Maus: a rataria na trama golpista e a Noite dos Cristais

Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, atenho-me à premissa de que ele não pode abandonar as meta-representações relativas ao tratamento, e me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico. (Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos)

A associação livre é uma técnica fundamental da psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud. Ela consiste em pedir ao paciente que diga tudo o que vier à mente, sem censura ou julgamento, independentemente do quão irrelevante, desconfortável ou incoerente possa parecer aquele conteúdo. O seu objetivo é permitir que conteúdos inconscientes do paciente, normalmente reprimidos, venham à tona. Devido a esse objetivo – e não a uma lógica de “agradar o cliente” – é que todos os psicanalistas sabem a importância terapêutica de tentarem fazer dos seus consultórios espaços onde os pacientes sintam-se confortáveis e seguros fisicamente, para falarem livremente do seu universo mais íntimo e, muitas vezes, secreto.

Na era das novas tecnologias, o que não faltam são diálogos íntimos que vêm à luz do debate público devido aos mais variados interesses. Muitas vezes descontextualizados, outras tantas, não. A grande audiência gerada por esse tipo de voyeurismo contemporâneo está no cerne do debate sobre a diluição da fronteira entre o público e o privado e sobre a monetização facilitada aos conteúdos pretensamente escandalosos, mas fabricados por aspirantes à fama.

Esse não é o caso de diálogos do universo da política anexados às investigações policiais e da justiça. Analisados em um determinado contexto de crimes, tais conteúdos podem revelar como um discurso público pode mascarar verdadeiras intenções e secretos fins políticos.

O que se segue, portanto, é um breve comentário sociopolítico que amplia o conceito de associação livre com a intenção de extrair algo além daquilo que é explícito. Para tanto, utilizo dois pequenos trechos de falas que circulavam em grupo de militares de alta patente que, de acordo com a investigação da Polícia Federal, preparavam uma trama golpista após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Ao assistirmos a reportagem do Fantástico que revelou alguns áudios dos diálogos do planejamento de um golpe de Estado – que envolveria os assassinatos do presidente da república e o seu vice, recém eleitos, um ministro do STF e, no mínimo, mais uma figura pública (ainda desconhecida) -, uma frase dita pelo general Mário Fernandes a um assessor de Jair Bolsonaro chama muito a atenção, e possivelmente revela muito mais do que o óbvio:

Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, sem quebrar cristais.

O vocativo “caveira”, revelador da estética da necropolítica em curso naquele momento, provavelmente refere-se ao título concedido ao interlocutor, indicando que ele concluiu o Curso de Operações Especiais conduzido pelas Polícias Militares ou Forças Armadas do Brasil. Isso não é propriamente uma novidade, dado o aparelhamento do Estado durante o governo Bolsonaro por militares e herdeiros institucionais do general Sylvio Frota. Já a expressão “sem quebrar ovos” é bastante popular no Brasil, derivada de “não se faz omeletes sem quebrar ovos”. No entanto, não podemos dizer o mesmo da expressão “sem quebrar cristais”, da qual não se encontra registro de dito de origem popular.

Em função de todo um contexto – não só da fala do general, mas da ascensão do neofascismo brasileiro na última década –  tal associação metafórica ‘fora de lugar’ talvez revele um profundo arranjo semântico entre “quebrar cristais” e os objetivos revelados pelas investigações sobre o grupo de onde foi extraído o diálogo e a fala do general. Um arranjo que remete qualquer estudioso ou observador atento a um episódio certamente bastante conhecido pelos militares brasileiros – talvez, admirado por alguns deles -, por todos os historiadores e judeus do mundo: A Noite dos Cristais (Kristallnacht).

Evidentemente, os fatos históricos são bastante distintos e incomparáveis. O Brasil atual não é a Alemanha nazista.

No entanto, se precisamos rememorar e estudar a histórica aproximação entre o fascismo e o nazismo, o mesmo se aplica em relação ao neofascismo e o neonazismo na contemporaneidade.

A Noite dos Cristais e os cristais brasileiros

A Noite dos Cristais, ocorrida entre 9 e 10 de novembro de 1938, marcou um ponto de inflexão na perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Essa onda de violência, que se estendeu pela Alemanha, Áustria e regiões da Tchecoslováquia ocupadas, resultou no saque e na destruição de sinagogas, lojas, residências judaicas e na profanação de cemitérios judaicos, além da morte de 91 judeus e a prisão de aproximadamente 30 mil homens judeus, que foram enviados a campos de concentração. O nome se deve aos cacos de vidro que cobriram as ruas após o massacre.

Sinagoga em chamas após a Noite dos Cristais. Berlim, 1938.

O pretexto para essa onda de violência foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por Herschel Grynszpan, um jovem judeu polonês de 17 anos, cuja família havia sido recentemente deportada, entre tantos outros, da Alemanha para a Polônia. A Polônia se recusou a receber os deportados, que passaram a viver em um campo de refugiados próximo à cidade de Zbaszyn, na região fronteiriça entre os dois países.

Em meio ao desespero, Grynszpan, que havia fugido da Alemanha e residia ilegalmente em Paris, dirigiu-se à embaixada alemã na cidade. Lá, aparentemente movido pela intenção de vingar as condições adversas enfrentadas por sua família, disparou contra o funcionário diplomático que o atendia. Vom Rath, o diplomata atingido, morreu em 9 de novembro de 1938, dois dias após o ataque. Coincidentemente, essa data marcava o “aniversário” do Putsch da Cervejaria (Beer Hall Putsch), a tentativa de golpe para derrubar o governo do Estado da Baviera, organizada por Adolf Hitler e o Partido Nazista, nos dias 8 e 9 de novembro de 1923. Aquela tentativa fracassou, mas tornou-se um marco significativo no calendário nazista.

O regime nazista utilizou esse incidente como justificativa para incitar ataques coordenados contra a comunidade judaica, apresentando-os como manifestações espontâneas da população. Forjar uma imagem de “espontaneidade das massas” é uma estratégia para buscar legitimar e expandir os objetivos de ruptura de pactos civilizatórios por parte de uma minoria violenta. Assim também tem sido feito no contexto político brasileiro contemporâneo, com o seu ápice, até aqui, nos quatro anos do mandato de Jair Bolsonaro, quando foram explicitadas inúmeras vezes as intenções golpistas, os ataques às instituições, a incitação ao ódio, à violência armada e a desumanização de opositores políticos, minorias e grupos identitários.

Durante a Noite dos Cristais, as forças policiais e os bombeiros receberam ordens explícitas para não interferirem nos crimes e incêndios que consumiam as sinagogas e estabelecimentos judaicos, exceto para evitar que as chamas se espalhassem para propriedades “arianas”.

Prédio do STF depredado após atos golpistas do dia 8 de janeiro. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF.

No Brasil atual, lembremos que a Polícia Federal concluiu que houve falhas e indícios de atuação criminosa da cúpula da segurança pública do Distrito Federal nos ataques de 8 de janeiro. Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, a PF apontou que houve “falhas evidentes” do ex-secretário Anderson Torres e cita o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB).

Trecho do relatório da PF: Conclui-se que as falhas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) no enfrentamento das manifestações de 08/01/2023 são evidentes, especialmente pela ausência inesperada de seu principal líder, ANDERSON GUSTAVO TORRES, em um momento de extrema relevância aliado a falta de ações coordenadas e a difusão restrita de informações cruciais contidas no Relatório de Inteligência no 06/2023 foram fatores decisivos que contribuíram diretamente para a ineficiência da resposta das forças de segurança.

