado, quando ainda usufruía do seu passaporte diplomático, o ex-presidente encontra-se refugiado na Flórida, Estados Unidos. Noticiaram que ele estaria pensando em retornar ao Brasil para evitar o vexame da extradição. A Itália, ao menor sinal do neofascista brasileiro, já se mobilizou para evitar recebê-lo.

Seguem alguns adendos às possíveis análises sobre os últimos eventos promovidos pela extrema direita brasileira, emulando ações de uma extrema direita internacional, reavivada como não víamos desde a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

As condições históricas – O público e o privado

Em face do intento fracassado, de ruptura de um regime democrático recém restaurado em sua aparente plenitude, só podemos nos fiar por aquilo que nos precede.

Poderíamos facilmente visualizar – portanto, reconhecer – aqueles fascistas, despidos no último domingo, destruindo qualquer patrimônio público país afora, desde sempre, dada a nossa história colonial. De um banco de praça a um extinto orelhão, de uma vaso chinês a um quadro do Di Cavalcanti, como foi feito há três dias. Mais, em sua pulsão destrutiva, aquela horda poderia ser representada por um canalha qualquer que administra um condomínio de apartamentos como se fosse o seu castelo particular, a despeito das assembleias de moradores, ou por um capitão das Forças Armadas, ou da PM do Distrito Federal, que age sob o uniforme conforme a sua ideologia contrária ao sentido das suas atribuições e obrigações enquanto servidor público.

Todavia, dificilmente poderíamos imaginá-los destruindo o próprio apartamento, queimando o próprio carro, arrebentando uma agência do Itaú, um prédio do Starbucks, do McDonald’s ou defecando no salão da Ibovespa, enquanto comparsas quebram monitores e roubam iPhones deixados nas fartas gavetas da Faria Lima.

Tais projeções são possíveis somente porque todos somos embebidos em uma cultura historicamente patrimonialista e, ao mesmo tempo, quase todos somos destituídos de qualquer patrimônio material vultoso. Exceção feita a pouquíssimos, muitos dos quais – herdeiros numa história de exploração, escravidão, desigualdades, opressões e repressões – são os mais interessados em dinamitar quaisquer laços e relações orientados pela noção de coisa pública.

Desafortunadamente para esses poucos, hoje todos somos plenos de direitos, ao menos no papel, e podemos reivindicar livremente traços da nossa identidade. Somos, também, todos donos de um patrimônio público, material e imaterial. Somos todos filhos e agentes de uma cultura histórica e nacional, composta por um mosaico de inúmeras culturas e patrimônios regionais no tempo e no espaço brasileiro. Entre disputas e consensos, nos reconhecemos, por fim, por uma bandeira, por uma língua e por alguns sentimentos e ritos partilhados por muitos de nós. Convivemos, dessa forma, em uma democracia, através das instituições – sempre em disputa política – mas legalmente amparados e regidos por um Estado Democrático de Direito, fundado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após décadas de uma sanguinária ditadura civil-empresarial-militar instalada pelos Estados Unidos em nosso território.

Acontece que, desde as Manifestações de 2013 que resultaram no golpe empresarial-parlamentar de 2016, vivemos em mais um estado de anomia que reflete a disputa geopolítica do nosso tempo. Nele, soergueram forças do submundo institucional nutridas pelos traumas nacionais jamais elaborados – como a anistia aos torturadores e a todos os que cometeram crimes de Estado há poucas décadas – e por velhos e conhecidos interesses do exterior. Como se, subvertendo a máxima marxista, houvesse a possibilidade de repetir não a tragédia, mas a própria farsa botada em marcha na América Latina durante os anos 1960, 1970 e 1980, que promoveu a interdição de governos eleitos democraticamente com golpes militares que violentaram suas soberanias, prenderam, torturaram e assassinaram mais de 50 mil cidadãos sul-americanos. Estima-se que os corpos de mais de 30 mil pessoas estão desaparecidos até hoje.

A gênese do neofascismo brasileiro

Da farsa da farsa renasceu a extrema direita no Brasil no século XXI, seguindo uma tendência mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008. Ano inicial daquele que viraria um fenômeno de massas nas democracias ocidentais, formado por milhões de pessoas mobilizadas pelas forças mais destrutivas que existem dentro de cada uma delas. Forças canalizadas e direcionadas contra a cultura, a sociedade, a civilização.

O que vimos no último domingo foi a expressão explícita do ódio. Todavia, reestruturado por uma nova linguagem da experiência subjetiva e afetiva daqueles que pretendiam provocar uma ruptura na unidade nacional com uma guerra civil, ainda que muitos nem tivessem essa instrumentalizada consciência. Presenciamos, infelizmente de maneira esperada, uma ação terrorista visando a, mais um, golpe de Estado. O modus operandi, emulado da extrema direita dos Estados Unidos, só atestou de onde vieram as ordens e as diretrizes: da matriz trumpista.

Do país onde a organização social orienta-se por uma cultura concentrada daquilo que Max Weber teorizou, em 1905, como uma simbiose entre a ética protestante e o capitalismo. Distintamente do contexto de vida do intelectual alemão, na configuração contemporânea, o capitalismo é muito mais voraz, globalizado e a sociedade estadunidense não sustenta a herança da social-democracia construída no período do pós-guerra na Europa ocidental. Algo que enraizou e dimensionou a esfera pública tão valorizada, até hoje, no continente.

Por isso, os atos terroristas em Brasília foram repudiados até por ícones ascendentes da extrema direita do outro lado do Atlântico. Porque aquilo que os neofascistas brasileiros odeiam e atacam é tudo – absolutamente tudo – o que é público, de todos nós, brasileiros. Isso é um contrassenso a um neofascista ou a um ultranacionalista europeu, que, em sua nefasta ideologia, direciona grande parte do seu ódio aos imigrantes – inclusive aos brasileiros.

