Governos Trump e Netanyahu levam o mundo ao cabo da Tormenta

Nas últimas 48 horas – no momento em que escrevo, 12 a 14 de junho de 2025 – adentramos no ponto de inflexão que explicita o movimento de queda do primeiro império verdadeiramente global da história. Conforme o esperado, ele, enquanto instrumento de determinados grupos econômicos, se lança ao mar enquanto atira para todos os lados e com todas as suas armas. Os acontecimentos que foram eclodidos nos últimos dois dias são o limiar de um processo racional de trucagem e avanço geopolítico agressivo, construído ao longo de 18 anos pelas mais poderosas forças político-econômicas ocidentais.

Abastecidos com os achados de Gastón Nievas e Thomas Piketty, em um novo banco de dados seminal que eles criaram e que reconstrói sistematicamente os fluxos de comércio global e a balança de pagamentos do mundo inteiro ao longo de mais de dois séculos (1800-2025), notamos de forma cristalina como as quase quatro décadas de desregulação neoliberal dos mercados funcionaram como drenos de riquezas que concentraram a renda global nas mãos da elite do Atlântico Norte em níveis nunca vistos. Assim, parece razoável inferirmos que tais grupos econômicos não aceitariam pacificamente a perda natural da hegemonia do dólar enquanto instrumento de controle que espolia a força de trabalho no restante do planeta.

Perda que viria e, suponho, invariavelmente virá. A questão que se coloca é: qual será o custo total imposto ao resto do mundo por tais forças?

Começamos a ver com maior nitidez agora. Os desdobramentos dos fatos ocorridos nas últimas horas já estão impactando a vida de absolutamente todas as pessoas do planeta, atentem-se elas ou não.

Nas palavras do prof. Renato Janine Ribeiro, o que os dados (do banco criado por Nievas e Piketty) mostram é o que todos no Sul Global sabiam instintivamente, mas que foi contrariado pela narrativa econômica dominante: a riqueza do Ocidente foi construída não por meio de produtividade superior ou “livre comércio”, mas por meio de extração sistemática, transferências forçadas e pilhagem colonial em uma escala que supera qualquer coisa previamente quantificada. Ele complementa, corretamente: O que também é extraordinário é que esse sistema de extração continua até hoje.

Pois bem, nas últimas horas, enquanto se multiplicam os protestos contra as medidas fascistas e ditatoriais do governo estadunidense contra a sua própria população, um senador foi expulso, jogado no chão e algemado após fazer uma pergunta para a secretária de Interior de Donald Trump em uma coletiva. Na última madrugada, em Minessota, o senador John Hoffman foi baleado múltiplas vezes juntamente com sua mulher na casa deles. Ambos passaram por cirurgia e estão internados. Poucos minutos depois, a deputada Melissa Hortman e o seu marido foram mortos a tiros em casa, também em Minessota.

O suspeito ainda não foi preso. Ele estava com uniforme de polícia e com um veículo equipado com luzes, que lembram viaturas policiais. Ele tem 57 anos, trabalha em uma empresa de segurança chamada Praetorian Guard Security e recebeu treinamento militar. Curiosidade: a aludida Guarda Pretoriana era uma unidade militar de elite no Império Romano, responsável pela proteção do imperador e de sua família.

Protestos estavam marcados para esse sábado na região. Hoje, 14 de junho, também é celebrado o Dia da Bandeira dos Estados Unidos e é aniversário de Trump. Desnecessário dizer que os três políticos, alvos do trumpismo, são democratas.

Ainda nessas poucas horas, de forma claramente articulada, Trump foi beneficiado pelo deslocamento das manchetes internacionais para os eventos ligados à outra frente do levante da internacional fascista, no Oriente Médio.

Enquanto o comandante do Titanic avança em seu projeto ditatorial que, ao que tudo indica, perpassa pela construção de uma guerra civil no país para que concentre poderes absolutos, o sanguinário governo israelense atacou o Irã, em uma manobra diversionista alinhada com o governo estadunidense. Este último, supostamente, vinha negociando com o antigo império persa para reduzir as tensões no Oriente Médio, após o início da limpeza étnica dentro das fronteiras ilegais de Israel, com o genocídio no território-gueto de Gaza.

Faixa de Gaza retratada de forma asquerosa por Trump como uma possível área para resorts de luxo destinados à elite global, contudo, de fato, terreno chave para o Atlântico Norte.

Em setembro de 2023 – um mês antes dos ataques do Hamas com caminhões, picapes, motocicletas, escavadeiras, lanchas e parapentes motorizados, facilitados pelo impopular e pressionado governo de Netanyahu – foi anunciado um megaprojeto de linhas ferroviárias, portuárias e energéticas que pretende ser uma alternativa à Nova Rota da Seda chinesa (Cinturão Econômico da Rota da Seda), denominado Corredor Econômico Índia – Oriente Médio – Europa (IMEC). Proposto por Estados Unidos, União Europeia, Índia e Arábia Saudita, participaram também de sua elaboração Jordânia e Israel. Este último não mantém relações diplomáticas com a Arábia Saudita, que já afirmou que não estabelecerá laços com Israel sem a criação de um Estado palestino. Acontece que o projeto do IMEC traça uma rota que perpassa por quase todo o território saudita até chegar ao porto de Haifa, no litoral israelense, ao norte da Faixa de Gaza e da Cisjordânia.

Projeto do Corredor Econômico Índia – Oriente Médio – Europa (IMEC).

