O outro, o inferno palaciano, o canalha e o drama brasileiro

O outro

O outro, essa pessoa, categoria analítica ou entidade fenomenológica, está sempre por aí. Na verdade, por aí, por aqui, por ali. Eu sou o seu outro, aqui. Você, caro leitor, é o meu outro neste momento em que escrevo.

Porém, convenhamos, o mundo é muito grande para que tenhamos somente um ao outro. Cada um de nós tem muitos outros outros.

Sim, porque o outro está presente mesmo quando estamos sozinhos. Ele é um inquilino permanente que nos habita. Nesta relação nada mercantil o pagamento vem em diversas moedas. Por vezes ele nos persegue, censura, entristece, fustiga, noutras ele nos acolhe, alegra, acalma, liberta, inspira. Dependendo do outro, recebemos um pouco de cada, em proporções variáveis.

O fato é que o outro sempre nos estimula. Quando este estímulo não vem do outro no mundo exterior, vem do outro no mundo interior.

Do ponto de vista das ciências sociais o outro é a instância fundamental de constituição do sujeito, porque somente a partir do outro ele pode se reconhecer por diferenciação, erigindo a sua subjetividade.

Para a psicanálise freudiana, na vida adulta o outro é mais um dos múltiplos objetos do mundo exterior no qual investimos nossa libido. Porém, antes, ele nos constitui desde o primeiro momento, nas relações parentais. Destino inalcançável das nossas fantasias, mas também das identificações, o outro é a última instância da realização e da interdição dos nossos desejos.

Por isso, buscamos a repetição de beijos e abraços dados e não escapamos às fantasias com aqueles nunca dados.

Há, também, o outro dentro de nós com quem repetimos discussões e ensaiamos arrependimentos pelo dito e pelo não dito.

Ah, se arrependimento matasse, diria o outro. Não mata, não. Nos constitui.

Mas há, aqui, duas importantes distinções: sentir arrependimento é diferente de sentir culpa. Esta última, por sua vez, difere-se também de responsabilidade. Voltaremos a estas diferenças mais a frente.

 

O inferno palaciano

Napoléon Ier à Fontainebleau le 31 mars 1814. Óleo sobre tela, 138 x 180 cm. Paul Delaroche,1840.

O inferno são os outros! A conhecida frase de Jean-Paul Sartre não foi escrita em nenhum dos seus tantos livros, ensaios ou em uma entrevista. Ela veio a público no Théâtre du Vieux-Colombier, em maio de 1944, na première da peça Huis Clos (De portas fechadas), pela boca de Garcin, personagem criada pelo filósofo francês.

A trama, em ato único, desenrola-se a partir de três desconhecidos entre si, Inès, Estelle, Garcin, e O Garçom (ou O Criado na tradução brasileira). Este último, representante do Diabo, faz as vias de apresentar às demais personagens a sua nova morada eterna: o inferno.

Diferentemente daquilo que imaginamos, o cenário assemelha-se pouco ao inferno bíblico, exceções feitas ao calor escaldante e à iluminação total do ambiente. Não há torturadores, grelhas, estacas, castigos físicos. Antes, é um salão imperial, ao estilo do regime bonapartista, com móveis, uma lareira e uma estátua de bronze. Não há janelas, espelhos, nem nada que seja frágil.

A força e a solidez napoleônica são invocadas no cenário, na atemporalidade da eternidade onde não se dorme, nem se pisca, mas também no enfrentamento do qual não se escapa, dos erros cometidos, da má-fé que não pode mais ser mascarada, mas que deve ser paga.

Ali, sem espelhos, cada qual só pode ver a si mesmo no reflexo no olho do outro. Onde, para além do reflexo, encontra o julgamento deste outro, o carrasco que reflete a sua própria consciência da má-fé, a sua culpa.

As traduções do título da peça, em português, Entre quatro paredes, e em inglês, No exit, complementam o amplo sentido da reflexão de Sartre.

Há uma clausura intransponível na existência, jamais saímos de nós mesmos. Se somos vocacionados para a liberdade, ela não vem sem escolhas e à revelia do olhar dos outros.

A liberdade, para Sartre, certamente inspirado por Freud, é um constante vir-a-ser que só pode ser experimentado pela autorresponsabilização perante os nossos desejos, pela atitude de assumirmos as ações tomadas e as escolhas feitas que, sempre, envolvem o outro.

Caso contrário, quando nos desresponsabilizamos na busca pela satisfação dos nossos desejos, padecemos no inferno, fadados a nos reconhecermos eternamente e somente no olhar do outro. Nos enxergando no carrasco que nos julga, tortura e do qual não conseguimos escapar. No carrasco que nos descobre, desvenda, desnuda e revela aquilo que sempre escondemos: a nossa covardia diante da liberdade.

Esse olhar infernal do outro somos nós mesmos, quando somos obrigados a reencontrar, como culpa, a responsabilidade da qual acreditávamos estar desviando, deliberadamente, por má-fé.

Neste sentido, esta peça, encenada pela primeira vez quando a II Guerra Mundial caminhava para o seu desfecho, é uma alegoria que marca o início da transição pela qual passaria o próprio filósofo que já havia escrito o colossal O ser e o nada, considerada por muitos a sua obra máxima.

A partir dali, paulatinamente, para Sartre o conceito de liberdade expandiria de um imperativo ontológico para um destino do ser social e político.

Sua atuação política transbordou da sua filosofia, das linhas herméticas do existencialismo para as ruas de Paris, e o transformou em uma das referências da geração que marcou a história francesa e ocidental com as manifestações de maio de 1968.

 

O canalha

Samuel Johnson, um intelectual britânico do século XVIII disse que o patriotismo é o último refúgio de um canalha. Sendo um conservador monarquista e anglicano devoto, devemos supor que ele sabia bem do que estava falando.

Obviamente, ele não se dirigiu aos patriotas, mas aos canalhas. Não são todos os patriotas que são canalhas. Mas o último reduto possível a um canalha, para Johnson, é o patriotismo ou o nacionalismo.

É com esta macroidentidade última que pode transitar aquele cuja canalhice já foi desmascarada em todos os outros enredos e esferas da vida social. Poderíamos, também, expandir a noção de patriotismo para a de moralismo.

O canalha, enquanto sujeito vil e grosseiro é um narcisista contumaz porque sabe que é insignificante para a maioria das pessoas. Assim, só lhe cabe destinar grande parte do seu amor a si próprio.

