Complexo de Getúlio


Por Hugo Ciavatta*

 

Freud que me perdoe, faltou-lhe entender que nós, brasileiros, padecemos de Complexo de Getúlio. É nossa alegoria, nossa metáfora, nosso recurso para tentar explicar nossa condição republicana tão corriqueira. Situação, aliás, que hoje beira o não verbalizável, aquilo sobre o qual procuramos palavras mas só temos vontade de gritar, que está às voltas quase como inacessível. Getúlio, como um mito, está em tantos lugares que é como se não estivesse em lugar algum. Nosso complexo é quem nos faz sofrer, dia após dia, pelo Brasil, de Atalaia do Norte a Touros, de Pacaraima a Bajé, sentimos cada movimento em nossos corações.

Piegas né, é verdade, porém é preciso dizer que “nós”, bem, nós não é assim um grande nós. Somos apenas aqueles que acreditam em aquecimento global, que não fazemos de nossas crenças religiosas um desejo de generalização ao país, impondo-as aos outros, que defendemos os direitos humanos, que acreditamos mesmo em democracia, em direito de defesa … Oops … É, pelo andar da carruagem do nosso tempo, talvez esse nós corresponda a um total enorme de 1,3% dos brasileiros.

Quando se trata de mito e psicanálise, cabe lembrar de Lévi-Strauss direcionando-se ao subtítulo de Totem e Tabu, de Freud, sobre as correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos. O belga mais francês da Antropologia diz que nas páginas de A oleira ciumenta se dedicou a mostrar, por sua vez, a correspondência entre a vida psíquica dos selvagens e a dos psicanalistas. Não era, pois, muito sutil o Claude, não é?

Tudo isso para dizer que nosso mito de vida republicana, nosso Complexo de Getúlio insiste em querer Salvar o Brasil. Quase sempre, historicamente, isso significa salvá-lo dos comunistas. Os da foice e do martelo, nossa, devem ser um montante de 0,4% no país. Puxa, que perigo! E nós, os 1%, queremos é salvar o Brasil das mãos de certos patriotas. Entre neuróticos e psicanalistas, todavia, é selvageria para todo lado.

O suicídio de Getúlio Vargas em 1954 tem organizado nossa vida política como um mito, como a mitologia ameríndia organiza a vida dos povos indígenas das Américas. Isto é, na leitura de Lévi-Strauss, os mitos, enquanto narrativas, personagens e suas situações, propõem regras de ação para uma sociedade. Os mitos são a imaginação coletiva das práticas sociais dos sujeitos, mas nem por isso lhes são anteriores e imutáveis. Mitos são transformações históricas, mitos também são modificados por suas sociedades. A república brasileira é anterior ao acontecimento político em torno de Getúlio Vargas, depois dele, muito aconteceu ao Brasil. Há, no entanto, conexões em meio a isso que dizem muito sobre nós. Nós?

Em 1930, Getúlio juntou seus chegados e pôs de lado a elite cafeicultora de São Paulo e Minas, a que se revezava na presidência. Vargas colocou em prática o que também se tornou um rito, uma marca para sinalizar uma pretensa mudança na república tupiniquim: juntar uns parças e botar para correr quem está no poder. Foi assim com a trupe dos militares Deodoro e Floriano em relação à família dos Bragança e Bourbon, no ato propriamente de fundação dessa república, pondo fim ao período imperial.

Gegê não ficou satisfeito com a correria de 1930 e aprontou um imbróglio com a constituinte de 1934 para permanecer poder. Acostumou-se na fantasia presidencial e, além disso, em 1937, bolou um esquema, atribuiu aos comunistas um arranjo golpista e deu, ele mesmo, um golpe, outro golpe. Nascia o Estado Novo sob pretexto do Plano Cohen, que hoje poderia ser considerado uma grande Fake News – fico imaginando quem seria Luciano Hang à época.

Depois de finalmente largar o osso em 1945, Vargas voltaria à presidência nos anos 1950, desta vez eleito. Perto do fim do mandato, entretanto, um de seus seguranças foi acusado de atentar contra a vida do jornalista Carlos Lacerda, seu opositor ferrenho. Associou-se o segurança a mando do presidente, associou-se corrupção comprando a tentativa de assassinato de Lacerda. À luz de 1937, alguém poderia ter lhe dito: “é, parece que o jogo virou, não é mesmo, Getúlio?!”. Não havia delação premiada, nem um juiz-herói – o anacronismo aqui é sarcasmo –, de todo modo, Vargas se viu acuado e, por fim, tomou a decisão de Salvar o Brasil metendo uma bala no peito.

Nós, aquela porcentagem ridícula, por exemplo, assistimos à votação do impeachment, em 2016, ainda que sem apoiar os governos de Lula e Dilma Rousseff, e a cada “pelo conjunto da obra” de um deputado procurávamos um revólver para dar fim à agonia, sozinhos, diante da TV. Ninguém se pergunta, os patriotas de ocasião, se as tais pedaladas fiscais seguiram acontecendo de lá para cá, e se elas implicam a situação econômica do país antes dessa pandemia.

Em sua carta de despedida, o então presidente Vargas diz “sair da vida para entrar para a história”. Uai, e da história alguém está fora, Getúlio? Da história oficial, vá lá, a maioria, esquecidos, silenciados, ocultados. No entanto, assim como de seus respectivos corpos ninguém escapa, como quem habita o tempo estamos todos sempre na história. Vargas “saiu da vida para tornar-se mito”. Getúlio, desde o início de sua trajetória pública, seguiu o rito, entendeu o enredo brasileiro, as possibilidades que o roteiro lhe dava de se fazer política desde a fundação dessa república, e, muito antes de virar modinha, fez de si mesmo um mito.