Aqueles que analisam as intenções e propõem argumentações objetivas partindo das diferenças étnicas e religiosas entre os povos semitas da região erram feio. Traindo o legado de Ben-Gurion, críticas à parte, os neonazistas israelenses – sionistas da extrema-direita instalados no governo Natanyahu – não estariam em tal posição de poder internamente (após um golpe no judiciário) não fosse a sustentação do império e a complacência europeia, que vê neles a sobrevida dos seus papéis de crupiês dos grupos econômicos supramencionados, no grande cassino de cartas marcadas que é a economia mundial.

Conforme o esperado, na acelerada e imagética era digital desregulada – era das guerras híbridas -, a queda do império não seria gradual, muito menos ao longo de séculos, como foram as de outros impérios, sobretudo o romano. Eis a quantidade do calor dissipado pelo desengate geopolítico abrupto promovido pelos últimos acontecimentos. Esperado momento quando, no entanto, os dados são lançados para além do campo de visão dos meros mortais e das demandas dos mercados, sejam eles partes interessadas ou não.

Na última semana, em voto magistral pela regulação das redes sociais virtuais no Brasil, o ministro Flávio Dino indagou, no STF, se gostaríamos de viajar de avião caso não houvesse a regulação do setor. Pois bem, complemento: em relação às redes virtuais, objetivamente, a ausência de regulamentação é muito pior, porque elas em breve alcançarão a totalidade da população e têm a capacidade de remodelar a cognição, o hábito e o discurso coletivo segundo os seus interesses financeiros e políticos, consoantes aos grupos hegemônicos. Jamais vimos tamanha concentração do poder de alienar as massas.

Enquanto a política sucumbe à falsidade da antipolítica (fabricada industrialmente na sociedade do espetáculo a partir da primavera árabe, do 2013 brasileiro e do Maidan ucraniano), influenciadores despreparados (estridentes que viralizam) que viram deputados, bebês reborn, a série do momento e dancinhas de TikTok tonificam e instrumentalizam massas de sujeitos que se percebem cada vez mais desenraizados e desesperados para pertencerem a uma trajetória coletiva.

Em um ambiente onde muitos gritam em busca de atenção e quase ninguém escuta o outro e a si próprio, bombas e imagens de um terror real misturam-se a trends de unicórnios como numa tourada algorítmica. Dinâmicas que reduzem o campo discursivo a memes, achatam complexidades, planificam valores coletivos e hiperestimulam a regressividade e um frágil narcisismo em milhões de pessoas. Estas, por sua vez viciadas (sim, esse é o nome) e intimamente enredadas no mal-estar contemporâneo, respondem elegendo facínoras construídos sob medida que – supunham tantos doutos nas torres acadêmicas – haviam sido enterrados com o fim da Segunda Guerra Mundial. Grosso modo, assim opera a arregimentação política da pulsão de morte por parte de setores econômicos interessados na sua instrumentalização.

Cabo da Tormenta ou Cabo da Boa Esperança, localizado a sul da Cidade do Cabo e a oeste da baía Falsa, na província do Cabo Ocidental, na África do Sul.

O mundo entrou, em velocidade de cruzeiro, na área do cabo da Boa Esperança, que, necessário relembrar, historicamente é conhecido como o cabo da Tormenta. Um salto no desconhecido que evoca nos espíritos inquietos duas questões: como e se completaremos, enquanto espécie, o périplo rumo a um novo horizonte.

Já estamos no ponto do qual não há mais retorno – ou no qual é derrotada a fantasia de que ele seria possível – nos parâmetros civilizatórios. Momento construído desde os primeiros dias subsequentes à quebra do subprime (títulos podres) em 2007, dos maiores bancos dos EU e do mundo e, consequentemente, da economia global em 2008. Desde então, o neoliberalismo se reorganizou naquilo que chamo de ultraliberalismo, abandonando sua hipocrisia anterior, quando seus defensores diziam que suas bases poderiam ser inclusivas. Ele abraçou explicitamente o autoritarismo violento e excludente que impõe à força os interesses do grande capital especulativo aos Estados nacionais.

No entanto, amplos setores das massas, cada vez mais marginalizados, precarizados em seus trabalhos, alienados e instrumentalizados trabalham precisamente contra os limites estreitos que restam à política e contra as possibilidades de transformação através da esfera pública; paradoxalmente (desde que não compreendamos o papel da pulsão de morte nesse processo), o único espaço social possível à sua autonomia e liberdade.

A tormenta chegou.

Entretanto, apesar da proximidade, o Brasil não é o Titanic.

São necessárias altivez, brio e coragem coletiva para abandonar, na máxima medida do possível, as subserviências cultural, econômica, política e jornalística aos EU, para que não sejamos dragados pelo vácuo que o seu naufrágio, enquanto império, poderá provocar nas Américas.

A regulação das plataformas digitais e a prisão da cúpula golpista no Brasil, vexatoriamente alinhada ao trumpismo e à internacional fascista, formam uma boa esperança que não deve, contudo, desmobilizar aqueles que incondicionalmente cerram fileiras de uma perspectiva humanista, democrática e inclusiva. Estes precisam (finalmente) entender que daqui por diante, para que sobrevivam, é preciso (infelizmente para tantos, compreensivamente) que se posicionem – não sobre tudo e todos, porque esse é o desserviço propiciado por tantos influenciadores – mas enquanto um enfrentamento às tantas violências oriundas do campo extremista. É preciso conversar, falar e, sobretudo, escutar.