Relembre-se, ainda, o monitoramento ilegal de pessoas, opositores, autoridades e aliados, por parte da ABIN paralela no governo Bolsonaro. O gesto supremacista feito por Filipe Martins, um dos 37 indiciados na última semana – junto ao general Mário Fernandes – e uma das figuras mais próximas do ex-presidente e seu assessor especial para assuntos internacionais. Registre-se, antes, a conhecida interlocução de Bolsonaro com grupos neonazistas. Mais, o fato de que ele recebeu aos risos e oficialmente, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler e membro do partido Alternativa para a Alemanha, sigla neonazista alemã. Além do fato de que após a ascensão do bolsonarismo, o número de células neonazistas no país cresceu de 75 para 530. Por fim, o deplorável episódio no qual o secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em rede nacional fez um discurso esteticamente semelhante e com trechos idênticos a um discurso do ministro de Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo.

Como notamos, a aproximação do neofascismo com os ideais neonazistas não é um mero acaso.

Maus: a rataria bolsonarista

Maus é uma aclamada graphic novel que combina memórias do Holocausto com uma narrativa autobiográfica. Dividida em dois volumes – Maus: A Survivor’s Tale – My Father Bleeds History (1986) e Maus: And Here My Troubles Began (1991) –, a obra apresenta a história de Vladek Spiegelman, judeu polonês sobrevivente do Holocausto, contada por seu filho, o sueco Art Spiegelman.

O título Maus é a palavra alemã para “rato”, foneticamente semelhante ao inglês mouse. Ele carrega um significado simbólico central para a obra de Art Spiegelman, pois reflete a metáfora visual e narrativa utilizada ao longo da graphic novel. Na história, os judeus são representados como ratos, enquanto os nazistas são retratados como gatos. Essa escolha remete diretamente à propaganda nazista que desumanizava os judeus, comparando-os a pragas.

Essa poderosa imagem dialoga com a propaganda antissemita usada pelos nazistas, que retratavam os judeus como seres inferiores e ameaçadores à “pureza” racial ariana. Spiegelman utiliza essa representação para desconstruir o discurso nazista e evidenciar o horror, a violência e a irracionalidade do preconceito e do antissemitismo.

Enquanto isso, nos poucos áudios revelados, até aqui, dos indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, ouvimos um oficial dizer:

O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comité. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria. Tem que debater o que vai ser feito.

Abaixo da ética e sem sutileza alguma, o discurso moral do grupo que pretendia promover o fechamento de um regime ditatorial no Brasil revela, na intimidade segura, a imoralidade das suas intenções políticas, própria dos canalhas. No jargão militar, “rataria” refere-se àqueles que agem escondidos, sem se importarem com a legalidade, com a linha de comando e a institucionalidade das próprias FFAA.

Em português, o adjetivo ‘maus’ qualifica aqueles que se distinguem pelo caráter ruim, moralmente condenável, aqueles dados a fazer maldades, que contradizem a justiça, o dever, os que são contrários à lógica, às regras; os impróprios, os incorretos.

A despeito de quaisquer possíveis análises dos seus inconscientes, tais diálogos íntimos e, por isso, mais reveladores, comprovam o que já se sabe há anos: a rataria bolsonarista tem plena consciência do que é, disse e fez.

Que lhes reste a justiça, sem anistia. Terrorismo de Estado, nunca mais!

 


Saiba mais sobre a Noite dos Cristais no Holocaust Encyclopedia: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht

 

 

A psicanálise é uma ciência

Publico o presente artigo, mesmo considerando a última versão brasileira desse enfadonho debate centenário encerrada, porque, ao me reaproximar das redes, pude ler muitos jovens defensores dessa tese superada tantas vezes, reproduzindo-a nos últimos dias, sem terem o mínimo preparo essencial à qualquer crítica pertinente e necessária à psicanálise, como tantas outras.

No ensaio O Sujeito Entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo (2022), fiz um brevíssimo debate epistemológico ao citar o saudoso professor Octavio Ianni, introduzindo sua vasta obra sobre o globalismo. Nela, ele disseca os impactos da transformações nas metodologias das ciências humanas e os seus potenciais desdobramentos ao longo dos anos 1990 e do início do século XXI.

Para ele, três abordagens se destacavam no rol de análises do novo fenômeno da globalização, por serem metateorias capazes de articularem noções locais e globais:

– a sistêmica, adotada tanto na academia quanto nos órgãos governamentais, empresas transnacionais e think tanks. Ela é funcionalista e sincrônica, compreendendo o globalismo como um organismo autorregulado e a-histórico, que tende ao equilíbrio;

– a weberiana, em sua análise social da ética protestante e outros conceitos relativos ao nexo entre o indivíduo e a sociedade. Porém, fundamentalmente, quanto ao seu aprofundamento no estudo daquilo que Weber chamou de dominação racional, dominação legal e dominação burocrática;

– e, por fim, a marxista, em sua abordagem dialética e materialista acerca do dinamismo do capital e dos modos de produção ao longo da história.

Defendo a tese de que, após a queda do Muro de Berlim – hoje é evidente -, a primeira metateoria prevaleceu. Muito além de prevalências teóricas, a hegemonia da metateoria sistêmica aponta como a leitura positivista e, principalmente, cientificista do funcionalismo voltou a condensar nas ciências humanas a partir daqueles anos de 1990, após uma breve pulverização nas décadas anteriores – pós-estruturalismo, contracultura, etc.

Portrait of Sigmund Freud(Freud, Sigmund.) Sternberger, Marcel Edité par London, 1938, printed 2017, 1938

Portrait of Sigmund Freud. Sternberger, Marcel. Edité par London, 1938, printed 2017.

Ainda, que a massificação da internet e das redes sociais virtuais, após a crise neoliberal de 2007-8, em sua estrutura racionalizável e necessária à rearticulação dos interesses do capital, engendrou e propiciou o negacionismo/extremismo que explodiu na cara de todos nos últimos anos.

Tais interesses, necessitando ressignificar estruturantes fraudes e mentiras, contudo, ao mesmo tempo, sabendo que o planeta Terra é um geóide (porque precisam ficar vivos), propiciaram o espaço para que as noções do cientificismo reassumissem um radicalismo em resposta ao charlatanismo crescente e avassalador em todos os campos do conhecimento.

Ou seja, a fenda global provocada pelo descontrole do capitalismo foi tão profunda que o capital, enquanto medida de sua sobrevivência, invocou tanto a mentira extrema – o ataque massivo à necessária ciência, às figuras de autoridade, ao senso comum, às instituições da democracia liberal -, quanto o cientificismo radical.

A microbiologista Natália Pasternak ficou ‘famosa’ no Brasil a partir desse lugar de contradição inflamada dos interesses do capital, atuando de forma exemplar na CPI da Covid, contra o negacionismo bolsonarista. Ela enfrentou o extremismo psicótico à altura, com uma coragem vital a todos os que aguardamos o julgamento dos envolvidos no genocídio ao qual sobrevivemos – ao mesmo tempo tão vivo em nossas memórias e, de forma revoltante, tão morto no debate público nos últimos dois anos.