Não há problema no narcisismo, uma vez que todos necessitamos dele como um recurso permanente de sobrevivência. Tampouco, nada decorre de grave em excedermos eventualmente no nosso narcisismo.

Capa da 1ª edição de O Ser e o Nada – Ensaio de Ontologia Fenomenológica, de Jean-Paul Sartre. Paris: Gallimard, 1943.

Ainda, mesmo alguém excessivamente narcisista na busca pela satisfação dos seus desejos pode não ser um canalha, uma vez que estas são dinâmicas psíquicas predominantemente inconscientes.

O que define um canalha é que além de ser excessivamente narcisista ele tem consciência e age de má-fé. Prejudicar o outro, para ele, é uma escolha. Mais, uma escolha trivial e recorrente.

Ao canalha há um certo espaço social, onde ele sempre encontrará amantes e cúmplices conscientes ou inconscientes das suas canalhices, contudo, ele não hesitará em prejudicar estas mesmas pessoas para satisfazer os seus desejos e empreender as suas fantasias.

O que geralmente decorre das suas canalhices é que ele não vai longe nas múltiplas realidades sociais, uma vez que poucas serão as redes sociais parciais que o aturarão por muito tempo.

Alguns poderiam apontar nestas características os traços da psicopatia, o que seria correto, não fosse o fato de que o psicopata domina plenamente, no mais das vezes com elegância, o trânsito das normas.

Ao psicopata, o exercício da empatia tende a ter uma baixa modulação, fazendo com que ele precise se apegar, dominar e transitar com extrema perícia pela normatividade para satisfazer os seus desejos. (Um adendo necessário: aqui não tratamos do serial killer estereotipado dos filmes. Algo que, inclusive, faz muito mal à compreensão coletiva da psicopatia).

Já ao canalha o que não costuma faltar é empatia, paixão. Ele é regredido como uma criança que busca o perdão da mãe, no pior sentido possível, porque ele tem a força e as armas de um adulto.

Ele pode até circular com certa perícia nas relações, mas sempre, invariavelmente, cairá em suas próprias tramas. Porque lhe falta uma dose de compreensão sobre os próprios afetos e uma certa inteligência social, uma vez que é tomado pelas suas fantasias e delírios de grandeza.

Assim, o canalha aproxima-se mais do psicótico, do paranoico, porque orienta o mundo ao seu redor a partir da sua culpa, do seu inferno particular.

Portanto, ao contrário do que o senso comum tende a acreditar, as esferas pública, midiática e de políticas institucionais não são um ambiente propício ao canalha. Estes não são espaços que favorecem a sua camuflagem, por serem posições de muita exposição e escrutínio público onde é necessária a interlocução permanente com muitos outros.

Ao menos era assim, quando compartilhava-se socialmente a noção de que canalhas não merecem ser os depositários de desejos, esperanças e anseios coletivos.

 

O drama brasileiro

Voltamos às distinções entre o responsável, o arrependido e o culpado.

Enquanto o responsável, movido pelos seus desejos inconscientes, orienta-se pela boa-fé e pela ética, o arrependido é o responsável que fez uma escolha de boa-fé, mas percebeu que foi a escolha errada.

Já o culpado é aquele que agiu deliberadamente, conscientemente, de má-fé. Quando ele atua reencenando a sua culpa cotidianamente em prejuízo dos outros, o chamamos de canalha. No entanto, se este prejuízo, dano ou dor causada no outro for a própria meta dos seus desejos, o chamamos de sádico.

Como falta capacidade e coragem de se responsabilizar e, nos termos de Sartre, se comprometer com a sua própria liberdade, ao canalha encerrado em seu palácio bonapartista só restam duas saídas falsas para tentar fugir do seu inferno particular: acreditar que é Napoleão Bonaparte ou exterminar o olhar do outro.

A saída napoleônica ocorre após o estágio da paranoia, quando esta ergue uma defesa mitomaníaca que, não raramente, envolve espadas, armas de grosso calibre e cavalos. Assim, batendo bumbo, o canalha tenta diluir o seu inferno particular no mundo exterior, para compensar a sua pequenez. Desta forma, ele consegue um alívio pessoal ao angariar provisoriamente seguidores que se identificam com ele, mas que logo se devorarão uns aos outros neste inferno expandido.

A outra falsa saída do seu inferno particular é, simplesmente, tentar aniquilar o mundo exterior, inclusos os adeptos que não o seguirem cegamente em uma identificação total. Isso se faz, como apontou Johnson, travestido de nacionalista, último espaço social e simbólico possível para tentar camuflar a sua canalhice, enquanto tenta silenciar e exterminar o olhar do outro. Porque ali, no outro, o canalha vê refletida a sua culpa, a sua má-fé, os seus erros e a sua insignificância.

Acontece que falsos napoleões e verdadeiros canalhas não costumavam chegar às altas esferas do poder desde o fim da II Guerra Mundial. Em momentos de aparente continuidade histórica, canalhas e sádicos costumam ser contidos naturalmente nas linhas mais baixas das instituições, exatamente porque não hesitam em colocar populações, a coisa pública e o próprio país em risco. Seja no exército, nos partidos políticos, no congresso, na igreja ou no aparato judiciário.

Quando ocorre um processo de anomia, geralmente provocado por duros embates geopolíticos após graves crises econômicas, forças deste submundo das instituições começam a emergir com os seus bumbos, estimulados por poderosos interesses organizados interna e externamente. Nesta empreitada, como antes, esta ascensão conta com muitos outros cúmplices poderosos, agora arrependidos ou culpados.

Este processo, obviamente, gera uma resposta que tende a se organizar também através das instituições e na sociedade civil.

São momentos em que os infernos particulares e as fantasias transbordaram em violência, paranoia e, no século XXI, em um negacionismo, princípio de psicose coletiva instigada por mentiras pulverizadas e a destituição de referenciais e das verdadeiras autoridades em suas respectivas áreas.

Eis o retorno do reprimido, agora nas versões WhatsApp e YouTube. Eis uma sociedade em que massas se reconheceram pela via do consumismo, ao invés de terem um Estado de bem-estar social. Eis uma pandemia.