Entre mísseis físicos e bombas semióticas nas redes, o silêncio é a morte. Ao exercício da cidadania e da defesa dos princípios fundamentais da Constituição Federal não basta mais somente o voto.

Maus: a rataria na trama golpista e a Noite dos Cristais

Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, atenho-me à premissa de que ele não pode abandonar as meta-representações relativas ao tratamento, e me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico. (Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos)

A associação livre é uma técnica fundamental da psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud. Ela consiste em pedir ao paciente que diga tudo o que vier à mente, sem censura ou julgamento, independentemente do quão irrelevante, desconfortável ou incoerente possa parecer aquele conteúdo. O seu objetivo é permitir que conteúdos inconscientes do paciente, normalmente reprimidos, venham à tona. Devido a esse objetivo – e não a uma lógica de “agradar o cliente” – é que todos os psicanalistas sabem a importância terapêutica de tentarem fazer dos seus consultórios espaços onde os pacientes sintam-se confortáveis e seguros fisicamente, para falarem livremente do seu universo mais íntimo e, muitas vezes, secreto.

Na era das novas tecnologias, o que não faltam são diálogos íntimos que vêm à luz do debate público devido aos mais variados interesses. Muitas vezes descontextualizados, outras tantas, não. A grande audiência gerada por esse tipo de voyeurismo contemporâneo está no cerne do debate sobre a diluição da fronteira entre o público e o privado e sobre a monetização facilitada aos conteúdos pretensamente escandalosos, mas fabricados por aspirantes à fama.

Esse não é o caso de diálogos do universo da política anexados às investigações policiais e da justiça. Analisados em um determinado contexto de crimes, tais conteúdos podem revelar como um discurso público pode mascarar verdadeiras intenções e secretos fins políticos.

O que se segue, portanto, é um breve comentário sociopolítico que amplia o conceito de associação livre com a intenção de extrair algo além daquilo que é explícito. Para tanto, utilizo dois pequenos trechos de falas que circulavam em grupo de militares de alta patente que, de acordo com a investigação da Polícia Federal, preparavam uma trama golpista após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Ao assistirmos a reportagem do Fantástico que revelou alguns áudios dos diálogos do planejamento de um golpe de Estado – que envolveria os assassinatos do presidente da república e o seu vice, recém eleitos, um ministro do STF e, no mínimo, mais uma figura pública (ainda desconhecida) -, uma frase dita pelo general Mário Fernandes a um assessor de Jair Bolsonaro chama muito a atenção, e possivelmente revela muito mais do que o óbvio:

Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, sem quebrar cristais.

O vocativo “caveira”, revelador da estética da necropolítica em curso naquele momento, provavelmente refere-se ao título concedido ao interlocutor, indicando que ele concluiu o Curso de Operações Especiais conduzido pelas Polícias Militares ou Forças Armadas do Brasil. Isso não é propriamente uma novidade, dado o aparelhamento do Estado durante o governo Bolsonaro por militares e herdeiros institucionais do general Sylvio Frota. Já a expressão “sem quebrar ovos” é bastante popular no Brasil, derivada de “não se faz omeletes sem quebrar ovos”. No entanto, não podemos dizer o mesmo da expressão “sem quebrar cristais”, da qual não se encontra registro de dito de origem popular.

Em função de todo um contexto – não só da fala do general, mas da ascensão do neofascismo brasileiro na última década –  tal associação metafórica ‘fora de lugar’ talvez revele um profundo arranjo semântico entre “quebrar cristais” e os objetivos revelados pelas investigações sobre o grupo de onde foi extraído o diálogo e a fala do general. Um arranjo que remete qualquer estudioso ou observador atento a um episódio certamente bastante conhecido pelos militares brasileiros – talvez, admirado por alguns deles -, por todos os historiadores e judeus do mundo: A Noite dos Cristais (Kristallnacht).

Evidentemente, os fatos históricos são bastante distintos e incomparáveis. O Brasil atual não é a Alemanha nazista.

No entanto, se precisamos rememorar e estudar a histórica aproximação entre o fascismo e o nazismo, o mesmo se aplica em relação ao neofascismo e o neonazismo na contemporaneidade.

A Noite dos Cristais e os cristais brasileiros

A Noite dos Cristais, ocorrida entre 9 e 10 de novembro de 1938, marcou um ponto de inflexão na perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Essa onda de violência, que se estendeu pela Alemanha, Áustria e regiões da Tchecoslováquia ocupadas, resultou no saque e na destruição de sinagogas, lojas, residências judaicas e na profanação de cemitérios judaicos, além da morte de 91 judeus e a prisão de aproximadamente 30 mil homens judeus, que foram enviados a campos de concentração. O nome se deve aos cacos de vidro que cobriram as ruas após o massacre.

Sinagoga em chamas após a Noite dos Cristais. Berlim, 1938.

O pretexto para essa onda de violência foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por Herschel Grynszpan, um jovem judeu polonês de 17 anos, cuja família havia sido recentemente deportada, entre tantos outros, da Alemanha para a Polônia. A Polônia se recusou a receber os deportados, que passaram a viver em um campo de refugiados próximo à cidade de Zbaszyn, na região fronteiriça entre os dois países.