Aqui, os neofascistas (incorporados neonazistas e integralistas) foram arregimentados por uma composição política Frankenstein, que elegeu o último governo federal num processo eleitoral sob intervenção objetiva dos Estados Unidos. Tal composição continha setores da mídia, dos militares, milicianos, fisiologistas, evangélicos fundamentalistas e ultraliberais. Expoentes máximos, cada qual em seu campo, do velho patrimonialismo e da sua defesa. Esse grupo que chegou ao centro do poder federal valendo-se de táticas novas, até então, de massivas mentiras espalhadas pelas redes sociais virtuais, assumiu para si somente uma missão: deter um projeto nacional popular de longo prazo e reverter todas as conquistas dos governos anteriores.

Não foi difícil, dado o nosso histórico violento e colonial, canalizar o ódio dos seus eleitores precisamente ao solo da coletividade e do pluralismo que constitui um país. Chão cada vez mais exíguo aos pés no mundo ultraliberal, terreno árido ao caminhar da justiça e das disputas políticas, dos corpos e das mentes, dos desejos e gestos de todos. Espaço público de solavancos e comunhão, onde se pode falar, mas onde também se faz necessário ouvir e respeitar todas as manifestações plurais e divergentes que compõem uma determinada sociedade.

Contrariamente são os espaços privados. Sejam aqueles herdados desde a época das capitanias hereditárias, sejam aqueles, ainda hoje, públicos e almejados num vir-a-ser particular. Porque os espaços que excluem são aqueles onde as dinâmicas sociopolíticas respondem e, na maior parte do tempo, submetem-se aos desejos de um ou poucos donos, atuais e futuros. Foi a partir desse terreno fertilizado sinteticamente – alavancado e associado, num primeiro momento, aos discursos de um liberalismo raso como um pires – que brotou novamente o fascismo brasileiro. Agora, ainda mais subserviente e inconsciente da sua função nos novos tempos, configurando todo um campo ideológico de indivíduos disciplinados para devorarem uns aos outros com um sorriso no rosto.

A fabricação do neofascista

Num novo universo tecnológico, completamente alienado das dinâmicas que o enredam, o “patriota” foi programado por esse campo que lhe ofereceu não só o pertencimento, mas o ethos que lhe autorizou – finalmente – o gozo através do pathos do ódio. Por isso, o logos não foi necessário e, para quem olha de fora, não há lógica alguma em suas tentativas de elaborar argumentos. Porque ele foi condicionado numa crescente repetição esvaziada, mais e mais, o levando ao limite das palavras, das imagens, dos discursos, da comunicação e das “ideias” dele. De tal forma saturado, o “patriota” foi movido pela recompensa ofertada ao desejo de reconhecimento, esgarçando os próprios sentidos até a implodi-los no prazeroso vazio da própria consciência, libertando, por força bruta, o reprimido.

Nesse ponto, quando se sentiu “livre”, as estratégias e os métodos de repetição esvaziada da nova extrema direita internacional já haviam lhe ofertado a palha que reestruturou simbolicamente o seu reprimido de forma rudimentar e instrumental. Simplesmente lhe dando uma mínima sustentação simbólica que propiciou a vazão de aspirações psicóticas em ações de violência concreta, na destruição dos objetos apontados. Como numa autofagia purificadora, para os seus membros provarem quem é o mais obediente cão de guarda do poderoso e ínfimo universo onde desfilam os que lucram na combalida economia mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008.

Por isso, Samuel Johnson, um conservador anglicano e monarquista atestou, com conhecimento de causa, no século XVIII: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. Sob o manto do nacionalismo, àqueles que o encampam com um vigor que aumenta conforme o número de câmeras ao redor, “por Deus e pela pátria”, mascara-se toda sorte de perversões que precisam ser satisfeitas e escondidas do restante da sociedade, nos termos do falso moralismo. Alguns exemplos são a decretação de sigilos centenários sobre documentos de interesse público, a não dissociação entre o bem público e o privado, a destruição da esfera pública, a privatização de setores estratégicos nacionais, a instauração do autoritarismo, a antipolítica (anauê, Sérgio Moro) e tantas outras modalidades que revelam a prevalência do gozo sádico, como a homenagem a milicianos, assassinos e torturadores.

Disse um ex-presidente neofascista brasileiro, ao vivo para o país, através da Rede Globo, em uma nada sutil cumplicidade atuante no golpe de 2016: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Ustra, por “pedaladas fiscais”… . Ele se tornou presidente depois, e, como sabemos, de forma trágica não sofreu impeachment.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais

O prazer na dor do outro é o ponto de encontro entre a Brasília destruída no último domingo e “o” mercado.

Entretanto, aos fascistas de hoje só cabe o papel de massa de manobra, de farsa da farsa. Eles só servem para “o” mercado tentar botar a faca no pescoço de um possível governo minimamente popular, mas não matá-lo. Como uma chantagem a um governo que pode restaurar uma linha democrática e inclusiva, que foi sufocada na trama geopolítica através do discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais, construído desde 2013 e eleito em 2018, no soar do apito do Juiz de Fora.

Na revolução da extrema direita do século XXI, os dispositivos contemporâneos e as novas tecnologias na sociedade da informação são fundamentais ao método da ruptura sociopolítica através da linguagem. Essencialmente, a partir de táticas e estratégias incubadas por anos na deep web, e que, botadas em marcha na última década, como numa revolução francesa às avessas, inverteram o sentido da comunicação pela implosão de significados amplamente consensuais na vida pública. Esse método visa à ressignificação de significantes estruturantes das ideias de nação, cultura e patrimônio público imaterial. Isso libertou, do ponto de vista da teoria freudiana das pulsões, os que se percebiam medíocres, incapazes e impotentes em sua cultura e ainda foram dragados pela devastação econômica pós 2008.