Não posso afirmar que o ‘sucesso’ por defender o óbvio subiu à cabeça de Pasternak, mas a sua postura assertiva e ‘lacradora’ – fundamental naquele momento – parece ter expandido para – ou, talvez, tenha sido derivada – (d)o espaço de condensação de um neopositivismo arrogante e agressivo, que aparentemente pretende ser, além de um valoroso defensor da ciência, uma suposta superação das conjunturas e marcadores científicos socioculturais, históricos e políticos contemporâneos, aspirando a um assustador caráter de neutralidade divina, pureza e superioridade moral.

Uma expressão atual de uma arcaica posição, superada diversas vezes no curso da filosofia da ciência, mas bastante popular na linguagem contemporânea e hiperestimula na estética de consumo nas redes sociais virtuais. Discurso recursivo ao cientificismo dos herdeiros de Karl Popper e da escola de Chicago, corrente filosófica que valeu-se de psicologizações necessárias às suas teorias econômicas implantadas pelas ditaduras impostas na América Latina pelos governos dos EUA, ao longo do século XX.

Pasternak, pesquisadora da Universidade de Columbia, e o seu marido, o jornalista Carlos Orsi, publicaram um livro chamado Que bobagem!: pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério (2023), no qual destinam 20 páginas para tentarem caracterizar a psicanálise enquanto uma pseudociência, a equiparando, por exemplo, à paranormalidade, discos voadores, curas energéticas, modismos de dieta e poder quântico.

Uma prova elegante de que a Psicanálise é uma ciência

No livro Ciência Pouca é Bobagem: Por que Psicanálise Não é Pseudociência (2023), de Christian Dunker e Gilson Iannini, temos uma resposta formal e específica ao livro de Pasternak e Orsi.

Entretanto, eles não defendem a cientificidade da psicanálise partindo somente dos conceitos próprios à epistemologia da psicanálise (em sua própria linguagem), eles assumem um viés de escuta que se propõe a dialogar na própria arena dos autores, de uma suposta ciência única. Dunker e Ianinni seguem através da filosofia da ciência por todo o livro, desmascarando – palavras minhas- o oportunismo mercadológico dos autores de Que Bobagem!… propiciado por um espaço midiático fabricado pelos interesses dominantes na atual conjuntura brasileira para cientificistas como eles.

Um dos conceitos centrais abordados no livro Ciência Pouca é Bobagem é o de “extimidade”, termo lacaniano que se refere a algo que está simultaneamente “dentro” e “fora”. Para Dunker e Iannini, a psicanálise ocupa uma posição “extima” em relação à ciência: ela faz parte do campo científico, mas sem se adequar completamente aos métodos e critérios que prevalecem nas ciências naturais. Essa posição permite à psicanálise investigar fenômenos singulares — como o inconsciente, os sonhos e os sintomas — que não se prestam à replicação e à generalização.

Essa “ciência extima” da psicanálise é o oposto do dogma e do empirismo rígido, pois trata o singular como algo de valor epistemológico. Ao contrário de outras abordagens, a psicanálise lida com aquilo que é “externo” ao método experimental, mas que, ao mesmo tempo, é parte inseparável da experiência humana. Os autores acertam ao desafiar a ideia de que toda ciência precisa seguir um molde específico de objetividade; ao contrário, mostram que o saber científico pode e deve acomodar diferentes formas de verdade.

Dunker e Iannini também enfrentam diretamente o argumento da falseabilidade de Karl Popper, frequentemente usado para excluir a psicanálise do campo científico. Para Popper, uma teoria é científica apenas se puder ser provada falsa por experimentação; entretanto, os autores desconstroem essa ideia ao apontar suas limitações para saberes que não podem ser reduzidos a simples afirmações verdadeiras ou falsas. A psicanálise, ao lidar com processos subjetivos e experiências únicas, não se enquadra na mesma categoria de teorias que buscam estabelecer leis universais.

A obra também é enriquecida pela interlocução com autores como Thomas Kuhn e Gaston Bachelard, que contribuíram para a ideia de uma ciência pluralista e capaz de dialogar com diferentes paradigmas. Kuhn, com seu conceito de paradigma científico, ajuda a fundamentar a defesa dos autores contra o cientificismo, ao demonstrar que a ciência se desenvolve através de crises e mudanças de perspectiva. Bachelard, por sua vez, enfatiza o papel da interpretação e da construção do conhecimento, o que abre espaço para que abordagens como a psicanálise sejam compreendidas como parte legítima da investigação científica.

Dunker e Iannini destacam que o verdadeiro saber científico não é monolítico, mas plural, interativo e crítico. Eles afirmam que, ao tentar impor um único critério de validação, o cientificismo falha em reconhecer as potencialidades da psicanálise para expandir a compreensão dos fenômenos humanos. A ciência, argumentam, deve ser aberta e permeável, abraçando a complexidade em vez de rejeitá-la.

Um dos temas mais provocantes do livro é a defesa do que Dunker e Iannini chamam de “saber da bobagem”. Ao contrário do cientificismo, que desqualifica o que parece trivial ou sem valor, a psicanálise dedica-se a explorar justamente esses elementos: os sonhos, as obsessões e as pequenas incoerências que, na superfície, podem parecer irrelevantes, mas que revelam o funcionamento profundo do inconsciente. A análise do caso do Pequeno Hans, clássico na obra de Freud, ilustra como essas “bobagens” revelam complexas estruturas de desejo e angústia.

Aqui, a psicanálise mostra seu valor como uma ciência que não apenas interpreta, mas também emancipa o sujeito, possibilitando uma transformação profunda da relação com seu inconsciente. Ao contrário da postura cientificista, que nega valor ao que não se pode medir ou replicar, a psicanálise lida com a singularidade de cada indivíduo, proporcionando uma abordagem verdadeiramente humanista. A ciência, segundo Dunker e Iannini, precisa ser capaz de lidar com o trivial e com o particular, pois é aí que reside uma verdade essencial sobre o sujeito.

As ‘hard sciences’ – as ciências de laboratório – também comprovam que a Psicanálise é uma ciência

Há mais de um século, Freud propôs que memórias indesejadas podem ser excluídas da consciência, um processo chamado repressão. Não se sabe, porém, como a repressão ocorre no cérebro. Usamos ressonância magnética funcional para identificar os sistemas neurais envolvidos em manter memórias indesejadas fora do alcance conhecimento. O controle de memórias indesejadas foi associado ao aumento da ativação pré-frontal dorsolateral, redução da ativação do hipocampo e retenção prejudicada dessas memórias. Ambas as ativações corticais pré-frontais e do hipocampo direito previram a magnitude do esquecimento. Esses resultados confirmam a existência de um processo de esquecimento ativo e estabelecem um modelo neurobiológico para orientar a investigação sobre o esquecimento motivado.

Acima, temos o resumo do artigo Sistemas Neurais Subjacentes à Supressão de Memórias Indesejadas (2004), de Michael C. Anderson et al., publicado na revista Science, que explora mecanismos neurológicos que atuam na supressão ativa de memórias, especialmente as de natureza traumática ou indesejada. Através de experimentos neurocientíficos, Anderson analisa como o córtex pré-frontal, em interação com o hipocampo, desempenha um papel central na capacidade de “bloquear” memórias incômodas, uma função crucial para o equilíbrio emocional e a saúde mental.