Em meio ao desespero, Grynszpan, que havia fugido da Alemanha e residia ilegalmente em Paris, dirigiu-se à embaixada alemã na cidade. Lá, aparentemente movido pela intenção de vingar as condições adversas enfrentadas por sua família, disparou contra o funcionário diplomático que o atendia. Vom Rath, o diplomata atingido, morreu em 9 de novembro de 1938, dois dias após o ataque. Coincidentemente, essa data marcava o “aniversário” do Putsch da Cervejaria (Beer Hall Putsch), a tentativa de golpe para derrubar o governo do Estado da Baviera, organizada por Adolf Hitler e o Partido Nazista, nos dias 8 e 9 de novembro de 1923. Aquela tentativa fracassou, mas tornou-se um marco significativo no calendário nazista.

O regime nazista utilizou esse incidente como justificativa para incitar ataques coordenados contra a comunidade judaica, apresentando-os como manifestações espontâneas da população. Forjar uma imagem de “espontaneidade das massas” é uma estratégia para buscar legitimar e expandir os objetivos de ruptura de pactos civilizatórios por parte de uma minoria violenta. Assim também tem sido feito no contexto político brasileiro contemporâneo, com o seu ápice, até aqui, nos quatro anos do mandato de Jair Bolsonaro, quando foram explicitadas inúmeras vezes as intenções golpistas, os ataques às instituições, a incitação ao ódio, à violência armada e a desumanização de opositores políticos, minorias e grupos identitários.

Durante a Noite dos Cristais, as forças policiais e os bombeiros receberam ordens explícitas para não interferirem nos crimes e incêndios que consumiam as sinagogas e estabelecimentos judaicos, exceto para evitar que as chamas se espalhassem para propriedades “arianas”.

Prédio do STF depredado após atos golpistas do dia 8 de janeiro. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF.

No Brasil atual, lembremos que a Polícia Federal concluiu que houve falhas e indícios de atuação criminosa da cúpula da segurança pública do Distrito Federal nos ataques de 8 de janeiro. Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, a PF apontou que houve “falhas evidentes” do ex-secretário Anderson Torres e cita o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB).

Trecho do relatório da PF: Conclui-se que as falhas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) no enfrentamento das manifestações de 08/01/2023 são evidentes, especialmente pela ausência inesperada de seu principal líder, ANDERSON GUSTAVO TORRES, em um momento de extrema relevância aliado a falta de ações coordenadas e a difusão restrita de informações cruciais contidas no Relatório de Inteligência no 06/2023 foram fatores decisivos que contribuíram diretamente para a ineficiência da resposta das forças de segurança.

Relembre-se, ainda, o monitoramento ilegal de pessoas, opositores, autoridades e aliados, por parte da ABIN paralela no governo Bolsonaro. O gesto supremacista feito por Filipe Martins, um dos 37 indiciados na última semana – junto ao general Mário Fernandes – e uma das figuras mais próximas do ex-presidente e seu assessor especial para assuntos internacionais. Registre-se, antes, a conhecida interlocução de Bolsonaro com grupos neonazistas. Mais, o fato de que ele recebeu aos risos e oficialmente, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler e membro do partido Alternativa para a Alemanha, sigla neonazista alemã. Além do fato de que após a ascensão do bolsonarismo, o número de células neonazistas no país cresceu de 75 para 530. Por fim, o deplorável episódio no qual o secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em rede nacional fez um discurso esteticamente semelhante e com trechos idênticos a um discurso do ministro de Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo.

Como notamos, a aproximação do neofascismo com os ideais neonazistas não é um mero acaso.

Maus: a rataria bolsonarista

Maus é uma aclamada graphic novel que combina memórias do Holocausto com uma narrativa autobiográfica. Dividida em dois volumes – Maus: A Survivor’s Tale – My Father Bleeds History (1986) e Maus: And Here My Troubles Began (1991) –, a obra apresenta a história de Vladek Spiegelman, judeu polonês sobrevivente do Holocausto, contada por seu filho, o sueco Art Spiegelman.

O título Maus é a palavra alemã para “rato”, foneticamente semelhante ao inglês mouse. Ele carrega um significado simbólico central para a obra de Art Spiegelman, pois reflete a metáfora visual e narrativa utilizada ao longo da graphic novel. Na história, os judeus são representados como ratos, enquanto os nazistas são retratados como gatos. Essa escolha remete diretamente à propaganda nazista que desumanizava os judeus, comparando-os a pragas.

Essa poderosa imagem dialoga com a propaganda antissemita usada pelos nazistas, que retratavam os judeus como seres inferiores e ameaçadores à “pureza” racial ariana. Spiegelman utiliza essa representação para desconstruir o discurso nazista e evidenciar o horror, a violência e a irracionalidade do preconceito e do antissemitismo.

Enquanto isso, nos poucos áudios revelados, até aqui, dos indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, ouvimos um oficial dizer:

O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comité. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria. Tem que debater o que vai ser feito.

Abaixo da ética e sem sutileza alguma, o discurso moral do grupo que pretendia promover o fechamento de um regime ditatorial no Brasil revela, na intimidade segura, a imoralidade das suas intenções políticas, própria dos canalhas. No jargão militar, “rataria” refere-se àqueles que agem escondidos, sem se importarem com a legalidade, com a linha de comando e a institucionalidade das próprias FFAA.

Em português, o adjetivo ‘maus’ qualifica aqueles que se distinguem pelo caráter ruim, moralmente condenável, aqueles dados a fazer maldades, que contradizem a justiça, o dever, os que são contrários à lógica, às regras; os impróprios, os incorretos.

A despeito de quaisquer possíveis análises dos seus inconscientes, tais diálogos íntimos e, por isso, mais reveladores, comprovam o que já se sabe há anos: a rataria bolsonarista tem plena consciência do que é, disse e fez.