No contexto brasileiro, que adotou uma política econômica anticíclica de maneira bem sucedida para proteger sua economia naquele período, a crise precisou ser fabricada a partir de 2013, com uma desestabilização vinda de fora. Afinal, nenhum império deseja um postulante aos holofotes em seu “quintal”.

Em todos os regimes de inspiração fascista, ao longo da história recente, os ditadores precisaram forjar um sentido de emancipação e libertação ao seu secto – cujo ápice, aqui no Brasil, vimos no último domingo – enquanto aumentam seus patrimônios. Seja vendendo ou se apropriando da esfera coletiva, avançando suas posses, ainda mais, sobre o patrimônio público material. Sobre aquilo que na realidade física e comum ainda prepondera sobre as especulações e lastreia a economia global.

Porém, nessa falsa revolução francesa, onde quase tudo é uma fraude – exceção feita à vazão da pulsão de morte – o seu sentido social e político sempre foi o de um aprisionamento e não o de uma emancipação. Começando pelas intenções dos seus artífices e terminando com os girondinos, capatazes da velha oligarquia, gozando com uma mudança de regime que não veio e não virá, para depois serem presos.

Porque o que almejam é a libertação pela psicose, pela quebra de qualquer sentido de realidade comum, pelo misticismo que encontraria o seu destino final numa farsa da farsa de uma nova Idade Média. Só eles não sabem que isso não interessa aos seus tiranos, seja na Faria Lima ou em Wall Street.

No final das contas, são os tiranos a quem servem, e não eles, que controlam, não só as suas coleiras, mas as guilhotinas no regime do terror contemporâneo.

O outro, o inferno palaciano, o canalha e o drama brasileiro

O outro

O outro, essa pessoa, categoria analítica ou entidade fenomenológica, está sempre por aí. Na verdade, por aí, por aqui, por ali. Eu sou o seu outro, aqui. Você, caro leitor, é o meu outro neste momento em que escrevo.

Porém, convenhamos, o mundo é muito grande para que tenhamos somente um ao outro. Cada um de nós tem muitos outros outros.

Sim, porque o outro está presente mesmo quando estamos sozinhos. Ele é um inquilino permanente que nos habita. Nesta relação nada mercantil o pagamento vem em diversas moedas. Por vezes ele nos persegue, censura, entristece, fustiga, noutras ele nos acolhe, alegra, acalma, liberta, inspira. Dependendo do outro, recebemos um pouco de cada, em proporções variáveis.

O fato é que o outro sempre nos estimula. Quando este estímulo não vem do outro no mundo exterior, vem do outro no mundo interior.

Do ponto de vista das ciências sociais o outro é a instância fundamental de constituição do sujeito, porque somente a partir do outro ele pode se reconhecer por diferenciação, erigindo a sua subjetividade.

Para a psicanálise freudiana, na vida adulta o outro é mais um dos múltiplos objetos do mundo exterior no qual investimos nossa libido. Porém, antes, ele nos constitui desde o primeiro momento, nas relações parentais. Destino inalcançável das nossas fantasias, mas também das identificações, o outro é a última instância da realização e da interdição dos nossos desejos.

Por isso, buscamos a repetição de beijos e abraços dados e não escapamos às fantasias com aqueles nunca dados.

Há, também, o outro dentro de nós com quem repetimos discussões e ensaiamos arrependimentos pelo dito e pelo não dito.

Ah, se arrependimento matasse, diria o outro. Não mata, não. Nos constitui.

Mas há, aqui, duas importantes distinções: sentir arrependimento é diferente de sentir culpa. Esta última, por sua vez, difere-se também de responsabilidade. Voltaremos a estas diferenças mais a frente.

 

O inferno palaciano

Napoléon Ier à Fontainebleau le 31 mars 1814. Óleo sobre tela, 138 x 180 cm. Paul Delaroche,1840.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre não foi escrita em nenhum dos seus tantos livros, ensaios ou em uma entrevista. Ela veio a público no Théâtre du Vieux-Colombier, em maio de 1944, na première da peça Huis Clos (De portas fechadas), pela boca de Garcin, personagem criada pelo filósofo francês.

A trama, em ato único, desenrola-se a partir de três desconhecidos entre si, Inès, Estelle, Garcin, e O Garçom (ou O Criado na tradução brasileira). Este último, representante do Diabo, faz as vias de apresentar às demais personagens a sua nova morada eterna: o inferno.

Diferentemente daquilo que imaginamos, o cenário assemelha-se pouco ao inferno bíblico, exceções feitas ao calor escaldante e à iluminação total do ambiente. Não há torturadores, grelhas, estacas, castigos físicos. Antes, é um salão imperial, ao estilo do regime bonapartista, com móveis, uma lareira e uma estátua de bronze. Não há janelas, espelhos, nem nada que seja frágil.

A força e a solidez napoleônica são invocadas no cenário, na atemporalidade da eternidade onde não se dorme, nem se pisca, mas também no enfrentamento do qual não se escapa, dos erros cometidos, da má-fé que não pode mais ser mascarada, mas que deve ser paga.

Ali, sem espelhos, cada qual só pode ver a si mesmo no reflexo no olho do outro. Onde, para além do reflexo, encontra o julgamento deste outro, o carrasco que reflete a sua própria consciência da má-fé, a sua culpa.

As traduções do título da peça, em português, Entre quatro paredes, e em inglês, No exit, complementam o amplo sentido da reflexão de Sartre.

Há uma clausura intransponível na existência, jamais saímos de nós mesmos. Se somos vocacionados para a liberdade, ela não vem sem escolhas e à revelia do olhar dos outros.

