Tudo bem ficar (um pouco) ansioso na quarentena


O intuito deste artigo é o de esclarecer alguns aspectos da ansiedade em relação ao panorama atual. A introdução ao tema pode ajudar a desmistificá-lo e, consequentemente, a operar no sentido inverso da própria ansiedade.

O esperado aumento dos relatos de pessoas que se sentem ansiosas durante a pandemia vem se confirmando. Algumas delas, que não se percebiam assim, passaram a sentir uma leve ansiedade, enquanto outras sentiram a ansiedade aumentar.

Enquanto passarmos pelo duro e necessário isolamento social esta resposta psíquica ao que temos vivido será profundamente natural, desde que se dê em uma intensidade leve ou moderada. A grande questão envolve a avaliação pessoal sobre o que se sente: uma ansiedade leve, moderada ou severa. Muitas dúvidas podem surgir.

Por isso, conversar a respeito delas com profissionais da área de saúde mental torna-se ainda mais importante agora, uma vez que alguns sintomas podem incluir, eventualmente, fadiga e sensação de falta de ar. Em tempos de coronavírus, a mera possibilidade da confusão entre estes sintomas e aqueles da Covid-19, por si só, já é problemática.

O diagnóstico psiquiátrico da ansiedade segue diversos critérios que a classificam em alguns tipos de transtornos de ansiedade que muitas vezes são comórbidos entre si. Ou seja, uma pessoa com um deles, na maioria das vezes, terá, pelo menos, mais um.

Excetuados alguns destes tipos, para que a ansiedade seja considerada um quadro clínico patológico, geralmente – mas não sempre -, é necessário que os sintomas sejam persistentes por um período mínimo de meses. Estes sintomas só podem ser avaliados por um psiquiatra ou um psicoterapeuta (psicanalistas e psicólogos).

Da mesma forma que o colesterol não é ruim, mas o seu nível elevado no sangue é preocupante e necessita de uma intervenção médica, a ansiedade não é necessariamente ruim, mas o seu nível elevado deve ser acompanhado por um especialista.

Entretanto, mesmo quadros que não são severos podem e merecem ser atenuados com uma boa terapia. A ansiedade se manifesta em todos nós e, na imensa maioria das vezes, ela não assume um caráter patológico. Antes, ela é uma resposta natural do psiquismo frente às alterações percebidas no mundo exterior, no ambiente em que vivemos.

 

O que é a ansiedade?

Na psicanálise freudiana, a ansiedade recebe o nome de angústia. O termo original, Angst, comporta tanto a noção de ansiedade, quanto a de medo ou temor.

Em “As palavras de Freud”, o tradutor Paulo César de Souza aponta que a óbvia semelhança entre os termos Angst e angústia deve-se à sua origem comum no idioma indo-europeu, traçada a partir das derivações latina angustia (“aperto”) e indo-germânica angust (“estreiteza”, “aperto”).

Não é por coincidência que as descrições mais comuns da sensação de angústia contêm “um aperto no peito”. Há ainda o “frio no estômago” diante de algo iminente, como se o mesmo se contraísse ao perder calor.

Como suporte para conceituar a angústia, Freud também utilizou os termos Furcht (“medo”) e Schreck (“pavor”).

Esta breve explicação etimológica é necessária para que façamos uma distinção importante que nos ajuda a compreender a ansiedade, ou angústia, em relação aos objetos (para a psicanálise um objeto pode ser uma pessoa, ideia, pensamento, relação ou coisa material).

A angústia (Angst) é um sentimento causado pelo desprazer antecipado pelo psiquismo, que busca evitar o desprazer muito maior que seria gerado por um objeto.

Ela se origina no indivíduo devido à expectativa que ele cria a respeito da iminente presença de algo que despertaria um medo, justificável ou não. Esta é, propriamente na língua portuguesa, a concepção de angústia enquanto ansiedade.

Note a utilização do pronome indefinido “um” em “seria gerado por um objeto”. Esta indefinição remete ao objeto, real ou imaginado, porque muitas vezes ele não pode ser nomeado – ou, apontado conscientemente – pelo próprio indivíduo que sente a ameaça, a ansiedade. Como exemplos, assim ocorre no transtorno de Pânico e no transtorno de ansiedade generalizada.

Ilustração de Lucile W. Holling para o poema “Dandelion Bubbles”, em Around a toadstool table – A child´s book of verse, de Rowena B. Bennett, Chicago, 1930.

A expectativa gerada pela incerteza e pela indeterminação do objeto tensiona o aparelho psíquico (corpo e psiquismo) gerando um desprazer que o psiquismo entende ser um prenúncio daquele que será gerado pela presença, de fato, do objeto. Desse modo, posta a antecipação de um desprazer menor em relação ao que pode vir, o psiquismo tende a fugir daquela posição e buscar outra mais prazerosa.