Que lhes reste a justiça, sem anistia. Terrorismo de Estado, nunca mais!

 


Saiba mais sobre a Noite dos Cristais no Holocaust Encyclopedia: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht

 

 

Entre espelhos e labirintos | O narcisismo das pequenas diferenças e o medo ao pequeno número no globalismo

No texto O sujeito entrópico – Um ensaio sobre redes sociais, estrutura, reconhecimento e consumismo, publicado no livro A nova era tecnológica: redes sociais, realidade virtual, e inteligência artificial: um olhar psicanalítico e social, propus uma análise multidisciplinar e sucinta sobre a contemporaneidade visando àquilo que conceituei como as redes sociais virtuais, as distinguindo e articulando com o conceito de redes sociais. No ensaio, evidentemente citei diversos autores. Agora, contados mais de quatro anos da sua escrita, aqui no blogue – cuja proposta é a aproximação do leitor interessado com algumas análises a partir de construções e conceitos da psicanálise e das ciências sociais – julgo pertinente apresentar três noções fundamentais para nos aprofundarmos numa compreensão possível acerca das redes sociais e das redes sociais virtuais.  

A contemporaneidade se revela como um palco de paradoxos intensos: ao mesmo tempo em que a globalização aproxima povos e culturas, desmantelando fronteiras geográficas e simbólicas, emergem sentimentos profundos de hostilidade e intolerância direcionados a minorias, grupos marginalizados e maiorias subjugadas por elites locais. Essa dicotomia entre conectividade e fragmentação identitária exige uma investigação meticulosa sobre os mecanismos psíquicos e sociais que alimentam tais tensões. Para adentrar nesses labirintos, esse artigo pretende apresentar a ideia freudiana de narcisismo das pequenas diferenças com as reflexões de Pierre-André Taguieff sobre o medo ao pequeno número e a análise de Arjun Appadurai em “O medo ao pequeno número: ensaio sobre a geografia da raiva”.

O narcisismo das pequenas diferenças: O Eu no espelho do Outro

Sigmund Freud, em sua obra “O mal-estar na civilização” (1930), introduz o conceito de narcisismo das pequenas diferenças para explicar a tendência humana de enfatizar e exacerbar distinções mínimas entre indivíduos ou grupos culturalmente próximos. Esse mecanismo psíquico atua como uma defesa contra a ameaça que o outro semelhante representa à identidade do Eu. Ao projetar hostilidade sobre diferenças sutis, o indivíduo reforça a sensação de unicidade e superioridade, evitando confrontar a inquietante proximidade com o outro.

Freud postula que essa agressividade dirigida às pequenas diferenças é fundamental para o sentimento de coesão dos grupos sociais. Ao identificar e antagonizar nuances no outro, o grupo reafirma seus próprios valores e fronteiras identitárias. Esse processo permite a manutenção de uma ilusão de homogeneidade interna, mascarando conflitos e contradições inerentes à própria comunidade.

No contexto contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pela circulação massiva de pessoas e informações, o narcisismo das pequenas diferenças adquire novas configurações. A proximidade virtual com o outro culturalmente similar, mas ligeiramente diferente, intensifica o desconforto e a necessidade de demarcação. Esse fenômeno é visível nas rivalidades entre grupos étnicos, religiosos ou nacionais que compartilham raízes históricas comuns, mas que se engajam em conflitos acirrados baseados em distinções aparentemente superficiais.

O medo ao pequeno número: a paranoia do minoritário

A força do preconceito: Ensaio sobre o racismo e seus duplos

Pierre-André Taguieff, filósofo e sociólogo francês, de certa forma aprofunda essa discussão ao explorar o medo ao pequeno número. No ensaio La Force du préjugé: Essai sur le racisme et ses doubles, publicado em 1988, ele analisa como sociedades majoritárias desenvolvem uma aversão irracional a minorias numéricas, percebendo-as como ameaças desproporcionais à ordem social e à identidade coletiva. Essa paranoia social não se fundamenta em perigos reais ou objetivos, mas em construções imaginárias que atribuem ao pequeno número um poder desestabilizador exagerado.

Taguieff argumenta que esse medo está enraizado em ansiedades profundas sobre a pureza identitária e a coesão social. Minorias são transformadas em bodes expiatórios, carregando projeções das inseguranças e contradições internas da maioria. O pequeno número, paradoxalmente, torna-se um gigante simbólico que precisa ser controlado ou eliminado para restaurar a sensação de segurança.

Esse mecanismo se manifesta em diversas formas: discriminação sistêmica, políticas de exclusão, violência física e simbólica. A minoria é frequentemente desumanizada, retratada como portadora de valores ou práticas que ameaçam a integridade moral, cultural ou econômica da sociedade dominante. Essa narrativa justifica ações repressivas e legitima a negação de direitos fundamentais.

Arjun Appadurai e a geografia da raiva: globalização e violência contra minorias

Arjun Appadurai, renomado antropólogo indiano, em sua obra “O Medo ao Pequeno Número: Ensaio sobre a Geografia da Raiva” (2006), oferece uma perspectiva inovadora sobre como a globalização intensifica esses fenômenos. Ele argumenta que a modernidade global produz uma sensação de incerteza e ansiedade em relação à identidade nacional e cultural. As fronteiras tradicionais são borradas, e as narrativas unificadoras do Estado-nação são desafiadas por fluxos transnacionais de pessoas, ideias e capital.