A liberdade, para Sartre, certamente inspirado por Freud, é um constante vir-a-ser que só pode ser experimentado pela autorresponsabilização perante os nossos desejos, pela atitude de assumirmos as ações tomadas e as escolhas feitas que, sempre, envolvem o outro.

Caso contrário, quando nos desresponsabilizamos na busca pela satisfação dos nossos desejos, padecemos no inferno, fadados a nos reconhecermos eternamente e somente no olhar do outro. Nos enxergando no carrasco que nos julga, tortura e do qual não conseguimos escapar. No carrasco que nos descobre, desvenda, desnuda e revela aquilo que sempre escondemos: a nossa covardia diante da liberdade.

Esse olhar infernal do outro somos nós mesmos, quando somos obrigados a reencontrar, como culpa, a responsabilidade da qual acreditávamos estar desviando, deliberadamente, por má-fé.

Neste sentido, esta peça, encenada pela primeira vez quando a II Guerra Mundial caminhava para o seu desfecho, é uma alegoria que marca o início da transição pela qual passaria o próprio filósofo que já havia escrito o colossal O ser e o nada, considerada por muitos a sua obra máxima.

A partir dali, paulatinamente, para Sartre o conceito de liberdade expandiria de um imperativo ontológico para um destino do ser social e político.

Sua atuação política transbordou da sua filosofia, das linhas herméticas do existencialismo para as ruas de Paris, e o transformou em uma das referências da geração que marcou a história francesa e ocidental com as manifestações de maio de 1968.

 

O canalha

Samuel Johnson, um intelectual britânico do século XVIII disse que o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Sendo um conservador monarquista e anglicano devoto, devemos supor que ele sabia bem do que estava falando.

Obviamente, ele não se dirigiu aos patriotas, mas aos canalhas. Não são todos os patriotas que são canalhas. Mas o último reduto possível a um canalha, para Johnson, é o patriotismo ou o nacionalismo.

É com esta macroidentidade última que pode transitar aquele cuja canalhice já foi desmascarada em todos os outros enredos e esferas da vida social. Poderíamos, também, expandir a noção de patriotismo para a de moralismo.

O canalha, enquanto sujeito vil e grosseiro é um narcisista contumaz porque sabe que é insignificante para a maioria das pessoas. Assim, só lhe cabe destinar grande parte do seu amor a si próprio.

Não há problema no narcisismo, uma vez que todos necessitamos dele como um recurso permanente de sobrevivência. Tampouco, nada decorre de grave em excedermos eventualmente no nosso narcisismo.

Capa da 1ª edição de O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1943.

Ainda, mesmo alguém excessivamente narcisista na busca pela satisfação dos seus desejos pode não ser um canalha, uma vez que estas são dinâmicas psíquicas predominantemente inconscientes.

O que define um canalha é que além de ser excessivamente narcisista ele tem consciência e age de má-fé. Prejudicar o outro, para ele, é uma escolha. Mais, uma escolha trivial e recorrente.

Ao canalha há um certo espaço social, onde ele sempre encontrará amantes e cúmplices conscientes ou inconscientes das suas canalhices, contudo, ele não hesitará em prejudicar estas mesmas pessoas para satisfazer os seus desejos e empreender as suas fantasias.

O que geralmente decorre das suas canalhices é que ele não vai longe nas múltiplas realidades sociais, uma vez que poucas serão as redes sociais parciais que o aturarão por muito tempo.

Alguns poderiam apontar nestas características os traços da psicopatia, o que seria correto, não fosse o fato de que o psicopata domina plenamente, no mais das vezes com elegância, o trânsito das normas.

Ao psicopata, o exercício da empatia tende a ter uma baixa modulação, fazendo com que ele precise se apegar, dominar e transitar com extrema perícia pela normatividade para satisfazer os seus desejos. (Um adendo necessário: aqui não tratamos do serial killer estereotipado dos filmes. Algo que, inclusive, faz muito mal à compreensão coletiva da psicopatia).

Já ao canalha o que não costuma faltar é empatia, paixão. Ele é regredido como uma criança que busca o perdão da mãe, no pior sentido possível, porque ele tem a força e as armas de um adulto.

Ele pode até circular com certa perícia nas relações, mas sempre, invariavelmente, cairá em suas próprias tramas. Porque lhe falta uma dose de compreensão sobre os próprios afetos e uma certa inteligência social, uma vez que é tomado pelas suas fantasias e delírios de grandeza.

Assim, o canalha aproxima-se mais do psicótico, do paranoico, porque orienta o mundo ao seu redor a partir da sua culpa, do seu inferno particular.

Portanto, ao contrário do que o senso comum tende a acreditar, as esferas pública, midiática e de políticas institucionais não são um ambiente propício ao canalha. Estes não são espaços que favorecem a sua camuflagem, por serem posições de muita exposição e escrutínio público onde é necessária a interlocução permanente com muitos outros.

Ao menos era assim, quando compartilhava-se socialmente a noção de que canalhas não merecem ser os depositários de desejos, esperanças e anseios coletivos.

 

O drama brasileiro

Voltamos às distinções entre o responsável, o arrependido e o culpado.

Enquanto o responsável, movido pelos seus desejos inconscientes, orienta-se pela boa-fé e pela ética, o arrependido é o responsável que fez uma escolha de boa-fé, mas percebeu que foi a escolha errada.

Já o culpado é aquele que agiu deliberadamente, conscientemente, de má-fé. Quando ele atua reencenando a sua culpa cotidianamente em prejuízo dos outros, o chamamos de canalha. No entanto, se este prejuízo, dano ou dor causada no outro for a própria meta dos seus desejos, o chamamos de sádico.