O estudo foca no uso da paradigma think/no-think (TNT), onde indivíduos treinados a suprimir memórias específicas mostram atividade reduzida no hipocampo e uma maior ativação no córtex pré-frontal quando conseguem suprimir uma recordação indesejada. Esse processo é discutido por Anderson sob a ótica de modelos cognitivos e freudianos de repressão, posicionando a pesquisa como uma evidência neurológica para processos psicanalíticos clássicos. O estudo propõe ainda que a supressão ativa de memórias pode atuar como um meio de autorregulação emocional, contribuindo para a manutenção da estabilidade psíquica.

Na complexa relação entre memória e trauma, Anderson discute como esse mecanismo pode ter efeitos tanto benéficos quanto danosos, dependendo da frequência e intensidade da supressão. Essa capacidade, uma vez desregulada, pode resultar em quadros de ansiedade ou distúrbios dissociativos, onde a tentativa de bloquear memórias traumáticas paradoxalmente amplifica seu impacto. Em última análise, o artigo sugere que a memória não é simplesmente um processo de armazenamento passivo, mas um campo dinâmico e maleável, influenciado por redes neurais que filtram, ajustam e até eliminam informações em resposta a demandas emocionais e sociais.

Já o artigo Transtorno de pensamento medido como estrutura de fala aleatória classifica sintomas negativos e diagnóstico de esquizofrenia com 6 meses de antecedência (2017), de Sidarta Ribeiro, Natália Mota e Mauro Copelli, publicado na Schizophrenia, revista da Nature voltada à psiquiatria, investiga a desorganização do pensamento como um marcador precoce de esquizofrenia. A hipótese central é que uma baixa conectividade de fala — observável desde o primeiro contato clínico — pode prever sintomas negativos e um diagnóstico de esquizofrenia até seis meses antes.

Comprovando os achados iniciais de Freud, o estudo utiliza relatos de sonhos como fonte principal para medir e analisar a desorganização do pensamento, focando especificamente na estrutura aleatória do discurso dos pacientes. Através da análise de grafos, os autores investigam a conectividade das palavras em narrativas de sonhos, revelando que, em casos de psicose recente e esquizofrenia, a estrutura do discurso tende a ser mais desconexa e aleatória. Essa escolha dos sonhos como material clínico é significativa, pois permite captar conteúdos subjetivos e desorganizados de maneira natural, ajudando a detectar sinais de distúrbios de pensamento. Conteúdos oriundos do Inconsciente.

Por fim, a História

Existem muitos outros estudos, artigos e livros, publicados na Science, na Nature, em em diversas revistas científicas de prestígio e por diversas editoras ao longo de décadas que comprovam que a Psicanálise é, sim, uma ciência. Ela só não é uma pseudociência, nem um dos charlatanismos propiciados pelas redes sociais virtuais das Big Tech, nem, talvez, uma das ciências interessantes a muitos interesses poderosos na atual conjuntura socioeconômica, histórica e geopolítica.

Aliás, na contemporaneidade, devastada pela mentira, torna-se imperativo rememorarmos quando Freud precisou fugir para Londres, em 1938, devido à ascensão do nazismo. Aquela ideologia nefasta que divulgava uma interpretação selvagem da mitologia nórdica, um tipo de esoterismo e, ao mesmo tempo, um cientificismo barato. Combinação que custou ao mundo a Segunda Guerra Mundial.

Referências:

ANDERSON, Michael C.; OCHSNER, Kevin N.; KUHL, Brice; COOPER, Jeffrey; ROBERTSON, Elaine; GABRIELI, Susan W.; GLOVER, Gary H.; GABRIEL, John D. E.; GABRIELI, D. E. Neural systems underlying the suppression of unwanted memories. Science, v. 303, n. 5655, p. 232-235, 2004. Disponível em https://www.science.org/doi/10.1126/science.1089504. Acesso em: 25/10/2024.

DUNKER, Christian; IANNINI, Gilson. Ciência pouca é bobagem: por que psicanálise não é pseudociência. Prefácio de Tatiana Roque. São Paulo: Ubu, 2023. 288 p.

MOTA, N. B.; COPELLI, M.; RIBEIRO, S. Thought disorder measured as random speech structure classifies negative symptoms and schizophrenia diagnosis 6 months in advance. npj Schizophrenia, v. 3, n. 18, 2017. Nature. Disponível em: https://doi.org/10.1038/s41537-017-0019-3. Acesso em: 25/10/2024.

ORSI, Carlos. Carlos Orsi, coautor de “Que bobagem!”, debate com o psicanalista Mário Eduardo Costa Pereira. TV Unicamp. YouTube, 23 out. 2024. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eHmn2zcjyZc. Acesso em: 23 out. 2024.

PASTERNAK, Natalia; ORSI, Carlos. Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto, 2023. 336 p.

ZUCCOLOTTO, Fábio C. O sujeito entrópico – um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo. In: GARRIDO, Caio; ZUCCOLOTTO, Fábio C. A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2022. p. 71-128.

Senor, Señor, Senhor Silvio Santos | Uma suposição analítica do fundo do baú

O que víamos nas telas, o carismático e talentoso Silvio Santos, o maior comunicador da história do Brasil, era somente a ponta de um imenso iceberg.

Nos próximos dias muito será dito, escrito e lembrado a respeito do Silvio Santos. Menos, talvez, sobre o Senor Abravanel. Se o segundo reside na obscuridade da memória popular, o primeiro, oriundo do rádio, foi um dos fundadores da televisão brasileira como a conhecemos. Com um diferencial em relação aos seus contemporâneos: ele foi muitos em um só. Um tipo de síntese de Roquette-Pinto com Assis Chateaubriand, Barão de Mauá, Cid Moreira, Mazzaropi, Roberto Marinho, Barão de Itararé e Boni.

Um daqueles raros fenômenos do século XX – quando o universo privado ainda era valorizado e inegociável -, tal qual o Edson e o Pelé. Longe do diagnóstico de transtorno dissociativo de identidade, Senor cindiu-se conscientemente para libertar o seu gênio publicamente, o Silvio.

Na unidade de tamanha figura, o seu complexo novelo, que ajuda a amarrar o último século da vida sociocultural do Brasil, desponta em muitas linhas caóticas, pelas quais a história fará o favor de nos conduzir ao longo do tempo, no escrutínio da memória e do seu legado.

Tento contribuir nesse texto com uma análise cheia de conjecturas a partir da sua influência e de tudo o que assisti e li ao seu respeito.

Senor Abravanel

Exceção feita ao monoteísmo originado na Pérsia a partir do profeta Zaratustra, que teria vivido 2 mil anos antes de Cristo, judeus, cristãos e muçulmanos consideram o hebreu Abraão (ou Ibrahim), o patriarca original das suas religiões.

Na mitologia da cultura judaico-cristã, Abraão, nascido em Ur, dos Caldeus, no sul da Mesopotâmia, descendente da nona geração de Sem (filho de Noé), teria recebido uma mensagem divina ordenando que ele levasse sua família à terra prometida, de fartura em meio à aridez, Canaã.

A divisão territorial das 12 tribos de Israel, segundo a mitologia judaico-cristã. Clique na imagem para ampliar.