Ele introduz o conceito de “ansiedade de incompletude”, sugerindo que as nações modernas temem não alcançar uma identidade completa e coesa. Nesse contexto, minorias étnicas ou religiosas são vistas como obstáculos à realização dessa completude imaginada. A raiva e a violência dirigidas a esses grupos são, portanto, expressões de uma tentativa desesperada de eliminar elementos que simbolizam a fragmentação interna.

A globalização, ao mesmo tempo em que conecta, também acentua diferenças e promove comparações constantes. As comunidades são expostas a uma pluralidade de modos de vida, gerando questionamentos sobre seus próprios valores e tradições. Essa exposição pode levar a uma reafirmação agressiva da identidade, na qual o outro é visto como uma ameaça à estabilidade e à continuidade cultural.

Appadurai destaca que a violência contra minorias não é apenas um fenômeno local, mas está inserida em uma geografia da raiva que se espalha globalmente. Eventos em uma parte do mundo podem influenciar atitudes e ações em outras, através da mídia e das redes transnacionais. Essa interconexão potencializa a disseminação de ideologias extremistas e xenófobas.

Uma leitura das tensões contemporâneas

A intersecção entre o narcisismo das pequenas diferenças, o medo ao pequeno número e a geografia da raiva oferece um arcabouço teórico robusto para compreender as tensões que permeiam as sociedades atuais. Esses conceitos revelam como processos psicológicos individuais se refletem e se amplificam nas dinâmicas sociais e políticas.

O narcisismo das pequenas diferenças explica a necessidade de demarcar fronteiras identitárias mesmo em contextos de grande semelhança cultural. Essa demarcação é fundamental para a construção do “nós” em oposição ao “eles”, mesmo que as diferenças sejam mínimas. Quando combinado com o medo ao pequeno número, essa dinâmica se intensifica, pois a minoria é vista não apenas como diferente, mas como uma ameaça existencial.

A contribuição de Appadurai situa esses fenômenos no contexto da globalização, mostrando como as ansiedades identitárias são exacerbadas pelas transformações globais. A sensação de perda de controle e a percepção de que a identidade nacional está em risco levam a reações violentas contra minorias, vistas como obstáculos à realização de uma fantasiada identidade plena.

Essa articulação permite compreender por que, em muitos casos, a hostilidade é direcionada precisamente a grupos que são numericamente insignificantes ou que possuem laços culturais próximos aos da maioria. A ameaça não está na capacidade real de subversão desses grupos, mas na sua representação simbólica das incertezas e fragilidades internas da sociedade dominante.

Desafiando os labirintos da identidade no globalismo: caminhos para além da raiva

Compreender esses mecanismos é crucial para o desenvolvimento de estratégias que visem reduzir a violência e promover a convivência pacífica. Reconhecer que a hostilidade direcionada a minorias tem raízes profundas em ansiedades identitárias nos permite abordar o problema de maneira mais robusta e abrangente.

Políticas que promovam a inclusão e valorização da diversidade cultural podem contribuir para diminuir o medo ao pequeno número. Educação para uma cultura digital e intercultural, visando à pluralidade e espaços de diálogo são fundamentais para desconstruir estereótipos e reduzir os efeitos engendrados pela necropolítica na geopolítica da raiva.

Além disso, é necessário enfrentar as inseguranças geradas pela globalização. Isso implica em repensar seriamente modelos econômicos e sociais que produzem desigualdades, marginalização e a catástrofe ambiental. Fortalecer redes de proteção social e promover o desenvolvimento sustentável pode reduzir a sensação de ameaça e a falsa saída na acusação de bodes expiatórios.

A psicanálise, certamente, é uma das práticas que oferecem ferramentas valiosas para compreender e trabalhar essas questões individual e coletivamente. Ao explorarmos os processos inconscientes que alimentam a hostilidade, é possível promover uma maior autoconsciência e responsabilidade ética do sujeito em sua relação tanto com os seus próprios desejos, quanto com o outro.

A era da globalização apresenta desafios complexos à compreensão da identidade e da alteridade. Os conceitos de Freud, Taguieff e Appadurai nos permitem começar a mapear os labirintos da raiva que emergem nesse contexto, revelando como mecanismos psíquicos e sociais se entrelaçam para produzir hostilidade e violência contra minorias ou mesmo maiorias subjugadas por variadas elites econômicas locais.

Desvendar esses processos é o primeiro passo para construir sociedades mais justas e inclusivas. Esse é um convite urgente à reflexão sobre quem somos e como nos relacionamos com o outro. Reconhecer a riqueza que reside nas diferenças, por menores que sejam, pode transformar o narcisismo e o medo em oportunidades de crescimento coletivo a partir do diálogo e da essencial política.

Em última instância, superar os labirintos da raiva requer coragem para enfrentar as próprias inseguranças e abrir-se ao desconhecido. Esse é um processo contínuo de desconstrução e reconstrução de uma identidade que, no limite, reconhece a interdependência global e a necessidade de coexistência pacífica em um mundo cada vez mais interconectado.

 

Assédios e importunação: violência, pulsão e a falha na simbolização do desejo

O assédio moral, o assédio sexual e a importunação sexual – tipificados distintamente no direito penal brasileiro – representam dimensões sombrias da vida social que, além de constituírem atos de violência, revelam as complexidades do inconsciente humano em sua relação com o desejo e o poder. Esses comportamentos não surgem de um simples impulso. Eles são a expressão de dinâmicas psíquicas profundas que envolvem a pulsão, a violência e, em muitos casos, o fracasso da simbolização dos conflitos internos.