Como falta capacidade e coragem de se responsabilizar e, nos termos de Sartre, se comprometer com a sua própria liberdade, ao canalha encerrado em seu palácio bonapartista só restam duas saídas falsas para tentar fugir do seu inferno particular: acreditar que é Napoleão Bonaparte ou exterminar o olhar do outro.

A saída napoleônica ocorre após o estágio da paranoia, quando esta ergue uma defesa mitomaníaca que, não raramente, envolve espadas, armas de grosso calibre e cavalos. Assim, batendo bumbo, o canalha tenta diluir o seu inferno particular no mundo exterior, para compensar a sua pequenez. Desta forma, ele consegue um alívio pessoal ao angariar provisoriamente seguidores que se identificam com ele, mas que logo se devorarão uns aos outros neste inferno expandido.

A outra falsa saída do seu inferno particular é, simplesmente, tentar aniquilar o mundo exterior, inclusos os adeptos que não o seguirem cegamente em uma identificação total. Isso se faz, como apontou Johnson, travestido de nacionalista, último espaço social e simbólico possível para tentar camuflar a sua canalhice, enquanto tenta silenciar e exterminar o olhar do outro. Porque ali, no outro, o canalha vê refletida a sua culpa, a sua má-fé, os seus erros e a sua insignificância.

Acontece que falsos napoleões e verdadeiros canalhas não costumavam chegar às altas esferas do poder desde o fim da II Guerra Mundial. Em momentos de aparente continuidade histórica, canalhas e sádicos costumam ser contidos naturalmente nas linhas mais baixas das instituições, exatamente porque não hesitam em colocar populações, a coisa pública e o próprio país em risco. Seja no exército, nos partidos políticos, no congresso, na igreja ou no aparato judiciário.

Quando ocorre um processo de anomia, geralmente provocado por duros embates geopolíticos após graves crises econômicas, forças deste submundo das instituições começam a emergir com os seus bumbos, estimulados por poderosos interesses organizados interna e externamente. Nesta empreitada, como antes, esta ascensão conta com muitos outros cúmplices poderosos, agora arrependidos ou culpados.

Este processo, obviamente, gera uma resposta que tende a se organizar também através das instituições e na sociedade civil.

São momentos em que os infernos particulares e as fantasias transbordaram em violência, paranoia e, no século XXI, em um negacionismo, princípio de psicose coletiva instigada por mentiras pulverizadas e a destituição de referenciais e das verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas.

Eis o retorno do reprimido, agora nas versões WhatsApp e YouTube. Eis uma sociedade em que massas se reconheceram pela via do consumismo, ao invés de terem um Estado de bem-estar social. Eis uma pandemia.

Eis o drama brasileiro. Impasse do qual só sairemos quando nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, orientados pela boa-fé e por princípios éticos, quando reconhecermos no olhar dos outros o nosso próprio desejo de liberdade.

O arrependimento edifica, a culpa destrói.

Filme “O Farol” | O Isolamento e o que jogamos no ‘oceano’ que volta para nos aterrorizar

Por Caio Garrido *

 

Em algum momento, nos sentimos abandonados à própria sorte.

Este sentimento é premente durante o isolamento quase “consentido” neste pacto social durante a pandemia. Presume-se que as pessoas estão conectadas via internet, mas como já li em algum lugar – nesta torrente deste mar de informações vindo de nossas redes sociais onde alguns peixes são fisgados enquanto outros fogem como sereias indestrutíveis e perigosas, pois as esquecemos – as pessoas consentem em solidarizarem-se umas com as outras muito por um individualismo compartilhado do que por uma razão somente ética.

Como disse o psicanalista Edson Luiz André de Sousa, “se por um lado vemos algumas atitudes colaborativas, por outro nos assustamos com uma espécie de guerra sanitária que surge, com aviões sendo retidos em alguns países com máscaras e equipamentos hospitalares, enfim, um verdadeiro horror”.

E ainda, corroborando a afirmação que faço mais acima, Heiner Mühlmann, de acordo com o seu modelo científico-cultural da “cooperação sob stress maximal”, diz que “a emergência de uma concertação coletiva em face de uma ameaça – real ou virtual – que afeta o todo da sociedade, não significa que o bem comum se sobrepõe aos interesses privados, mas constitui tão só o exemplo de um tipo específico de ‘cooperação egoísta’, no qual a cooperação possui mais vantagens individuais do que o puro e simples interesse de cada indivíduo por si só” (fonte: Luís Carneiro, em A dissidência no império biopolítico do fim).

Pois então, enterrados em nossos sofás, observamos como faroleiros atônitos o desenrolar dos fatos, e a ausência de conhecimento que nos permeia referente ao vírus e o futuro próximo indefinível, assistindo passivamente e estupefactos a insólita ausência de direção do leme do país.

E é em busca de uma nova velha ética que proponho o texto aqui: readquirir/adquirir alguma noção ética capaz de melhorar a já nossa tão miserável relação com a natureza – com a nossa natureza e essa “fora” de nós.

Existem mil maneiras de se narrar o que vivemos. O ponto de vista no qual encaro a situação faz-me descer ao Hades para tentar de lá extrair algumas consequências. Apesar de que tal vislumbre terrificante da realidade pode nos oprimir ainda mais, é justa a causa de transformar esses objetos que encontramos em seu fundo em sentidos possíveis para melhor vivenciar e imaginar um futuro possível, ainda que manquejante.

Vamos então ao que interessa: O filme lançado ao mar de nossas conjecturas através do título que embasa esse texto.