Segundo essa cosmogonia, Abraão foi pai de Isaque, que, por sua vez, foi pai de Jacó, também chamado de Israel. Dos filhos de Jacó, formaram-se os clãs que dividiram Canaã entre 12 tribos: Rúben, Simeão, Levi, Judá, Dã, Naftali, Gade, Aser, Issacar, Zebulom e Benjamim. Efraim e Manassés, filhos de José e netos de Jacó, repartiram a mesma tribo. Segundo a Torá e a Bíblia, o clã de Levi recebeu a missão do sacerdócio e, por isso, não recebeu um território próprio, misturando-se com as demais tribos.

Encerrada a mitologia, da qual não há documento histórico, a história conta que Yehuda ben Yitzhak Abravanel (יהודה בן יצחק אברבנאל / Isaac “filho de Judá” Abravanel) viveu entre os séculos XV e XVI, período das grandes navegações. Foi um importante rabino, intelectual e financiador do reinado de Afonso V, rei de Portugal e Algarves. Acusado de conspiração, fugiu para Castela, onde Isabel I, de Castela, e Ferdinando II, de Aragão, haviam se casado há poucos anos. Dom Isaac, então, passou a financiar os monarcas, que almejavam conquistar o califado de Garnatha Alyejud (reino de Granada), já sob o domínio dos nazerís desde Ibn Nasr (Muhammad I), na região de Al Andalus (Andaluzia).

Com o crescente antissemitismo contra judeus e muçulmanos na Europa ocidental, a partir da imposição da conversão de todos os súditos de Castela ao catolicismo em 1492, aos judeus sefarditas restava a perseguição ou a expulsão. Dom Isaac fugiu uma vez mais, com a pretensão de levar sua família para o leste e viver sob o Império Otomano. Parou em Nápoles, onde tornou-se consultor financeiro de Ferdinando I, de Aragão, rei de Nápoles. Morreu em 1530, provavelmente no mesmo lugar.

Algumas gerações depois, seus descendentes chegaram, finalmente, ao destino que ele buscava originalmente, na região da Salonica (سلانيك, em turco otomano e Θεσσαλονίκη, em grego), atualmente, Tessalônica, Grécia. Refúgio dos judeus sefarditas, quando, expulsos da Península Ibérica, se juntaram aos judeus romaniotas que viviam naquela região desde o início da era cristã.

Senor Abravanel, o Silvio Santos, bisneto de Señor Abraham Abravanel (1800 – sem registro) e neto do homônimo Señor Abraham Abravanel (1850 – 1933), foi o primogênito dos seis filhos dos imigrantes otomanos Alberto Abravanel (1897 – 1976) e Rebecca Caro (1907 – 1989), que chegaram ao Brasil em 1924.

Sua mãe nasceu na região de Izmir (Esmirna), atualmente, Turquia. Seus irmãos foram nomeados Beatriz, Perla, Sara, Leon e Henrique.

Silvio Santos

Senor Abravanel nasceu em 1930, pouco mais de um século após a independência do Brasil, na travessa Bem-Te-Vi, da Vila Rui Barbosa, no bairro da Lapa, Rio de Janeiro, capital federal.

Judeu sefardista, diferentemente dos seus antepassados no Império Otomano, foi nomeado sem o acento no “n”, que, se houvesse, facilmente levaria à estranha significação original do seu nobre nome na língua portuguesa, “Senhor” Abravanel. Algo que poderia demandar indesejáveis explicações naquele período extremamente conturbado da Primeira República. A homenagem e o orgulho familiar estavam postos no nome do primogênito; todavia, balizado também pela trajetória da família na longa história de um povo perseguido.

Senor era chamado de Silvio por sua mãe. Talvez, tentando preservar algo da sonoridade original e, ao mesmo tempo, preparar propositalmente o que viria a ser o nome público do filho, em função dos riscos históricos sofridos por todos os judeus mundo afora, sobretudo naquele entreguerras.

Camelô aos 14 anos, começou vendendo plásticos para proteger títulos de eleitor, no final da ditadura Vargas e às vésperas da eleição do general Eurico Gaspar Dutra como presidente da república, em 1945. Ano do término da Segunda Guerra Mundial, da derrota, até então, do nazifascismo e da primeira eleição presidencial na qual as mulheres brasileiras puderam votar. Elas, que tiveram o acesso exclusivo, por décadas, aos auditórios dos seus programas.

Radialista, paraquedista do exército, vendedor, empresário, banqueiro, magnata da comunicação, apresentador, candidato à presidência da república. O que víamos nas telas, o carismático e talentoso Silvio Santos, o maior comunicador da história do Brasil, era somente a ponta de um imenso iceberg.

Senor Abravanel foi, antes de mais nada, um negociante excepcional. Arrisco escrever que naquele único Eu, as capacidades de observação e comunicação, estruturadas cognitivamente a partir da sua subjetivação familiar no centro do poder de um Brasil dos anos 1940 – 50, pavimentaram uma trajetória na qual reconhecer o seu próprio desejo nos outros, para ele, passou a ser muito mais fácil do que revelar os seus próprios, mais íntimos.

Apesar de se expor mais, conforme se aproximava dos 90 anos de idade, sobretudo nas redes virtuais das suas seis filhas, ele deu raríssimas entrevistas ao longo da vida.

Por isso, suponho que tal clivagem – do Senor, o Silvio – expressou uma demanda inconsciente, elaborada enquanto estratégia de uma vida particular protegida e blindada, contraposta por uma vida pública arrojada, voraz e de extrema exposição, na qual assumir determinados riscos, que para quase todos seriam demais, não significaria a possibilidade de uma frustração precipitada pelo medo, senão, somente, a possibilidade de um ganho.

Senhor Silvo Santos, o patrão

Em 1971, no período da renovação do seu contrato com a TV Globo, Silvio comprou 50% da TV Record. Roberto Marinho, então, condicionou a sua renovação à proibição da compra de concorrentes. Silvio Santos aceitou, desfez o negócio e renovou. Entretanto, ainda sob contrato, comprou parte da Record usando o nome de um amigo, TV da qual ele foi dono até 1989, quando ela foi comprada pelo bispo Edir Macedo.

Em 1975, Silvio ganhou, do ditador Geisel, a concessão para criar a TVS – TV Studios Silvio Santos. Em 1981, recebeu de outro ditador, o Figueiredo, a concessão de uma rede composta pelas extintas TV Tupi (São Paulo), a TV Marajoara (Belém do Pará), a TV Piratini (Porto Alegre) e a TV Continental (Rio de Janeiro). Assim, surgiu o Sistema Brasileiro de Televisões – SBT.

Negociações que demandaram quais promessas? Não é difícil presumir.

No início da “década perdida”, a pobreza avançava num regime ditatorial em frangalhos, atingindo 52,6 milhões de pessoas – 43% da população, em 1980. Enquanto isso, Silvio começava a eternizar o seu tema de abertura na alma de um país:

Agora é hora, de alegria / Vamos sorrir e cantar / Da vida não se leva nada / Vamos sorrir e cantar

Negociando o entretenimento e vendendo alegria em um país miserável, Silvio Santos criou um circo popular com exímia destreza onde faltava o pão. Estruturou o seu projeto de poder, ergueu o seu próprio império, tornou-se bilionário enquanto, segundo relatos, cultivava hábitos modestos em suas mansões. Extremamente influente nos bastidores do poder, sempre se manteve próximo à situação na política nacional, tal qual o seu ancestral Dom Isaac. Com uma diferença chave que, entendo, foi a sua primeira condição: ele e a sua família jamais precisaram fugir.