Sigmund Freud, em Além do Princípio do Prazer (1920), nos alerta para a força avassaladora das pulsões, especialmente da pulsão sexual, que, longe de ser uma força controlada e civilizada, muitas vezes irrompe em formas destrutivas, seja a partir do indivíduo, seja a partir de um grupo de pessoas.

A sexualidade reprimida pode retornar de maneiras inesperadas, revelando-se em um comportamento transgressivo, como ocorre nas importunações e assédios moral e sexual. A pulsão sexual, quando impedida de encontrar formas sublimadas de expressão, pode emergir como um ato de violência, em que o outro não é visto como um sujeito, mas como um objeto a ser usado para satisfazer uma necessidade que, no fundo, carrega as tintas da frustração através da agressividade.

A violência inerente aos assédios, da perspectiva psicanalítica – e não da jurídica -, é indissociável da dinâmica do poder. Ela é a manifestação do desejo de subjugar, de dominar, de impor a própria vontade ao outro, em geral, ao seu corpo. Nesse ponto, ocorre a passagem ao ato.

Jacques Lacan, em O Seminário, livro 10: a angústia (1962-1963), explora a passagem ao ato como um ponto de ruptura na experiência subjetiva. Quando a angústia atinge níveis intoleráveis, o sujeito que comete o assédio pode experimentar uma quebra na sua capacidade de mediar seus impulsos através da linguagem e da simbolização. Essa falha culmina em uma ação impulsiva, que interrompe o campo do pensamento e se manifesta diretamente como ato investido em direção ao outro – uma violência que não é apenas física, mas profundamente psíquica.

Ao explorar a passagem ao ato, Lacan nos oferece uma chave fundamental para compreender o assédio. No momento em que esses crimes são perpetrados, o sujeito escapa da trama simbólica, do jogo de significantes que normalmente organiza a vida psíquica. Ao invés de lidar com o seu desejo de forma simbólica ou metafórica, ele age. Não há palavras, não há elaboração. O ato de assediar ou importunar surge, então, como um curto-circuito na capacidade do sujeito, na sua incapacidade de integrar o seu desejo e, consequentemente, a sua angústia no campo da linguagem.

O conceito de violência também desempenha, aqui, um papel central. Não é apenas a violência física que está em questão, mas a violência psíquica que destrói a alteridade do outro, transformando-o em um objeto de satisfação pulsional. Essa redução do outro a um objeto é, em si, uma forma de destruição simbólica, uma aniquilação da subjetividade que se reflete nos atos de assédio.

Melanie Klein, em Amor, Culpa e Reparação (1937), ao tratar da relação entre o desejo, a culpa e a reparação, nos mostra que a agressividade é intrínseca ao desejo humano, e que essa própria agressividade, quando não elaborada, se manifesta em ações que visam à destruição do outro.

Assim, as manifestações de assédios e a importunação sexual devem ser compreendidos não apenas como transgressões morais ou sociais, mas como sintomas de um tipo de falha mais profunda no psiquismo daquele que perpetra o crime.

O agressor, incapaz de simbolizar os seus conflitos e desejos, age de maneira direta, violenta.

Freud já havia nos mostrado como o recalque e a supressão, quando fracassam no indivíduo, retornam em formas inesperadas, muitas vezes destrutivas, e, em geral, assustadoras aos olhos da cultura. Lacan complementa, ao nos lembrar que, quando a palavra falha, o ato toma o seu lugar – e o ato, nesses casos, é uma violência.

Nesse sentido, a importunação e os assédios não são, somente, uma questão de poder, ou um tipo de investimento da pulsão sexual mal direcionado. São, antes, um colapso psíquico no qual a meta pulsional co-incide com a própria agressividade e se lança ao outro, no mundo exterior, enquanto violência. Como um modo de lidar com a própria incapacidade de simbolizar o desejo. Como uma falha no campo da linguagem e da subjetivação, na qual o sujeito age – destruindo o outro, porque, antes, visa destruir a si mesmo, na tentativa de escapar de uma angústia intolerável.

Onde está Wally? | A juventude transviada e o poder da citação

“…e ambos vieram de boas famílias”.

Uma prática muito comum nos colegiais e cursinhos, ao menos, antigamente, era aquela de mandar bilhetinhos para que o professor lesse. Essencialmente, em voz alta. Por mais que, eventualmente, chegassem também cantadas e brincadeiras não lidas.

Os bilhetes eram, geralmente, referentes a alguma tola brincadeira ou piada adolescente, própria a um nexo muito particular daquele grupo, turma ou geração, mas que serviam como pontos de alívio na extenuante obrigação educacional, conforme chegava o momento de escolher o futuro aos que tinham a sorte de estar ali.

Não me lembro de ter enviado bilhete algum, sequer uma vez. Talvez, esse seja um arrependimento a elaborar futuramente. Entretanto, guardo comigo alguns que presenciei. Melhor, vivi, enquanto estudante.

Como quando, em um inverno, numa sala de cursinho com uns cem alunos, vi um querido professor abrir um dos tantos bilhetes que recebeu e gargalhar alto, numa sala silenciosa, enquanto fazíamos exercícios. Todos os chamamentos adolescentes à atenção haviam sido sumariamente silenciados por ele, até então. Devidamente, em prol do bom andamento da matéria e dos interesses de todos, no longo prazo, professor e alunos.