Nele é narrada a história dos personagens Thomas Wake e Ephraim Winslow (por Willem Dafoe e Robert Pattinson, respectivamente) – aliás, com umas das mais belíssimas atuações já vistas no cinema. Thomas Wake, o chefe, é o responsável pelo farol daquela ilha isolada, que ao contratar o jovem Ephraim Winslow para substituir o ajudante anterior, faz desenrolar entre eles, situações e falas sobre todo tipo de insólitas histórias de monstros, maldições, sereias, e superstições que causam terror, além de conflitos e embates constantes entre os dois.

O filme constrói uma fábula sobre isolamento e loucura, na consentida clausura a céu aberto e na edificação fálica do farol.

Desde seu início, um limiar nos é apresentado através de imagens. Não tão claro, onde o contraste do preto com o branco faz o cinza ganhar uma exuberância como só os grandes cineastas e fotógrafos conseguem. A simetria que as imagens do filme sugerem são também constantes: a chegada dos dois no território do farol, enquanto aparentemente outros dois colaboradores vão embora do obscuro lugar; o quarto dos dois, onde as camas são dispostas de forma simétrica no enquadramento; a mesa onde comem; sempre salientando também a não simetria dos dois, onde um tem a posse das chaves – o chefe – e só ele tem acesso ao farol, e o outro sofrendo a condição de explorado, além das vicissitudes normais de um trabalho subalterno comum. Lembro-me de Kafka e suas narrativas onde um personagem sempre sofre acusações absurdas e sem sentido. Eu poderia elencar outras situações onde essa simetria de imagens e de ações dos dois personagens são apresentadas, mas seria me estender demais nesse ponto. Mas enfatizo essa questão, pois tal tema parece fazer parte do argumento principal em torno dos significados profundos que o diretor quer disparar em seus espectadores.

As engrenagens do farol, com seus mecanismos de relógio duramente alimentados por homens, é a máquina de moer do mundo. Os faroleiros, guardas do farol, guardiões da luz – ou melhor: lightkeepers – ali mostrados, são almas suplicantes por sentido num mundo esvaziado.

A atmosfera de desconfiança é levada às últimas consequências durante toda a duração da película, com essa estranha relação entre esses mantenedores da luz e o farol nos fazendo pensar em que tipo de pessoa que se isola num farol destes a brindar os marinheiros com um pouco de sentido no mar aberto; O flerte com o desconhecido? Com a morte? Uma forma de suicídio – ‘desconhecídio’? Exorcizar os demônios na noite, enquanto o “demônio do meio-dia” insiste em nos atacar?

O mar tem sim seus segredos, seus enigmas. O que ele esconde é o que escondemos de nós mesmos. Para onde jogamos nossos terrores arcaicos? Nosso mal? Por ora, jogarmos certas coisas pra debaixo do tapete, não funciona mais; No isolamento, tudo isso vem à tona. O que normalmente escondemos, aquilo que geralmente dá pra seguir fingindo vida afora, fica exposto, o que pode tornar a vida insuportável, enlouquecedora e paralisante (inclusive a intensidade de nossos instintos pode nos paralisar). Ou seja: não dá pra seguirmos vivendo e fingindo da mesma maneira que fazíamos antes da quarentena. Vamos percebendo através desse confinamento que nosso trabalho já não faz sentido, ou que nossas máscaras sociais não funcionam mais para disfarçar um desconhecimento sobre quem realmente somos e nossas verdadeiras qualidades, a desigualdade econômica e social se torna gritante (como no filme, em alguns momentos, a saída parece ser só a do grito), a defenestração de nossas florestas amazônicas acordam-nos no meio da noite clara, além de tantas outras coisas que têm acontecido com tantos de nós.

Para quem sabe escutar ou tapar os ouvidos e se amarrar ao mastro – como fez Ulisses na Odisseia épica de Homero – diante dos perigos da sereia – como o filme também sugere – sabe a dimensão de onde nos metemos na forma como lidamos com a natureza, que fez desaguar a pandemia que vivemos hoje. Quem limpará nossa sujeira? Pandemia e pandemônio se dão as mãos nessa ‘folie à deux’. Pois os dois personagens do filme vivem isto: loucura a dois. Em algum momento duvidamos de nossa apreensão da realidade do que é passado no filme: Será que o chefe é uma imaginação ou projeção de Winslow? O medo de enlouquecer está ali. O medo de enlouquecermos diante do desconhecido que a pandemia, o vírus e o isolamento e suas consequências nos trazem, está aqui agora.

Mas é fato que para pensarmos e não sermos tragados pelo mar (do inconsciente, da loucura ou da morte) temos que questionar e lidar com o monstro da autoridade do medo.

Que matéria precária nos prende? E faz temer e tremer? Somos reféns, como os personagens, de espaços abertos que não podemos atravessar. Por que Winslow não se rebela diante de um chefe intransigente e insano, que exige tarefas despropositadas e absurdas? Não é a história de todos nós, de alguma forma, diante de um governo e um país absurdo?

Pior que o medo do desconhecido do vírus, é o medo advindo da repressão que se transforma em opressão, onde os indivíduos e a coletividade desse país em suas diferentes instâncias e instituições (mídias, jurídicas, associações, escolas, etc.) não se rebelam contra um governo fundamentalista e mortífero. Que espécie de pavor é esse??

Temos que roubar as chaves do chefe. Pandemonium.

Pandemonium é uma palavra de origem literária, cunhada pelo poeta inglês John Milton em seu clássico “Paraíso Perdido”, de 1667, “para nomear o centro administrativo do Inferno – não um inferno figurado qualquer, mas o próprio Inferno”. “Formado com elementos importados da Grécia (pan + daimon), mas filtrado pelo latim, Pandemonium era o nome do palácio onde se reuniam todos os demônios sob a liderança de Satã” (fonte: Sérgio Rodrigues, em O Pan e o pandemônio) .