Em 1988, em uma das suas raríssimas entrevistas, à Folha de São Paulo, se descreveu como um “concessionário, um office boy de luxo do governo”. Completou: “Faço aquilo que posso para ajudar o país e respeito o presidente, qualquer que seja o regime”.

Em 1989, Silvio teve a sua candidatura à presidência do Brasil impedida a seis dias do 1º turno, por ter exercido sua concessão pública a menos de 6 meses do pleito. Além disso, o seu partido de aluguel, extinto após a eleição, não fez o número mínimo de convenções necessárias à candidatura. O obscuro PMB (Partido Municipalista Brasileiro) foi usado pelo PFL (atual DEM – Democratas). O herdeiro do ARENA – extinto partido da, então recém derrotada, ditadura militar, que concedeu as concessões ao Silvio e ao Roberto Marinho – não conseguia alavancar uma candidatura própria e “alugou” o PMB para lançar Silvio como candidato à presidência do país. Ele “roubava” votos principalmente de Fernando Collor, o então candidato da Rede Globo. Nos cenários da pesquisa Gallup às vésperas da votação, sem Silvio, Collor aparecia na liderança, com 27,5% das intenções de voto; com Silvio, Collor caía para o segundo lugar, com 18,6%, enquanto Silvio aparecia em primeiro, com 29%.

Silvio Santos jamais desafiou o poder e o status quo, como fez o departamento artístico da Rede Globo (o jornalismo, nunca), em muitos momentos da sua história. Antes, ele foi um defensor assíduo do poder constituído. O SBT nunca foi vanguardista, mas um espaço do caos e do improviso com os elementos do conservadorismo. Numa ditadura enfraquecida, caminhando para a democracia, “o patrão”, como gostava de ser chamado, impingiu um tom controlador e anárquico, reflexo do embate entre o Senor e o Silvio. Um tom divertido e popular que o integralizou em cada canto da sua obra máxima, o SBT. Como um déspota esclarecido no seu próprio reino, um patriarca ameaçador, mas querido por sua própria tribo, que marcou a vida de todos nós e desenhou uma estética indelével na memória coletiva nacional.

Carpe diem

Senor Abravanel deixou de fazer os seus programas sem alarde, em 2022. Morreu nesse shabbat – período entre o pôr-do-sol das sextas-feiras e o anoitecer dos sábados – de 17 de agosto de 2024, às 4h30. Poucos minutos antes da metade do período aproximado de 24h de descanso sagrado àqueles que professam a fé judaica.

Horas antes de um horrível Fluminense 0 x 0 Corinthians. O tricolor carioca, do Senor. O alvinegro paulista, do Silvio. Tá tudo bem. No final das contas, me parece mesmo é que eles empataram, só que com muito mais ação do que o jogo de futebol dessa noite. Talvez, num 4 a 4.

Senor Abravanel expressou à família o seu desejo íntimo de que os ritos envolvendo a sua despedida fossem discretos, sem qualquer cerimônia pública, câmeras, palcos ou holofotes. Afinal, da vida não se leva nada: fama, dinheiro, propriedades, concessões, poder. Nem mesmo a imortalidade do Silvio Santos.

Por isso, vamos todos comer, beber, sorrir e cantar.

Shabbat Shalom.

Onde está Wally? | A juventude transviada e o poder da citação

“…e ambos vieram de boas famílias”.

Uma prática muito comum nos colegiais e cursinhos, ao menos, antigamente, era aquela de mandar bilhetinhos para que o professor lesse. Essencialmente, em voz alta. Por mais que, eventualmente, chegassem também cantadas e brincadeiras não lidas.

Os bilhetes eram, geralmente, referentes a alguma tola brincadeira ou piada adolescente, própria a um nexo muito particular daquele grupo, turma ou geração, mas que serviam como pontos de alívio na extenuante obrigação educacional, conforme chegava o momento de escolher o futuro aos que tinham a sorte de estar ali.

Não me lembro de ter enviado bilhete algum, sequer uma vez. Talvez, esse seja um arrependimento a elaborar futuramente. Entretanto, guardo comigo alguns que presenciei. Melhor, vivi, enquanto estudante.

Como quando, em um inverno, numa sala de cursinho com uns cem alunos, vi um querido professor abrir um dos tantos bilhetes que recebeu e gargalhar alto, numa sala silenciosa, enquanto fazíamos exercícios. Todos os chamamentos adolescentes à atenção haviam sido sumariamente silenciados por ele, até então. Devidamente, em prol do bom andamento da matéria e dos interesses de todos, no longo prazo, professor e alunos.

Porém, incontido, ao reagir espontaneamente àquele bilhetinho, ele disse no microfone, subvertendo sua proposição e intento: “esse eu preciso ler”. Naquele momento, mais ou menos 200 olhos fugiram das apostilas e o miraram em excitação. O que viria?

Então, ele continuou com a brevidade humorística dos grandes chistes: “Onde está Wally?”.

Quando todos se entreolharam, naquele emaranhado de moletons em moles e fáceis tons pastéis e escuros de adolescentes que pretendiam sumir na coletividade, rapidamente, os olhos saltaram para um colega que trajava uma bela blusa de lã, com largas listras na horizontal, vermelhas e brancas.

Havia ali, entre nós, alguém único, que, diferente, se destacava naquele dia e ninguém tinha notado, salvo o autor do bilhete. E o rapaz, de quem não me lembro o nome, cuja blusa era o objeto do riso, ria conosco, ciente de aquilo não era uma violência, mas um congraçamento.

Só faltava o gorro para que ele fosse o próprio Wally.

Imagine o professor, de frente, ao ler e ver aquele anfiteatro lotado. O autor foi genial e o momento, às vésperas do vestibular, sensacional. Todos rimos muito e nos aliviamos em meio aos exercícios. Cada qual com suas questões objetivas e existenciais.

Lembro-me, também, de um bilhete endereçado a outro querido professor que, no caso, faz-se necessário ressaltar, era, sabidamente por todos, gay. Ao ler o bilhete, ele fez questão de relê-lo em voz alta, parando a aula: “Onde termina essa seta?”.

Naquele dia, ele tinha ido com uma camiseta da Dolce & Gabanna estampada que, nas costas, tinha somente o desenho de uma grande seta, apontada para baixo. Frequentemente, ele respondia às provocações homofóbicas citando suas roupas e perfumes, com bom humor. Depois de um tempo compreendi que tais respostas eram suas únicas defesas, diante das tantas violências que certamente sofreu. Sobretudo, em escolas da elite econômica do interior de São Paulo.

Sua ação imediata foi simples e eficaz. Como todos os professores com um pouco de experiência já intuíram a essa altura, ele dobrou o bilhete, devolveu ao aluno na primeira fileira que lhe entregou originalmente e disse: “volta para quem te passou”.

Então, em um silêncio sepulcral, o auditório acompanhou lentamente o retorno do bilhete ao autor, sentado lá em cima, no fundão, na diagonal oposta do anfiteatro. Outrora um bravo, popular, carismático e corajoso, desmascarado em sua covardia violenta, sua cara foi ao chão e, ainda que com certa distância, pude notar suas bochechas rosas tremerem levemente.