Eis o drama brasileiro. Impasse do qual só sairemos quando nos responsabilizarmos pelas nossas escolhas e ações, orientados pela boa-fé e por princípios éticos, quando reconhecermos no olhar dos outros o nosso próprio desejo de liberdade.

O arrependimento edifica, a culpa destrói.

A importância de sonhar

A importância de sonhar é uma constatação na qual podemos chegar, por exemplo, através do lirismo, de uma leitura poética dos acontecimentos. Admitindo o sonho enquanto a manifestação da completude de um ideal – como aquele de uma vida melhor, um país e um mundo melhores – ele seria a força que guia e traciona nossas ações em uma realidade imperfeita e sofrida. Algo que tem muito valor, sobretudo, em momentos tão imperfeitos e sofridos.

Todavia, este artigo pretende mostrar como o sonho tem uma implicação prática e objetiva em nossas vidas, para além da inspiração que mobiliza.

 

O que é o sonho?

Os sonhos costumam ser a porta de entrada aos interessados na psicanálise, a partir de suas análises pessoais ou seus estudos iniciais.

O fascínio despertado pela vida onírica, certamente, é motivado pelas tantas reflexões e representações estéticas que ela incitou desde a Antiguidade em tratados, pinturas, livros, filmes e, recentemente, séries. Fundamentalmente, esse interesse ocorre por uma outra razão: este enigma coloca-se para todos.

De sterrennacht (A noite estrelada), de Vincent Van Gogh. Óleo sobre tela, 74x92cm, França, 1889. Atualmente no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, EUA.

Todos sonhamos, ainda que com frequências distintas. Muitas vezes não lembramos. Por vezes, o realismo nos impressiona, outras tantas a coisa fica tão doida que pensamos que seria impossível tentar ordenar e dar sentido àquilo tudo.

O sonho é a expressão de algo, mas também um lugar, um espaço virtual onde ocorre uma vivência alternativa do nosso sistema sensorial. Nele, vivenciamos um tempo paralelo, distinto daquele do sono. Longos enredos podem ocorrer em poucos segundos de sono e um breve evento no cenário onírico pode se estender longamente no relógio do quarto.

Neste lugar e neste tempo sentimos texturas, frio, calor, ouvimos e vemos pessoas, animais, paisagens e coisas que não existem na realidade.

O seu cachorro pode ter a cara de um parente distante, o rabo de uma tartaruga, o topete do Elvis Presley e conversar com você. O céu pode ser amarelo e você pode voar enquanto toca uma flauta feita de água. Poder. No sonho podemos.

Lá, também, por vezes, o sentido aparente pode ser evidente e a coerência do sonho pode ser afetada somente por pequenos detalhes que o distinguem da realidade. Por exemplo, podemos reviver cenas e episódios da nossa história, onde dizemos aquilo que outrora calamos e fazemos o que não fizemos quando a oportunidade surgiu.

Por isso, para além de se valer dos nossos mecanismos sensoriais, o sonho evoca sentimentos, criados, recriados e simulados, em experiências corporais e mentais que, naquele instante concreto, se originam somente dos estímulos que emanam do mundo interior do psiquismo. Como escreveu o poeta Mário Quintana, sonhar é acordar para dentro.

Mas não somente. Durante o sono, ainda que com as portas perceptivas majoritariamente fechadas, nosso sábio e adaptado aparelho psíquico continua atento às ocorrências do mundo exterior que poderiam nos colocar em um risco real. Assim, mesmo durante um sonho podemos acordar “para fora” quando há um barulho alto, um cheiro muito forte ou um toque muito intenso em nosso corpo.

 

O que muda com a psicanálise?

Freud, muito antes de criar a psicanálise, sempre foi intrigado com os sonhos. Ernest Jones, seu amigo e biógrafo, afirmou que tal interesse remontava, provavelmente, à sua infância. Sabe-se por diversas fontes que, muito antes de iniciar seus estudos sobre a histeria, ele possuía um caderno particular de anotações de sonhos e alguns relatos da sua vivência onírica eram compartilhados com a sua noiva, até então, Martha Bernays.

À parte o seu interesse específico, ele sabia que este era um tema popular que ajudaria a difundir os seus achados quando decidiu percorrer, nas suas palavras, a estrada real que leva ao Inconsciente.

Assunto recorrente no universo popular desde a Grécia antiga, por muitos séculos os sonhos foram compreendidos como manifestações passíveis de serem tabeladas. Por exemplo, sonhar com pássaro significaria um anseio de liberdade para todos aqueles que sonham com pássaros. Ainda, eram percebidos como uma comunicação com o sagrado, ou mesmo, como um transporte do sonhador ao mundo dos deuses.

Provavelmente, nos dias de hoje, a maioria das pessoas os compreenda em uma chave interpretativa que envolve o acesso ao desconhecido a partir de um poder superior, o contato com o mundo dos mortos ou um deslocamento temporal que permite, por exemplo, prever certos acontecimentos. São famosos alguns sonhos aparentemente premonitórios e casos de reencontros daquele que sonha com pessoas queridas que já morreram.

Evidentemente, toda leitura lastreada pela fé deve ser respeitada e de forma alguma a leitura psicanalítica opõe-se a estas interpretações. Antes, ela apresenta-se como um complemento importante na tentativa de desvendar certos enredos pessoais que reavivam o passado e alteram, de fato, o presente e o futuro.

Tais interpretações reafirmam a importância do sonho na vida social e remontam ao Oráculo de Delfos, que por seis séculos foi o centro religioso, sob a tutela do deus Apolo, onde as chamadas pítias previam o futuro e orientavam as ações de cidadãos e líderes gregos.

Atualmente, poucos políticos legariam o destino das suas carreiras – imagine de suas vidas – a uma sacerdotisa em uma espécie de transe. Todavia, quase todos eles ainda sentem a importância da intuição no jogo pelo poder. A intuição, que escapa à razão e à consciência, emerge do mesmo lugar que os sonhos: o Inconsciente.

Sob uma leitura psicanalítica, o transe no qual se encontrava a pítia, enquanto ouvia perguntas e profetizava, era um estado alterado da consciência daquela mulher. Este outro estado da consciência, o transe, não seria outra coisa senão o seu próprio universo onírico.

Ao avançar em seus estudos preliminares sobre a histeria com seu colega Josef Breuer, Freud partiu do famoso caso de Anna O. para a epopeia que iria circunscrever e definir aquilo que a paciente de Breuer chamou de sua condition seconde ou o seu segundo estado de consciência.