Segundo o escritor Sérgio Rodrigues, “trata-se de uma palavra que, na linguagem corrente, virou um expressivo sinônimo de ‘bagunça, desordem, caos’, mas que numa acepção mais próxima da origem também pode ser empregada com o sentido de ‘associação de pessoas para praticar o mal…’”. Qualquer semelhança com a realidade brasileira é só mera coincidência!

Alguma coisa anima e mantém esse poder do chefe, apesar da evidente ilegitimidade em que ele se coloca. Vivemos em uma sociedade sádica. O masoquista mantém e provoca o sádico. Um não existe sem o outro. Assim como por exemplo em tragédias gregas como a de Édipo Rei (Tirano) de Sófocles, onde essa relação sadomasoquista do povo com os donos do poder é mostrada como uma constante, o Brasil atual renova as dimensões desse fenômeno.

Qual é a parte horrível da vida de um marinheiro, rapaz? É quando o trabalho acaba quando você está entre o vento e a água. Marasmo. Marasmo. Mais cruel que o Diabo. O tédio transforma homens em vilões”. Esse diálogo-monólogo, levado a cabo por Thomas Wake no filme, enquanto toma as bebidas que nos deixam estúpidos, exprime a necessidade humana maníaca (no sentido psiquiátrico do termo – de defesa contra a depressão – ou contra a loucura) pra lidar com a melancolia. Nossas histórias de terror, nossos entretenimentos modernos, nossos filmes e minisséries também são nossas defesas contra a realidade insuportável.

No filme, o antigo guardião da torre fálica do farol morreu. Ficou louco, falando sozinho sobre sereias, seres do mar, maldições e outras coisas. Viu a verdade e não suportou. Alucinou, criou realidades paralelas; Acreditava pois, que havia encanto no farol (farol como uma espécie de sereia fatal). Herdeiros do romantismo, buscam sua salvação.

É má sorte matar uma ave marinha” nos diz o personagem também. Sim. É a nós que ele se dirige! Verdade irrefutável! “Nelas estão as almas dos marinheiros” – e de todos nós.

Lá perto do final do filme, e de nosso fim também, as simetrias são novamente apresentadas, e as assimetrias mais e mais aparecendo num perde e ganha delirante. Matar a gaivota e a natureza é um modo de externar e projetar nosso instinto destrutivo, que na verdade é dirigido contra nós mesmos originalmente (inconscientemente). Em grande parte dos mitos, os deuses castigam os humanos por tentarem em vão alcançá-los. Acho em parte que isso se deve ao fato de não estarmos preparados para tal navegar ainda. É preciso, antes de atingir o divino em nós, nos humanizar, ou então virar bicho. Não há atalhos.

É claustro. Calmaria antes da tempestade. Um vento que estava nos alma-ldiçoando. Não sabemos nada sobre o mar. Não dá para se regozijar na luz com tanta sujeira à mostra. A luz que salva, cega, mata, enlouquece, vira câncer, vira comida de abutre, de vírus.

O isolamento, aqui, como no filme, faz-nos perder a noção de espaço e tempo. Estamos em terra, mas perdidos como eles. A única saída é destruída pelo chefe, e por nós mesmos. “O segredo está lá em cima“! Estar no terreno “seguro” do farol não os tira do lugar de estarem perdidos. Nem os faz seguir viagem seguros e contentes, como os bons marinheiros. “Onde estamos?” Estamos a nos afogar? Homens que viram novamente animais ou nunca deixaram de ser. Este lugar é um chiqueiro. A água invade.

 

“Deixe Netuno acertar você, Winslow.

Escute, Tritão, escute!

Abaixo, ofereça ao nosso pai, o rei do mar,

o subir das profundezas, em sua completa fúria,

ondas negras cheias com espuma e sal,

para sufocar essa boca jovem com lama pungente,

para te sufocar, engordar seus órgãos até você se tornar azul e inchado

com porão e salmoura e não puder mais gritar.

Apenas quando ele, coroado em conchas de berbigão

com a cauda tentadora deslizando e a barba fumegante,

pegar sua queda, braço com barbatana,

seu tridente de coral como banshee na tempestade

e mergulhar através do seu esôfago, estourando você,

não mais uma bexiga abaulada, mas um maldito filme sangrento agora,

e um nada para as Harpias e as almas dos marinheiros mortos

para bicar e arranhar e se alimentar,

apenas para ser rasgado e engolido pelas águas infinitas do temido imperador,

esquecido por todos, em todo lugar, esquecido por qualquer Deus ou diabo,

esquecido até pelo mar, por qualquer coisa

ou parte do Winslow até cada pedacinho de sua alma não ser mais Winslow

mas o próprio mar.”

 

Links e textos/críticas sobre o filme:

https://carmattos.com/2020/01/03/homens-em-busca-da-luz/

https://canaltech.com.br/cinema/critica-o-farol-158536/

http://www.adorocinema.com/filmes/filme-262493/criticas-adorocinema/

 

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* Caio Garrido é psicanalista e escritor. Diretor e criador da Ubuntu Psicanálise, mestrando pelo Programa interdisciplinar em Ciências da Saúde pela Unifesp Baixada Santista. Tem 4 livros publicados (2 romances e 2 de poemas).

Artigo publicado originalmente no perfil do autor.

 

 

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.

A importância da psicanálise durante a pandemia

A sociedade global, em compasso de espera, não parou, mas quase. Se tantos não puderam adotar o isolamento social como medida protetiva durante a pandemia – e ainda tiveram suas atividades diárias intensificadas por trabalharem em setores essenciais, como os da saúde, transporte, segurança pública e limpeza urbana -, bilhões de pessoas aportaram em uma quarentena caseira.