A voz do professor ecoou nas caixas do anfiteatro: “Em primeiro lugar, essa é uma camisa Dolce & Gabanna de muito bom gosto, coisa que o senhor e, provavelmente, a sua família, não têm. E não deve ser por falta de dinheiro. Em segundo lugar, e o senhor um dia vai descobrir, cada um goza por onde sente tesão, e isso não é da conta de ninguém. Mas o senhor, provavelmente virgem, ainda não descobriu isso”.

A sala veio abaixo. Ao menos que eu me lembre, essa foi uma das ocasiões em que mais ri em minha vida. Todos nós. Risos enquanto respostas. Cada qual com as suas. Nesse dia não houve um congraçamento total, porque somente uma pessoa não deu risada: o autor do bilhete. Até hoje me pergunto se ele aprendeu a lição.

Mais de um quarto de século depois, pautando o universo das redes sociais virtuais, enchendo o saco com suas insignificâncias adolescentes no real e necessário debate público de adultos, desestabilizando, manipulando, derrubando, elegendo governos mundo afora e, consequentemente, piorando a vida de todo mundo, estão os piores “meninos do fundão”. Geralmente, os que menos estudaram e que faziam as brincadeiras mais sem graça pra chamar a atenção de todos. Atraindo cliques com postagens estridentes, cheias de manipulações, com gritos fraudulentos, apelativos, sem fontes ou, ainda, em um anonimato covarde.

Porém, agora, muito além do humor que ri dos reais opressores, daquele de congraçamento, ou mesmo daquele reacionário, dito “politicamente incorreto”, a juventude transviada contemporânea, guiada por velhacos, defende os opressores, dissemina distorções, negacionismos, mentiras e perpetra crimes diariamente, servindo ao velho fascismo que quer achar o Wally para matá-lo com as setas que usam como lanças.

Você, jovem ou velho, quando se deparar com algum texto ou vídeo que soe uma informação, algo que você não sabia, ainda que elementar, travestida de opinião ou de pergunta, busque o autor da citação, a fonte fidedigna daquele texto, daquela ideia ou raciocínio apresentado. De onde veio aquilo, de fato, e qual é a intenção do autor real, que, na imensa maioria das vezes não é a mesma daquele que compartilhou com você. Ainda, quem orientou aquela disseminação artificialmente? Por quê?

Por sua vez, quando você se deparar com um desinformado por ocasião ou um neofascista assumido que saiba, minimamente, dialogar, aprofunde a conversa, o argumento. Peça para ele citar suas fontes, elaborar o seu raciocínio. Coloque a prova na mesa. Mande, educadamente, ele voltar o bilhete e acompanhe até onde ele vai.

Com muita sorte ele chegará até o fundão da internet, todavia, o conteúdo não passará da página dois. Ao menos aos que se importam não só consigo, mas com o restante da turma, com os professores e todos os funcionários do colégio.

Palestina, Israel, antissemitismo, neonazismo e Brasil

À luz dos fatos – Israel, antissemitismo e neonazismo

Um judeu não é, necessariamente, israelense. Um israelense não é, necessariamente, judeu. Um judeu não é, necessariamente, sionista. Um israelense não é, necessariamente, sionista. Um sionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, um antissemita. Judeus, israelenses e árabes não são, necessariamente, religiosos. As combinações são múltiplas, porque, como disse Hannah Arendt, quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra. Àqueles que não toleram a pluralidade, os chamamos intolerantes. Quando os intolerantes desumanizam o outro em sua condição, os chamamos fascistas. Um intolerante não é, necessariamente, um antissemita. Nem um fascista é, necessariamente, antissemita.

Todavia, o fascismo e o antissemitismo são pressupostos do neonazismo. Um adendo fundamental: apesar do termo semita no imaginário popular referir-se somente aos judeus, ele é relativo ao grupo étnico e linguístico ao qual se atribui Sem como ancestral, um personagem do livro Gênesis, filho de Noé. Portanto, segundo o Antigo Testamento, os povos semitas são os hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes; e antissemita é aquele cujo ódio, étnico, direciona-se contra os membros ou os descendentes desses povos. Assim, sem contradição mítica, histórica e lógica alguma, mas sempre nutrido de ódio direcionado a um semita que ele desumaniza, um outro semita pode ser, também, um antissemita. Um antissemita é um neonazista quando inspira-se na ideologia e estética nazista, cultuando os seus símbolos e propagando o seu discurso, ainda que nas sombras dos porões e da deep-web. Quando ele externaliza o seu ódio no campo simbólico, sociocultural, organizando-se politicamente, vocalizando e expressando a sua ideologia e empenhando os seus esforços físicos e mentais em práticas e ações cujo objetivo final pressupõe, enquanto projeto político, exterminar a existência de um outro em razão da sua origem semita, mas não somente. Um neonazista, muito provavelmente, também defenderá o extermínio de outros grupos étnicos, identitários, políticos e/ou econômicos, como ciganos, pobres, gays, negros, trans, socialistas ou comunistas.

Criticar o Estado de Israel não é desejar a sua abolição. Defender a constituição do Estado da Palestina não é antissemitismo. Defender um único Estado, partilhado igualmente e sob as mesmas leis para árabes e judeus não é antissemitismo. Criticar o Estado de Israel não é antissemitismo, porque um Estado é uma organização político-administrativa governada por uma composição política, submetido a uma constituição, a leis, tratados, acordos e organismos internacionais que desautorizam expressamente quaisquer medidas que promovam o higienismo visando a uma supremacia étnica em seu território. São vários os casos, ao longo da história, dos grupos e movimentos que tentaram fazê-lo. O mais conhecido, em função do essencial trabalho de preservação da memória por parte das entidades judaicas, foi o nazismo, que, vale ressaltar na era da desinformação, foi um movimento ideológico e político de extrema direita.

Por fim, um Estado moderno não confunde-se totalmente e somente com um grupo étnico. Sigmund Freud, que sofreu muito com o antissemitismo europeu, um dos mais brilhantes teóricos da humanidade e que nos legou a psicanálise, talvez dissesse que seria prudente aquele que compreende toda e qualquer crítica a Israel enquanto uma manifestação antissemita, antes de externalizar a sua crítica ou ódio por aquele que ele supõe ser antissemita, investigar em si aquilo que, talvez, o seu próprio Eu invista no outro. A começar pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que já afirmou que Hitler não tinha intenção de matar judeus e teria sido convencido por um ex-líder islâmico de Jerusalém a executá-los, relativizando o papel do nazismo no Holocausto e revelando, há anos, aquilo que se apresenta agora como um projeto antissemita e neonazista de extermínio do povo árabe palestino.

O governo de Israel tem ministros neonazistas. Isso realmente lembra a Alemanha em 1933.

Quem disse a frase acima ao jornal israelense Haaretz, há 1 ano, foi Daniel Blatman, historiador judeu e israelense que obteve um Ph.D., summa cum laude (a maior distinção em uma titulação acadêmica), enquanto foi, ao mesmo tempo, professor sênior de Judaísmo Contemporâneo pelo Instituto de Judaísmo Contemporâneo da Universidade Hebraica de Jerusalém e descrito como um acadêmico excepcional pelo Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Manifestações – Brasil e Israel

No dia 18 de fevereiro de 2024, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, após participar da reunião da cúpula da União Africana em Adis Abeba, Etiópia, e reiterar a repulsa dele e do Estado brasileiro aos atos de terrorismo do Hamas, bem como ao genocídio em curso na Faixa de Gaza, disse em uma entrevista:

O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.