A ideia deste outro estado da consciência, anos depois, levaria à conceituação do Inconsciente freudiano, que ocorreu no processo de elaboração e escrita do livro A interpretação dos sonhos.

Ali, os sonhos deixariam de possuir um sentido orientado de fora, por parâmetros socioculturais, e passariam a ter uma lógica interna, circunscrita às dinâmicas que ocorrem no interior do aparelho psíquico.

 

Do que são feitos os sonhos?

Em alemão, Sonho é traduzido por Traum, palavra que guarda semelhança evidente com o termo grego traûma (ferida, avaria, derrota, desastre). Termo de onde originou-se trauma.

O que Freud logo percebeu em seus estudos foi que os sonhos seriam a estrada real para este outro estado da consciência, onírico por excelência, território dos traumas vivenciados, dos conteúdos  reprimidos, do Inconsciente.

Os sonhos são feitos de representações, imagens, traços acústicos, cores e traços de memória do corpo, conhecidos como sensações. Devido ao afrouxamento da consciência, durante o sono todo este material, acumulado ao longo da vida, torna-se novamente disponível ao nosso sistema sensorial.

No interior do psiquismo estas representações muitas vezes se deslocam do seu sentido original, aquele vivido, e os representantes delas se condensam em novas formas, criando novas imagens, sons, sensações. Ou seja, os elementos mínimos das nossas vivências reais, o nosso alfabeto particular, criam novas representações e estabelecem a comunicação em uma outra língua.

Esta recriação é, por si só, a satisfação de um ou mais desejos inconscientes que chegam mais próximos da superfície psíquica porque a consciência não precisa trabalhar intensamente no sono como na vigília, uma vez que o contato com o mundo exterior está praticamente suspenso.

Em A interpretação dos sonhos, tão conhecida quanto a ideia geral de que o sonho é a manifestação e a realização de um desejo é a epígrafe escolhida para abrir a obra: Flectere si nequeo superos, Acheronta movebo. Este verso contido em Eneida, do poeta romano Virgílio, diz: “Se não posso dobrar aos poderes celestiais, agitarei o Inferno”.

Se não podemos controlar, mudar a direção daquilo que vem de cima, dos outros ou de fora, agitamos aquilo que está abaixo, aqui dentro, na certeza imediata do que podemos sentir, ver, ouvir e tocar.

Assim são os sonhos, um agito infernal no cerne do psiquismo que ocorre quando o aparelho psíquico abdica daquilo que está lá fora, dos poderes celestiais, dos eventos e pessoas reais que tentamos controlar em vão.

 

Por que sonhar é importante?

O primeiro desejo satisfeito pelo sonho é o desejo de dormir.

Por isso é conhecida a afirmação de que o sonho é o guardião do sono. Este primeiro desejo que emerge na consciência manifesta-se em nosso corpo e nos leva à preparação e ao relaxamento necessário ao aparelho psíquico. Ele é quem nos coloca em posição para que outros desejos venham e se realizem na atividade onírica e é fundamental, porque oferece o espaço necessário à vazão do material inconsciente que tentou vir à tona o tempo todo durante o dia.

Todos já sentimos a verdadeira importância do desejo de dormir ao menos uma vez na vida, quando tomamos a errônea decisão de tentar ignorá-lo. A necessária descarga das nossas pulsões e a satisfação dos nossos desejos podem ser contidas pelo pré-consciente e o consciente até um determinado limite. Por isso, quando há uma severa privação do sono é bastante comum que ocorra a alucinação. Quando o Inconsciente toma à força um território do pré-consciente e do consciente e chega ao sistema perceptivo, ainda que o desejo de dormir não tenha sido satisfeito.

Um quadro de alucinação devido à privação do sono é o limite que demonstra a importância de sonhar, uma vez que a alucinação é uma atividade onírica. Quando ela ocorre enquanto estamos acordados, manifesta-se como um sonho que nos coloca em um perigo real. Isto porque não cedemos ao desejo principal de dormir e, consequentemente, não fechamos devidamente as portas do nosso aparelho psíquico para o mundo exterior, algo que nos permite satisfazer nossos desejos sem correr riscos.

O sonho é uma conversa franca do sonhador consigo mesmo, manifestando e satisfazendo os próprios desejos incontroláveis, naquele instante, pela sua consciência. Desejos que, na imensa maioria do tempo, quando estamos acordados, tentamos controlar com muito esforço.

É deste mesmo mundo subterrâneo, inconsciente e pulsional, que emerge a nossa vivência neurótica na vigília cotidiana, nossos sintomas e o nosso sofrimento.

Sonhar é vital, porque nos liberta. O seu sonho é você sem amarras.

Ao sonhador, o fato de entrar em contato com estas vivências, ainda que simuladas e embaralhadas, permite uma distensão do aparelho psíquico (corpo e psiquismo) que relaxa, redimensiona e realoca certos afetos.

Muito depois de Freud, as neurociências comprovaram, por exemplo, a importância do sono, sobretudo na fase REM (Rapid Eye Movement), quando  ocorrem os sonhos. Nesta fase os olhos se movimentam intensamente e a atividade mental assemelha-se àquela da vigília. Somados os ciclos que se intercalam ao longo de uma boa noite de sono, a fase REM pode durar, ao todo, de 1h30m a 2h. É nesta fase que, com o trabalho do sonho, ocorre a absorção das experiências e dos conhecimentos adquiridos naquele dia que se encerrou.

Ou seja, uma boa noite de sono e de sonho envolve, também, uma forma de depuração daquelas vivências, quando os restos diurnos são incorporados a todo o material inconsciente que já possuímos. Quando o sono e o sonho atingem o seu objetivo, é porque se consolidou a memória afetiva e o registro dos eventos e aprendizados no nosso mundo interior. Estas são as manhãs em que acordamos bem, renovados, dispostos e, sobretudo, mais preparados para enfrentar o mundo exterior.

Esta depuração afetiva e o registro da experiência vivida são a adaptação imediata, diária, do aparelho psíquico na relação com o mundo exterior.

Por isso, em uma análise, os sonhos são um farto e rico material, porque, por mais que envolvam representantes e representações do passado e incorporem restos diurnos muitas vezes insignificantes, eles sempre expressam o desejo presente.