Em comum, as rotinas alteradas e, com elas, os relacionamentos, pensamentos e sentimentos remoídos diariamente pela avalanche de notícias que compartilha democraticamente sofrimento, desespero, impotência, tristeza e dor. Somente no Brasil são milhares de mortos e dezenas de milhares de pessoas enfrentando o luto enquanto estão imperativamente distanciadas de amigos e parentes.

É praticamente impossível ficar indiferente a esta situação, ainda que se assuma um perigoso estado de negação diante da realidade. Isso porque, neste contexto frágil e trágico, mesmo os mais afortunados e saudáveis adotaram o teletrabalho ou home office, como preferir.

Trabalhadores formais que não gozam desta possibilidade receberam férias compulsórias, na expectativa de que, em um futuro breve, não venham a engrossar a longa fila de desempregados que dá a volta em nosso país. Já os informais, improvisando estratégias em seus pequenos negócios, através da internet, encontraram uma dimensão ainda mais dramática da palavra sobrevivência.

Quase todos, com ou sem carteira trabalhista assinada, se virando como podem, trabalhando e vivendo sozinhos ou com a família e filhos dentro de casa, 24 horas por dia, 7 dias por semana. São casamentos de trinta anos, ou mais, redescobertos de maneira intensa. Relacionamentos recentes, forjados e atravessados por telas e redes sociais, nos quais tantos se deparam pela primeira vez com o poder do olhar, do silêncio e de um tempo a dois que parecia ter sido suprimido pelo século XXI.

Tudo isso imposto contrariamente aos desejos, sem culpados ou responsáveis, às custas da liberdade de ir e vir.

Estamos vivendo o indesejável. Porém, mesmo nele, os desejos não cessam. Então, para onde eles vão?

Male and Female Bathers with Umbrella. Alfred Grévin (França, s. XIX)

Até aqui vivenciamos um breve período, de meses, que já alterou alguns pressupostos sociais, políticos e econômicos, nas mais diversas sociedades e culturas inseridas no mundo globalizado. Transformações que dificilmente se encerrarão com o fim do isolamento social ou com a descoberta da tão sonhada vacina.

Talvez, e muito provavelmente, aquilo que estamos presenciando seja apenas o preâmbulo de um novo volume na obra da humanidade. Assim, para além de “fé na ciência” não se mostrar uma contradição em termos, diante das incertezas geradas por tamanhas mudanças comprimidas em um espaço de tempo tão curto, emerge em sua plenitude aquela que, até recentemente, era esquecida no trato diário ou resumida às frases de efeito nas redes sociais. A mãe de todas as ciências: a filosofia.

Note-se que esse ressurgimento não é a mera consequência do movimento que inclui os filósofos e pensadores pop que habitam as timelines, mas a própria causa do seu surgimento, que já vinha em curso com as novas questões colocadas pelo mundo contemporâneo. Nesse instante de pandemia tal demanda assume a almejada proposta da filosofia – para além do discurso e da retórica reproduzida por ouvintes, leitores e seguidores -, quando ela se desdobra em prática.

Quando o horizonte se aproxima demais e os olhos da alma só alcançam os arredores imediatos é porque já perdemos uma certa pureza e algumas certezas que nos estruturam e acalmam. São em momentos como esse, quando não podemos fugir das dúvidas, que a reflexão se revela como mais uma necessidade posta à sobrevivência.

A questão é que pensar, refletir ou filosofar, definitivamente não são tarefas simples, muito menos tranquilas. Elas geram desconforto, inquietude, angústia e podem chegar a doer no corpo. Sobretudo, agora, quando os corpos enclausurados encontraram uma parada inédita na história.

Como o corpo e a mente são faces da mesma moeda, na cotação da vida, muitos têm tido pela primeira vez a percepção de que mergulhos interiores podem ser tão arriscados quanto aqueles no mundo exterior. Nesse sentido, todas as psicoterapias são recursos preciosos, que nos ajudam a suportar o sofrimento na necessária travessia que se apresenta.

A psicanálise é uma das diversas psicoterapias.

Criada por Sigmund Freud, o seu diferencial em relação às demais é que ela refunda a noção de consciência da filosofia.

Antes, a mente era compreendida como aquilo que conhecemos racionalmente: a consciência era o estado do saber. Já as paixões, sentimentos e afetos, dependendo da tradição filosófica, partiam de forças vitais, deuses e até mesmo da própria consciência. O inconsciente era somente um estado de alienação, de não saber, do desconhecido que não habitava o psiquismo.

Freud alterou radicalmente estas noções ao afirmar que o Inconsciente, na verdade, é muito mais poderoso do que imaginavam os filósofos. Muito antes de ser um estado de não consciência sobre algo externo, ele é um espaço, e também uma dinâmica, no interior do psiquismo. Não um espaço e dinâmica quaisquer, mas a imensa parte daquilo que compõe o que chamamos de psique, que relaciona-se permanentemente com o corpo físico.

No Inconsciente residem os traumas, reminiscências e vivências antigas que compõem um tipo de conhecimento, advindo da nossa relação com o mundo, que foi reprimido. Dele também partem os desejos e as paixões. Ou seja, possuímos uma imensa força, um tipo de saber que não sabemos e que nos habita, nos molda e direciona nossas respostas, afetos, sentimentos e reações diante dos acontecimentos, na maioria das vezes, incontroláveis da nossa vida social, familiar e profissional.

Contando com dois instrumentos simples, a fala e a escuta, a psicanálise é uma prática consolidada, há mais de um século, como a cura pela palavra. Cura terapêutica, enquanto alívio do sofrimento, dos seus sintomas e da redescoberta de si. Um espaço de enfrentamentos e suporte da angústia, inerente à própria condição humana, do qual ninguém deve ser ou estar privado, fundamentalmente em tempos como o que vivemos.