Porém, incontido, ao reagir espontaneamente àquele bilhetinho, ele disse no microfone, subvertendo sua proposição e intento: “esse eu preciso ler”. Naquele momento, mais ou menos 200 olhos fugiram das apostilas e o miraram em excitação. O que viria?

Então, ele continuou com a brevidade humorística dos grandes chistes: “Onde está Wally?”.

Quando todos se entreolharam, naquele emaranhado de moletons em moles e fáceis tons pastéis e escuros de adolescentes que pretendiam sumir na coletividade, rapidamente, os olhos saltaram para um colega que trajava uma bela blusa de lã, com largas listras na horizontal, vermelhas e brancas.

Havia ali, entre nós, alguém único, que, diferente, se destacava naquele dia e ninguém tinha notado, salvo o autor do bilhete. E o rapaz, de quem não me lembro o nome, cuja blusa era o objeto do riso, ria conosco, ciente de aquilo não era uma violência, mas um congraçamento.

Só faltava o gorro para que ele fosse o próprio Wally.

Imagine o professor, de frente, ao ler e ver aquele anfiteatro lotado. O autor foi genial e o momento, às vésperas do vestibular, sensacional. Todos rimos muito e nos aliviamos em meio aos exercícios. Cada qual com suas questões objetivas e existenciais.

Lembro-me, também, de um bilhete endereçado a outro querido professor que, no caso, faz-se necessário ressaltar, era, sabidamente por todos, gay. Ao ler o bilhete, ele fez questão de relê-lo em voz alta, parando a aula: “Onde termina essa seta?”.

Naquele dia, ele tinha ido com uma camiseta da Dolce & Gabanna estampada que, nas costas, tinha somente o desenho de uma grande seta, apontada para baixo. Frequentemente, ele respondia às provocações homofóbicas citando suas roupas e perfumes, com bom humor. Depois de um tempo compreendi que tais respostas eram suas únicas defesas, diante das tantas violências que certamente sofreu. Sobretudo, em escolas da elite econômica do interior de São Paulo.

Sua ação imediata foi simples e eficaz. Como todos os professores com um pouco de experiência já intuíram a essa altura, ele dobrou o bilhete, devolveu ao aluno na primeira fileira que lhe entregou originalmente e disse: “volta para quem te passou”.

Então, em um silêncio sepulcral, o auditório acompanhou lentamente o retorno do bilhete ao autor, sentado lá em cima, no fundão, na diagonal oposta do anfiteatro. Outrora um bravo, popular, carismático e corajoso, desmascarado em sua covardia violenta, sua cara foi ao chão e, ainda que com certa distância, pude notar suas bochechas rosas tremerem levemente.

A voz do professor ecoou nas caixas do anfiteatro: “Em primeiro lugar, essa é uma camisa Dolce & Gabanna de muito bom gosto, coisa que o senhor e, provavelmente, a sua família, não têm. E não deve ser por falta de dinheiro. Em segundo lugar, e o senhor um dia vai descobrir, cada um goza por onde sente tesão, e isso não é da conta de ninguém. Mas o senhor, provavelmente virgem, ainda não descobriu isso”.

A sala veio abaixo. Ao menos que eu me lembre, essa foi uma das ocasiões em que mais ri em minha vida. Todos nós. Risos enquanto respostas. Cada qual com as suas. Nesse dia não houve um congraçamento total, porque somente uma pessoa não deu risada: o autor do bilhete. Até hoje me pergunto se ele aprendeu a lição.

Mais de um quarto de século depois, pautando o universo das redes sociais virtuais, enchendo o saco com suas insignificâncias adolescentes no real e necessário debate público de adultos, desestabilizando, manipulando, derrubando, elegendo governos mundo afora e, consequentemente, piorando a vida de todo mundo, estão os piores “meninos do fundão”. Geralmente, os que menos estudaram e que faziam as brincadeiras mais sem graça pra chamar a atenção de todos. Atraindo cliques com postagens estridentes, cheias de manipulações, com gritos fraudulentos, apelativos, sem fontes ou, ainda, em um anonimato covarde.

Porém, agora, muito além do humor que ri dos reais opressores, daquele de congraçamento, ou mesmo daquele reacionário, dito “politicamente incorreto”, a juventude transviada contemporânea, guiada por velhacos, defende os opressores, dissemina distorções, negacionismos, mentiras e perpetra crimes diariamente, servindo ao velho fascismo que quer achar o Wally para matá-lo com as setas que usam como lanças.

Você, jovem ou velho, quando se deparar com algum texto ou vídeo que soe uma informação, algo que você não sabia, ainda que elementar, travestida de opinião ou de pergunta, busque o autor da citação, a fonte fidedigna daquele texto, daquela ideia ou raciocínio apresentado. De onde veio aquilo, de fato, e qual é a intenção do autor real, que, na imensa maioria das vezes não é a mesma daquele que compartilhou com você. Ainda, quem orientou aquela disseminação artificialmente? Por quê?

Por sua vez, quando você se deparar com um desinformado por ocasião ou um neofascista assumido que saiba, minimamente, dialogar, aprofunde a conversa, o argumento. Peça para ele citar suas fontes, elaborar o seu raciocínio. Coloque a prova na mesa. Mande, educadamente, ele voltar o bilhete e acompanhe até onde ele vai.

Com muita sorte ele chegará até o fundão da internet, todavia, o conteúdo não passará da página dois. Ao menos aos que se importam não só consigo, mas com o restante da turma, com os professores e todos os funcionários do colégio.