São muitas as pesquisas em curso sobre os sonhos. Não podemos deixar de destacar os estudos do neurocientista Sidarta Ribeiro, que tem se dedicado a uma necessária revalorização do papel dos sonhos em nossas vidas cotidianas.

No contexto em que vivemos, onde a pandemia da Covid-19 apresenta-se como um trauma coletivo global, temos o importante projeto “A Oniropolítica em Tempos de Pandemia”, promovido por pesquisadores da UFRGS, UFMG e USP.

Existem muitas outras iniciativas no Brasil e no exterior, contudo, ainda conversamos muito pouco a respeito dos nossos sonhos no dia a dia. Talvez, porque subestimamos a sua relevância, apesar de ser um tema que atrai muitas pessoas.

Procure saber mais sobre os estudos a respeito, mas, principalmente, sobre os seus próprios sonhos. Ao abrir os olhos pela manhã evite pegar o celular em um movimento automatizado. Dê tempo ao seu corpo, para que ele desperte aos poucos e ainda deitado. Este é um ótimo momento para tentar relembrar o sonho, pensar a respeito e, eventualmente, anotá-lo.

A tendência é que ao longo do dia esqueçamos detalhes preciosos e, por fim, todo o sonho. Isto é como desperdiçar algo mais valioso do que o ouro, porque os seus desejos e a sua história não têm preço e somente eles permitem realizar o seu presente e o seu futuro de maneira satisfatória.

Você sabe quanto possui no banco, mas se lembra daquilo que sonhou na noite passada?

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso na quarentena

O intuito deste artigo é o de esclarecer alguns aspectos da ansiedade em relação ao panorama atual. A introdução ao tema pode ajudar a desmistificá-lo e, consequentemente, a operar no sentido inverso da própria ansiedade.

O esperado aumento dos relatos de pessoas que se sentem ansiosas durante a pandemia vem se confirmando. Algumas delas, que não se percebiam assim, passaram a sentir uma leve ansiedade, enquanto outras sentiram a ansiedade aumentar.

Enquanto passarmos pelo duro e necessário isolamento social esta resposta psíquica ao que temos vivido será profundamente natural, desde que se dê em uma intensidade leve ou moderada. A grande questão envolve a avaliação pessoal sobre o que se sente: uma ansiedade leve, moderada ou severa. Muitas dúvidas podem surgir.

Por isso, conversar a respeito delas com profissionais da área de saúde mental torna-se ainda mais importante agora, uma vez que alguns sintomas podem incluir, eventualmente, fadiga e sensação de falta de ar. Em tempos de coronavírus, a mera possibilidade da confusão entre estes sintomas e aqueles da Covid-19, por si só, já é problemática.

O diagnóstico psiquiátrico da ansiedade segue diversos critérios que a classificam em alguns tipos de transtornos de ansiedade que muitas vezes são comórbidos entre si. Ou seja, uma pessoa com um deles, na maioria das vezes, terá, pelo menos, mais um.

Excetuados alguns destes tipos, para que a ansiedade seja considerada um quadro clínico patológico, geralmente – mas não sempre -, é necessário que os sintomas sejam persistentes por um período mínimo de meses. Estes sintomas só podem ser avaliados por um psiquiatra ou um psicoterapeuta (psicanalistas e psicólogos).

Da mesma forma que o colesterol não é ruim, mas o seu nível elevado no sangue é preocupante e necessita de uma intervenção médica, a ansiedade não é necessariamente ruim, mas o seu nível elevado deve ser acompanhado por um especialista.

Entretanto, mesmo quadros que não são severos podem e merecem ser atenuados com uma boa terapia. A ansiedade se manifesta em todos nós e, na imensa maioria das vezes, ela não assume um caráter patológico. Antes, ela é uma resposta natural do psiquismo frente às alterações percebidas no mundo exterior, no ambiente em que vivemos.

 

O que é a ansiedade?

Na psicanálise freudiana, a ansiedade recebe o nome de angústia. O termo original, Angst, comporta tanto a noção de ansiedade, quanto a de medo ou temor.

Em “As palavras de Freud”, o tradutor Paulo César de Souza aponta que a óbvia semelhança entre os termos Angst e angústia deve-se à sua origem comum no idioma indo-europeu, traçada a partir das derivações latina angustia (“aperto”) e indo-germânica angust (“estreiteza”, “aperto”).

Não é por coincidência que as descrições mais comuns da sensação de angústia contêm “um aperto no peito”. Há ainda o “frio no estômago” diante de algo iminente, como se o mesmo se contraísse ao perder calor.

Como suporte para conceituar a angústia, Freud também utilizou os termos Furcht (“medo”) e Schreck (“pavor”).

Esta breve explicação etimológica é necessária para que façamos uma distinção importante que nos ajuda a compreender a ansiedade, ou angústia, em relação aos objetos (para a psicanálise um objeto pode ser uma pessoa, ideia, pensamento, relação ou coisa material).

A angústia (Angst) é um sentimento causado pelo desprazer antecipado pelo psiquismo, que busca evitar o desprazer muito maior que seria gerado por um objeto.

Ela se origina no indivíduo devido à expectativa que ele cria a respeito da iminente presença de algo que despertaria um medo, justificável ou não. Esta é, propriamente na língua portuguesa, a concepção de angústia enquanto ansiedade.

Note a utilização do pronome indefinido “um” em “seria gerado por um objeto”. Esta indefinição remete ao objeto, real ou imaginado, porque muitas vezes ele não pode ser nomeado – ou, apontado conscientemente – pelo próprio indivíduo que sente a ameaça, a ansiedade. Como exemplos, assim ocorre no transtorno de Pânico e no transtorno de ansiedade generalizada.

Ilustração de Lucile W. Holling para o poema “Dandelion Bubbles”, em Around a toadstool table – A child´s book of verse, de Rowena B. Bennett, Chicago, 1930.

A expectativa gerada pela incerteza e pela indeterminação do objeto tensiona o aparelho psíquico (corpo e psiquismo) gerando um desprazer que o psiquismo entende ser um prenúncio daquele que será gerado pela presença, de fato, do objeto. Desse modo, posta a antecipação de um desprazer menor em relação ao que pode vir, o psiquismo tende a fugir daquela posição e buscar outra mais prazerosa.