Quem sabe Lévi-Strauss analisando as narrativas do Estado brasileiro dissesse que há pequenas inversões estruturais desdobrando-se em novas estórias. Ao cientista social contemporâneo, ainda, praticamente se apresenta a citação a respeito da repetição histórica, trocando farsa por tragédia no teatro-Brasil. Não. Nós, brasileiros – aquele 1% –, que gostamos de sofrer pelo Brasil, vimos em 1964 outros chegados traidores marcharem aqui e acolá. É, quase como Deodoro e Floriano, quase como Getúlio Vargas duas vezes. Sob pretexto da ameaça comunista, claro, como um filme repetido de 1937, militares apearam João Goulart do poder. Era o centrão de momento fazendo papel de grande inimigo da nação.

Centrão que nos últimos anos atende como demônio mor da pátria amada: Lula – buuuú. Ainda no início do processo que lhe deixou atrás das grades por meses, em 2016, Luiz Inácio declarou, “não tenho a vocação do Getúlio para me dar um tiro”. Tenho para mim que Lula não faltou à aula sobre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. O ex-presidente quis dizer: “que Hegel e Marx me perdoem, se farsa, se tragédia, eu não vou me suicidar”. Ali, nós, os 1%, deveríamos ter sacado: fodeu. Tradução, Luiz Inácio disse: “eu não vou salvar o Brasil”.

Hoje, aqueles que se declaram os principais opositores de Lula, por outro lado, justamente para salvar o Brasil, colocam-se, eles mesmos, seus corpos, como a república. É metonímia, emerge discursivamente o absurdo de tomar a parte pelo todo. Nosso eterno retorno, claro, é o eterno retorno do mesmo: toda a nação são os opositores de Lula, seus corpos individuais são a república. É de deixar O Leviatã constrangido. Não são aquele 1% – ah, o diabo da ironia –, mas querem fazer acreditar que sofrem pelo Brasil.

O juiz-herói abdicou da magistratura para “trabalhar pelo Brasil”, foi o que se leu e se ouviu insistentemente. Virar ministro, mais, foi colocar sua vida em risco pelo Brasil, lê-se, ouve-se, vez sim, vez também. Tradução, por enquanto, o máximo que ele encena é querer livrar o Brasil de atitudes como a que ele mesmo parece ter tomado para que ele próprio estivesse no poder. O ex-capitão agora presidente, também, só repete que sobreviveu a uma tentativa de assassinato para lutar pelo Brasil. É sua missão, sua caminhada extenuante, porém, incansável – uma pena, retirar-se seria uma alegria inenarrável.

Como advertia – sim, ele de novo – Lévi-Strauss a respeito dos mitos, sociedades não são indivíduos, elas não procuram suas narrativas com quem consulta um catálogo, um manual de como proceder. Faltou combinar isso com os brasileiros: nós, brasileiros cômicos, e também os patriotas de ocasião, todos nas franjas da linguagem republicana provinda de Getúlio Vargas. Mas é aí que nos distanciamos, não nos comunicamos porque não é possível salvar o Brasil por caminhos tão divergentes.

Disparou o número de mortes de lideranças indígenas nos últimos anos. O desmatamento na Amazônia brasileira bate recordes atrás de recordes comparativos nesse mesmo período. Houve estiagem em algumas regiões do país, noutras, chuvas excessivas. Falta água em áreas conhecidas mundialmente por suas cataratas. O desemprego crescia mesmo diante das tão urgentes reformas das leis trabalhistas, e da previdência. Quem se importa? Mais um “e daí?” dos patriotas que fazem apenas de seus ícones o Brasil; nós, brasileiros risíveis, por outro lado, imaginamos a nossa própria morte a continuar vivendo nessa desgraça exponencial.

Portanto, chegou a hora de deixarmos o sofrimento, vamos nos entregar ao medo. Já vimos militares darem golpes à direita, já assistimos ao centrão dominar a política brasileira por décadas… falta uma guinada tout court à esquerda, uma de fazer inveja aos sovietes, aos guerrilheiros, uma reviravolta tonitruante! – sempre quis usar essa palavra. Vamos, comunistas, juntem seus camaradas! Somos quase nada percentualmente, mas estamos com vocês! Tomemos o poder, marchemos – de máscaras e álcool gel, evidentemente –, acabemos com essa aflição!

Tenhamos em mente, não esqueçamos a getulística, o nosso Complexo de Getúlio disseminado, e que há uma criatura que, possivelmente viva, é entendida como mito – muito longe de qualquer concepção ameríndia. Mas nem Vargas nem ex-capitão, tampouco juiz-herói! Vamos salvar o Brasil de 2020 de sua própria obsessão histórica! Em meio a uma pandemia global, vai pairar a dúvida se até mesmo um tal golpe comunista não é suicídio coletivo, porém, talvez, seja apenas mais um “e daí?”, quem se importa? Ou finalmente um golpe comunista, ou um suicídio coletivo! Pelo menos realizaremos o desejo de certos patriotas.

 

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* Hugo Ciavatta é antropólogo e, obviamente, sem-graça.

 

Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, o autor recomenda a leitura da “Abertura” de O Cru e O Cozido, “A estrutura dos mitos”, em Antropologia Estrutural e “Da Possibilidade Mítica à Existência Social”, em O Olhar Distanciado, todos de Claude Lévi-Strauss.

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.

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