Lula respondeu a uma pergunta em uma entrevista, portanto, de improviso, demonstrando consternação diante de algo que é excepcional e estarrecedor, não convencional e horrível. Entretanto, apesar do improviso, não há qualquer equívoco fático nessa afirmação.

A fala gerou uma repercussão imediata na conjuntura interna. Sobretudo, por parte de uma ampla oposição orientada por extremistas de direita que pouco têm a dizer nos últimos meses, por estarem às voltas com inúmeras investigações sobre corrupção, omissão genocida na pandemia, crimes variados e a comprovada tentativa de Golpe de Estado. A indignação veio em uníssono por parte de algumas entidades judaicas que não representam a pluralidade da comunidade judaica brasileira e mundial, da imprensa, que aderiu imediata e acriticamente ao discurso, relembrando os seus tempos de Lava Jato, e por adeptos do bolsonarismo, enquanto expressão relevante do neofascismo brasileiro.

Jair Bolsonaro, interlocutor de neonazistas brasileiros e apoiado por eles, como demonstrou minha saudosa amiga Adriana Dias. O aliado dele, Roberto Jefferson que, além de receber a Polícia Federal a tiros, também abriu as portas do seu partido a neointegralistas. Bolsonaro que recebeu, com um largo sorriso no rosto, entusiasmados neonazistas alemães em seu gabinete, durante o exercício do seu cargo, enquanto chefe do Estado brasileiro. Aquele que adquiriu, por dezenas de milhões de reais, e utilizou um software israelense de espionagem e monitoramento de civis, desafetos, opositores e aliados.

Repercussão, portanto, para instrumentalizar os que restam bolsonaristas. Muitos dos quais usaram amplamente o símbolo máximo de Israel, a sua bandeira, em seus avatares durante as últimas duas campanhas presidenciais no Brasil, quando, também, bandeiras físicas de Israel disputavam espaços, em manifestações ilegais nas ruas do Brasil, com cartazes que pediam intervenção militar, fechamento do STF e o extermínio de opositores. Repercussão artificial, para mobilizar aqueles que ainda seguem o ex-presidente, que, mais do que um aliado, contou e conta com a ajuda de Benjamin Netanyahu. Instrumentalização daqueles que ainda são guiados por um grupo político com aspirações paramilitares, e que contam com um projeto político fascista e neonazista. Grupo que já havia agendado uma manifestação para o próximo domingo, 25 de fevereiro, para explicar aos seus adeptos aquilo que se recusam a explicar em entrevistas e depoimentos à justiça, apesar das delações já registradas e inúmeras provas colhidas. Posteriormente à reação da acuada extrema direita brasileira, a fala foi amplificada, hiperdimensionada e deturpada, numa resposta desmedida e jamais vista, pelo corpo diplomático do governo Netanyahu.

Ao contrário da mentira que a isolada diplomacia israelense difundiu de maneira tosca, rasa, grosseira e escatológica nas redes sociais virtuais, Lula não negou o Holocausto e não foi antissemita. Ele afirmou o horror que foi o Holocausto e a sua excepcionalidade na contemporaneidade. Além, ele traçou, sim, um paralelo histórico pertinente, com fins retóricos, entre a ação deliberada de Hitler e do partido nazista, ao arrepio da comunidade internacional, de exterminar judeus e a excepcionalidade da ação deliberada de Netanyahu e do seu grupo na Faixa de Gaza, ao arrepio de acordos atuais e aqueles jamais cumpridos, que remontam à origem da ONU e à origem do próprio Estado israelense.

A esta altura, há uma profusão de comprovações de crimes de guerra e acusações gravíssimas de genocídio, tantas quantas as provas dos crimes do bolsonarismo, que, entre outros, mataram centenas de milhares de pessoas durante a pandemia. Por isso, grande parte da comunidade internacional apoiou a fala de Lula e a imensa maioria das manifestações nas redes sociais virtuais, em inglês, exaltaram o presidente. As manifestações em português, nas primeiras horas, foram massivamente críticas a Lula e comprovadamente não foram orgânicas. Ou seja, foram orquestradas por opositores e impulsionadas por robôs, em um modus operandi idêntico ao que alçou o fascismo brasileiro ao poder, com a disseminação de distorções, mentiras e ódio. No segundo dia, a tendência inverteu-se completamente, fazendo com que a imprensa brasileira recuasse de toda a sua assertividade mecânica, acrítica e a serviço de um projeto político internacional fascista e neonazista.

A diplomacia brasileira entrou em ação, respondendo duramente ao disparate da atualmente ridicularizada diplomacia israelense. Diplomatas são os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra.

Manifestações – Estados Unidos e Israel

Ontem, 20 de fevereiro de 2024, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA vetaram mais uma vez uma proposta de cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.

Estamos a poucos dias do início do Ramadã, prazo limite dado por Israel para a libertação dos reféns feitos pelo Hamas ou para o início de uma ofensiva terrestre, coordenada com os EUA e o Egito, em Rafah, sul de Gaza. Lá estão 1,5 milhão de sobreviventes palestinos deslocados e encurralados pelas fronteiras estabelecidas ilegalmente por Israel. A esta altura, o veto já não é revelador em sua recorrência cega, mas persiste estarrecedor diante da possibilidade concreta de que a intensificação do genocídio – que não é guerra, em função da avassaladora assimetria de forças – possa levar a uma escalada ainda mais catastrófica, arrastando o mundo para uma guerra que pode envolver países africanos, todo o oriente médio e as potências mundiais.

As palavras finais lidas pela embaixadora estadunidense Linda Thomas-Greenfield, de um discurso elaborado previamente, foram:

Dito isto, pretendemos fazê-lo da forma correta, para que possamos criar as condições adequadas para um futuro mais seguro e pacífico. E continuaremos a empenhar-nos ativamente no árduo trabalho de diplomacia direta no terreno até chegarmos a uma solução final.

Após um breve discurso, escrito por um grupo de diplomatas, com o efeito prático de vetar o cessar-fogo imediato e autorizar a continuação de um genocídio, uma limpeza étnica que já conta com 30 mil mortos, entre os quais 10 mil mulheres e crianças, a embaixadora dos EUA termina dizendo que o seu país está se empenhando ativamente no trabalho de encontrar uma ‘solução final’? Essa é a expressão mais conhecida da gramática do ódio nazista e que sintetiza o horror levado à cabo pela ascensão do partido nazista, descrito de forma primorosa pela filósofa Hanah Arendt.

No Brasil não houve repercussão até agora. Netanyahu e a diplomacia israelense também permanecem em silêncio.

Enquanto diplomatas continuam sendo os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra, centenas de milhares de feridos e quase 2 milhões de pessoas estão privadas de remédios, água, comida, hospitais, casas e energia elétrica. Condições que um experiente médico militar francês, que atuou em diversas guerras e retornou após três semanas em Gaza, descreveu ao jornal Le Figaro:

Normalmente, os civis podem fugir dos combates. Lá é impossível. A população não tem onde se proteger. Centenas de milhares de pessoas vagam pelas ruas em busca de água e comida. (…) Nunca vi nada comparado à Gaza. (…) Acho que (a situação) pode ser semelhante à do Gueto de Varsóvia.

O jornal completou, explicando que o Gueto de Varsóvia foi onde 380 mil judeus foram amontoados pelos nazistas desde 1940, em condições de vida desumanas.