O tensionamento do aparelho psíquico, percebido muitas vezes em regiões, músculos e nervos do corpo, tem por função mobilizar e preparar o indivíduo para empreender a fuga diante daquele objeto que pode – naquele instante não há dúvida de que irá – gerar ainda mais desprazer.

No senso comum, são conhecidas algumas fugas que surgem enquanto respostas à intensificação da ansiedade, logo, ao tensionamento. São aquelas associadas ao aumento do consumo de alimentos, especialmente doces, de bebidas alcoólicas e do tabagismo, por exemplo. Basicamente, porque são saídas imediatas e estão amplamente disponíveis na sociedade de consumo.

Repare que, em meio à pandemia em que estamos vivendo, têm sido recorrentes as notícias e artigos que abordam o aumento generalizado do consumo de álcool. Da mesma forma, os mais afortunados, com seus vastos estoques alimentícios, percebem o necessário cuidado extra para manterem o peso durante o isolamento social.

Na língua portuguesa, o medo (Angst ou Furcht) é a concepção de angústia que se refere ao sentimento que surge quando este objeto pode ser nomeado e definido pelo indivíduo. Portanto, quando ele está, ainda que indiretamente, presente na consciência. Como em uma determinada fobia. Por exemplo, o claustrofóbico sabe da sua aversão aos espaços fechados. Basta que ele visualize ou imagine uma situação em que ele se reconheça em contato direto com o objeto fóbico para que a angústia, ou ansiedade, tome conta.

Já o pavor (Schreck) não é uma concepção, ou sentido da angústia, mas a realização daquilo que ela apenas antecipa. Ele é a descarga abrupta do tensionamento que tomava o indivíduo. Ele surge quando a expectativa se realiza no contato direto com o objeto que causava a ansiedade e o medo.

Portanto, do ponto de vista freudiano, a ansiedade e o medo não são etapas sequenciais, mas traduções das manifestações da própria angústia, que é conhecida popularmente no Brasil, somente, como ansiedade.

 

O que muda com a pandemia?

Após esta breve apresentação, esperamos que tenha ficado evidente como uma situação de pandemia altera, basicamente, quase tudo o que diz respeito à ansiedade.

Ou seja, é natural que este momento de indefinição altere a intensidade, a modulação e o caráter dos nossos afetos em relação a quase todos os objetos, como: mãe, pai, namorada, cachorro, gato, amigos, emprego e os nossos próprios pensamentos.

É importante ressaltar que tais mudanças ocorrem no interior do psiquismo, porém, reverberaram pelo corpo. Além de nódulos e tensões musculares, a ansiedade pode levar a episódios de insônia, ou, através do consumo excessivo de café ou álcool, atrapalhar a recuperação ideal do corpo e do psiquismo durante o sono.

Ainda, sua tendência é a de aumentar a irritação e intensificar o cansaço. A fadiga pode fazer com que fiquemos o dia todo no sofá assistindo séries, procrastinando atividades necessárias, mas, ainda assim, sem alcançar a desejada sensação de relaxamento própria às atividades de lazer.

Por isso, as atividades físicas são ainda mais importantes durante este período. Preferencialmente, em casa, mas, se não for possível, pequenas caminhadas diárias certamente atenuarão a ansiedade. Antes, informe-se sobre as devidas recomendações, como a de ficar, no mínimo, a 4 metros de distância da pessoa que caminha na sua frente.

Algumas vezes sentimos uma ansiedade que não sabemos de onde vem, noutras conseguimos defini-la com uma certa clareza. Um exemplo é aquela que atualmente toma algumas pessoas, em relação às incertezas no mercado de trabalho.

Conversar francamente a respeito destas mudanças, dos desejos, das expectativas e medos envolvidos é fundamental para diminuir a tensão, a ansiedade, a angústia. Seja com a família, os amigos ou com um psicoterapeuta.

O corpo, o cérebro e o psiquismo possuem uma ampla e maravilhosa plasticidade. Quando o mundo exterior passa por uma grande transformação, eles sempre são capazes de se readaptar.

Vivemos um momento doloroso, fundamentalmente para parentes e amigos das vítimas, mas que também é uma possibilidade de readaptação não apenas para indivíduos, mas para a humanidade.

Isto significa que, preservada e tratada a saúde imediata do maior número possível de pessoas no mundo todo, com as devidas cobranças, ações e precauções coletivas recomendadas diante da Covid-19, tais mudanças externas podem ser catalisadoras de transformações interiores e, consequentemente, de concepções e ideais partilhados que movem grandes questões sociais.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso durante a quarentena. Ao indivíduo, na maioria das vezes, a ansiedade é apenas a precursora de um momento ou um período mais prazeroso e melhor.

Algumas vezes não desejamos as mudanças e podemos ficar bem e confortáveis com a sensação de que está tudo igual. Em outras tantas, as desejamos, mas não sabemos como concretizá-las. Por fim, existem momentos como esse, quando as mudanças chegam sem perguntar e o que nos resta é, simplesmente, construir um destino para elas.

O resto é desejo.

A importância da psicanálise durante a pandemia

A sociedade global, em compasso de espera, não parou, mas quase. Se tantos não puderam adotar o isolamento social como medida protetiva durante a pandemia – e ainda tiveram suas atividades diárias intensificadas por trabalharem em setores essenciais, como os da saúde, transporte, segurança pública e limpeza urbana -, bilhões de pessoas aportaram em uma quarentena caseira.

Em comum, as rotinas alteradas e, com elas, os relacionamentos, pensamentos e sentimentos remoídos diariamente pela avalanche de notícias que compartilha democraticamente sofrimento, desespero, impotência, tristeza e dor. Somente no Brasil são milhares de mortos e dezenas de milhares de pessoas enfrentando o luto enquanto estão imperativamente distanciadas de amigos e parentes.

É praticamente impossível ficar indiferente a esta situação, ainda que se assuma um perigoso estado de negação diante da realidade. Isso porque, neste contexto frágil e trágico, mesmo os mais afortunados e saudáveis adotaram o teletrabalho ou home office, como preferir.

Trabalhadores formais que não gozam desta possibilidade receberam férias compulsórias, na expectativa de que, em um futuro breve, não venham a engrossar a longa fila de desempregados que dá a volta em nosso país. Já os informais, improvisando estratégias em seus pequenos negócios, através da internet, encontraram uma dimensão ainda mais dramática da palavra sobrevivência.