O tensionamento do aparelho psíquico, percebido muitas vezes em regiões, músculos e nervos do corpo, tem por função mobilizar e preparar o indivíduo para empreender a fuga diante daquele objeto que pode – naquele instante não há dúvida de que irá – gerar ainda mais desprazer.

No senso comum, são conhecidas algumas fugas que surgem enquanto respostas à intensificação da ansiedade, logo, ao tensionamento. São aquelas associadas ao aumento do consumo de alimentos, especialmente doces, de bebidas alcoólicas e do tabagismo, por exemplo. Basicamente, porque são saídas imediatas e estão amplamente disponíveis na sociedade de consumo.

Repare que, em meio à pandemia em que estamos vivendo, têm sido recorrentes as notícias e artigos que abordam o aumento generalizado do consumo de álcool. Da mesma forma, os mais afortunados, com seus vastos estoques alimentícios, percebem o necessário cuidado extra para manterem o peso durante o isolamento social.

Na língua portuguesa, o medo (Angst ou Furcht) é a concepção de angústia que se refere ao sentimento que surge quando este objeto pode ser nomeado e definido pelo indivíduo. Portanto, quando ele está, ainda que indiretamente, presente na consciência. Como em uma determinada fobia. Por exemplo, o claustrofóbico sabe da sua aversão aos espaços fechados. Basta que ele visualize ou imagine uma situação em que ele se reconheça em contato direto com o objeto fóbico para que a angústia, ou ansiedade, tome conta.

Já o pavor (Schreck) não é uma concepção, ou sentido da angústia, mas a realização daquilo que ela apenas antecipa. Ele é a descarga abrupta do tensionamento que tomava o indivíduo. Ele surge quando a expectativa se realiza no contato direto com o objeto que causava a ansiedade e o medo.

Portanto, do ponto de vista freudiano, a ansiedade e o medo não são etapas sequenciais, mas traduções das manifestações da própria angústia, que é conhecida popularmente no Brasil, somente, como ansiedade.

 

O que muda com a pandemia?

Após esta breve apresentação, esperamos que tenha ficado evidente como uma situação de pandemia altera, basicamente, quase tudo o que diz respeito à ansiedade.

Ou seja, é natural que este momento de indefinição altere a intensidade, a modulação e o caráter dos nossos afetos em relação a quase todos os objetos, como: mãe, pai, namorada, cachorro, gato, amigos, emprego e os nossos próprios pensamentos.

É importante ressaltar que tais mudanças ocorrem no interior do psiquismo, porém, reverberaram pelo corpo. Além de nódulos e tensões musculares, a ansiedade pode levar a episódios de insônia, ou, através do consumo excessivo de café ou álcool, atrapalhar a recuperação ideal do corpo e do psiquismo durante o sono.

Ainda, sua tendência é a de aumentar a irritação e intensificar o cansaço. A fadiga pode fazer com que fiquemos o dia todo no sofá assistindo séries, procrastinando atividades necessárias, mas, ainda assim, sem alcançar a desejada sensação de relaxamento própria às atividades de lazer.

Por isso, as atividades físicas são ainda mais importantes durante este período. Preferencialmente, em casa, mas, se não for possível, pequenas caminhadas diárias certamente atenuarão a ansiedade. Antes, informe-se sobre as devidas recomendações, como a de ficar, no mínimo, a 4 metros de distância da pessoa que caminha na sua frente.

Algumas vezes sentimos uma ansiedade que não sabemos de onde vem, noutras conseguimos defini-la com uma certa clareza. Um exemplo é aquela que atualmente toma algumas pessoas, em relação às incertezas no mercado de trabalho.

Conversar francamente a respeito destas mudanças, dos desejos, das expectativas e medos envolvidos é fundamental para diminuir a tensão, a ansiedade, a angústia. Seja com a família, os amigos ou com um psicoterapeuta.

O corpo, o cérebro e o psiquismo possuem uma ampla e maravilhosa plasticidade. Quando o mundo exterior passa por uma grande transformação, eles sempre são capazes de se readaptar.

Vivemos um momento doloroso, fundamentalmente para parentes e amigos das vítimas, mas que também é uma possibilidade de readaptação não apenas para indivíduos, mas para a humanidade.

Isto significa que, preservada e tratada a saúde imediata do maior número possível de pessoas no mundo todo, com as devidas cobranças, ações e precauções coletivas recomendadas diante da Covid-19, tais mudanças externas podem ser catalisadoras de transformações interiores e, consequentemente, de concepções e ideais partilhados que movem grandes questões sociais.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso durante a quarentena. Ao indivíduo, na maioria das vezes, a ansiedade é apenas a precursora de um momento ou um período mais prazeroso e melhor.

Algumas vezes não desejamos as mudanças e podemos ficar bem e confortáveis com a sensação de que está tudo igual. Em outras tantas, as desejamos, mas não sabemos como concretizá-las. Por fim, existem momentos como esse, quando as mudanças chegam sem perguntar e o que nos resta é, simplesmente, construir um destino para elas.

O resto é desejo.


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