Quase todos, com ou sem carteira trabalhista assinada, se virando como podem, trabalhando e vivendo sozinhos ou com a família e filhos dentro de casa, 24 horas por dia, 7 dias por semana. São casamentos de trinta anos, ou mais, redescobertos de maneira intensa. Relacionamentos recentes, forjados e atravessados por telas e redes sociais, nos quais tantos se deparam pela primeira vez com o poder do olhar, do silêncio e de um tempo a dois que parecia ter sido suprimido pelo século XXI.

Tudo isso imposto contrariamente aos desejos, sem culpados ou responsáveis, às custas da liberdade de ir e vir.

Estamos vivendo o indesejável. Porém, mesmo nele, os desejos não cessam. Então, para onde eles vão?

Male and Female Bathers with Umbrella. Alfred Grévin (França, s. XIX)

Até aqui vivenciamos um breve período, de meses, que já alterou alguns pressupostos sociais, políticos e econômicos, nas mais diversas sociedades e culturas inseridas no mundo globalizado. Transformações que dificilmente se encerrarão com o fim do isolamento social ou com a descoberta da tão sonhada vacina.

Talvez, e muito provavelmente, aquilo que estamos presenciando seja apenas o preâmbulo de um novo volume na obra da humanidade. Assim, para além de “fé na ciência” não se mostrar uma contradição em termos, diante das incertezas geradas por tamanhas mudanças comprimidas em um espaço de tempo tão curto, emerge em sua plenitude aquela que, até recentemente, era esquecida no trato diário ou resumida às frases de efeito nas redes sociais. A mãe de todas as ciências: a filosofia.

Note-se que esse ressurgimento não é a mera consequência do movimento que inclui os filósofos e pensadores pop que habitam as timelines, mas a própria causa do seu surgimento, que já vinha em curso com as novas questões colocadas pelo mundo contemporâneo. Nesse instante de pandemia tal demanda assume a almejada proposta da filosofia – para além do discurso e da retórica reproduzida por ouvintes, leitores e seguidores -, quando ela se desdobra em prática.

Quando o horizonte se aproxima demais e os olhos da alma só alcançam os arredores imediatos é porque já perdemos uma certa pureza e algumas certezas que nos estruturam e acalmam. São em momentos como esse, quando não podemos fugir das dúvidas, que a reflexão se revela como mais uma necessidade posta à sobrevivência.

A questão é que pensar, refletir ou filosofar, definitivamente não são tarefas simples, muito menos tranquilas. Elas geram desconforto, inquietude, angústia e podem chegar a doer no corpo. Sobretudo, agora, quando os corpos enclausurados encontraram uma parada inédita na história.

Como o corpo e a mente são faces da mesma moeda, na cotação da vida, muitos têm tido pela primeira vez a percepção de que mergulhos interiores podem ser tão arriscados quanto aqueles no mundo exterior. Nesse sentido, todas as psicoterapias são recursos preciosos, que nos ajudam a suportar o sofrimento na necessária travessia que se apresenta.

A psicanálise é uma das diversas psicoterapias.

Criada por Sigmund Freud, o seu diferencial em relação às demais é que ela refunda a noção de consciência da filosofia.

Antes, a mente era compreendida como aquilo que conhecemos racionalmente: a consciência era o estado do saber. Já as paixões, sentimentos e afetos, dependendo da tradição filosófica, partiam de forças vitais, deuses e até mesmo da própria consciência. O inconsciente era somente um estado de alienação, de não saber, do desconhecido que não habitava o psiquismo.

Freud alterou radicalmente estas noções ao afirmar que o Inconsciente, na verdade, é muito mais poderoso do que imaginavam os filósofos. Muito antes de ser um estado de não consciência sobre algo externo, ele é um espaço, e também uma dinâmica, no interior do psiquismo. Não um espaço e dinâmica quaisquer, mas a imensa parte daquilo que compõe o que chamamos de psique, que relaciona-se permanentemente com o corpo físico.

No Inconsciente residem os traumas, reminiscências e vivências antigas que compõem um tipo de conhecimento, advindo da nossa relação com o mundo, que foi reprimido. Dele também partem os desejos e as paixões. Ou seja, possuímos uma imensa força, um tipo de saber que não sabemos e que nos habita, nos molda e direciona nossas respostas, afetos, sentimentos e reações diante dos acontecimentos, na maioria das vezes, incontroláveis da nossa vida social, familiar e profissional.

Contando com dois instrumentos simples, a fala e a escuta, a psicanálise é uma prática consolidada, há mais de um século, como a cura pela palavra. Cura terapêutica, enquanto alívio do sofrimento, dos seus sintomas e da redescoberta de si. Um espaço de enfrentamentos e suporte da angústia, inerente à própria condição humana, do qual ninguém deve ser ou estar privado, fundamentalmente em tempos como o que vivemos.

Corona, conspiração, culpa e negação

Nos últimos anos, as redes sociais virtuais no Brasil, sobretudo o WhatsApp, ajudaram a constituir um pequeno legado: o movimento antivacina, o terraplanismo e outras tantas fake news diárias, antigamente conhecidas como mentiras.

Apesar deste alto custo ao conhecimento humano, existe um legado muito positivo no uso das mídias e comunicadores instantâneos. Por exemplo, o fato de que elas ajudam a aplacar alguns efeitos psíquicos do isolamento social. Porém, este artigo é sobre o legado anterior.

Há uma estrutura narrativa que tem funcionado de forma muito eficiente nestes novos tempos de instantaneidade, ao explorar certas demandas narcísicas das pessoas e se utilizar de recursos apelativos que escondem suas falsas premissas.

Podemos dizer que as teorias da conspiração formam o eixo social que coloca o carro da negação em movimento. A partir de qualquer uma delas tudo passa a ser descrito e articulado com uma incrível desenvoltura criativa. Elas demonstram um esforço de detalhamento obsessivo por parte dos seus criadores que, sem dúvida, seria condizente com o espírito transbordante de fantasias que rege, por exemplo, os grandes artistas.

Entretanto, esperávamos que duas questões fizessem com que o carro da negação não tivesse força para passar da primeira esquina.

 

  • A marcha da conspiração

Diferentemente do sentido proposto por qualquer obra de arte – seja ela um filme, série, música ou pintura – que pressupõe a comunicação, ainda que pela ruptura – as teorias da conspiração estimulam algo nada artístico: a anulação do outro. Para um teórico da conspiração não há escuta, logo, não há a fala do outro.

O problema é maior, porque, como a própria expressão sugere, há algo em comum a todas as múltiplas teorias: o caráter único da conspiração. Por isso, não as chamamos de teorias das conspirações, no plural.

Isso indica o porquê de tantas narrativas – ainda que extremamente diversas, como as fantasias são subjetivas – cativarem um público semelhante. Aos seus adeptos, elas satisfazem uma enorme demanda por reconhecimento. Para um teórico como esse só há uma grande, desconhecida e articulada conspiração, que somente uma articulada, enorme e conhecida pessoa descobriu em sua totalidade: ele.

No cerne das suas proposições há um explícito narcisismo infantil: ou você o aceita, ama incondicionalmente e o parabeniza pelas “descobertas” ou você passa a ser desprezível e merecedor da indiferença ou da raiva, uma vez que torna-se uma representação da própria conspiração.

Isto, por si só, é uma questão muito importante, porque afeta a vida social tanto do teórico da conspiração, quanto daqueles que o amam. Pessoas sofrem com isto, de parte a parte, e, certamente, a psicanálise e as diversas psicoterapias têm muito a contribuir nestes casos.

Entretanto, nestes novos tempos, um passo dado expandiu a dimensão daqueles que são afetados.

Diferentemente dos grande artistas, que produziram obras sublimes apreciadas pela sociedade – porque sublimaram suas fantasias – o outro grupo, heterogêneo, cresceu e se organizou com as mídias sociais. Dele, estimulados por um duelo interno de fantasias, seus membros resolveram partir juntos para a ação social.

O que há em comum nessas diversas fantasias em ação, além da autofagia, é a abolição da condição do outro enquanto sujeito, uma vez que somente aquele que detém a “ciência” da conspiração em curso sabe “a verdade”. Desta forma, o outro – que não aceita a (sua) verdade – torna-se um empecilho ao que – o conspiracionista acredita – é o seu dever de agir.

Algo que já era grave e perigoso em um contexto sociopolítico aparentemente normal, neste momento, ajuda a promover a calamidade pública.

Homens jogando boliche com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

Homens jogando bocha com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

  • O ponto morto da negação

A segunda questão que poderia fazer o carro da negação estacionar chama-se: realidade. Porém, é exatamente ela o alvo.

Obviamente, o impacto econômico provocado pela pandemia afetou ainda mais a combalida economia brasileira, impondo a muitos a necessidade de se exporem ao vírus, paradoxalmente, para conseguirem sobreviver. A partir de algumas perspectivas teóricas poderíamos pensar sobre alguns dos tantos sentidos do que seja a realidade, só que o que nos cabe discutir não espera.

Há algo posto em dados, nomeado nas notícias, de jornais e conhecidos, que está começando a ser compreendido pela ciência de fato. Esse algo chama-se pandemia provocada pela Covid-19 e as suas consequências devastadoras, como as milhões de pessoas que perderam parentes, amigos, e estão vivenciando o pior dos lutos: aquele em que não se pode despedir do morto.

A questão que nos interessa, aqui, portanto, circunscreve-se àqueles que poderiam sobreviver economicamente no isolamento social.

Há poucos anos poderíamos afirmar, sem medo de errar: a realidade se impõe a todos. Agora, a questão, de vida ou de morte, é : quando?

Quem já vivenciou a perda de alguém amado pode saber o que é o estado de negação, a primeira das cinco etapas do conhecido modelo do luto, criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. Segundo este modelo, para alguns que enfrentam o luto, a negação é a primeira reação, inconsciente, diante da perda de um objeto fundamental (para a psicanálise, um objeto pode ser tanto uma pessoa, quanto uma ideia, um pensamento, uma relação ou uma coisa física).

Esta reação ocorre porque o objeto perdido estruturava narcisicamente o psiquismo, naquele lugar que nos faz ser e saber quem somos. Assim, a negação é a tentativa do Inconsciente de reagir ao desmoronamento do Eu. Ou seja, quando a dor é tamanha e o medo de viver sem aquele objeto é tão grande, a realidade torna-se insuportável. Portanto, em um primeiro momento, o psiquismo a nega, porque precisa sobreviver.

Uma boa parte do clima conspiracionista que avança pelas correntes do WhatsApp – para além das mentiras de poucos, por má-fé – também desponta como uma negação da realidade. Cada qual com suas questões na vida encontrou, através dessas fantasiosas narrativas, um meio para organizar os seus sentimentos.

Botar em marcha o carro da negação, portanto, é a ação que promove, não a obra de arte enquanto fruto da sublimação das fantasias, mas o avanço destas sobre a realidade social. Por isso, a consequência da ação não será, jamais, a criação que partilha sentidos, mas a sobreposição ou a imposição deles.

Esta imposição permite, àquele que impõe, extravasar os seus fracassos e perdas. O expurgo dos afetos de pequenos lutos diários, que antes não encontravam o devido escape, encontram uma prazerosa sensação, progressiva e libertadora, para a qual pouco importa a realidade.

Assim, tragicamente, neste momento, vemos algumas dimensões da experiência unirem-se na negação. De um lado, parentes de pessoas mortas pela pandemia, e, do outro, movimentos antivacina e demais negacionistas.

Esse carro acelerado nos leva a um último aspecto importante.

 

  • A culpa após a pandemia

A culpa é um sentimento que acumula-se em doses homeopáticas. Todos a sentimos ao menos uma vez na vida. Ela é traiçoeira, porque assemelha-se à fatura do cartão de crédito quando chega. Enquanto compramos tudo está uma maravilha, mas lá no fundo desconfiamos que não deveríamos fazer aquilo.

Um sentimento que pode ser antecipado pelo psiquismo, diferentemente daqueles suscitados por grandes eventos traumáticos que escapam ao nosso controle. Afinal, ao menos no caso das compras, sabemos que a fatura chegará.

Em outras alçadas da vida não muda muito, quase sempre é assim.

Entretanto, continuamos insistindo nos erros (mas também acertos), porque esta condição desejante, agitada em fantasias, não cessa jamais. Também, porque temos a certeza de que satisfazer um desejo sempre é profundamente prazeroso e sabemos bem que há algumas culpas e outras culpas.

Neste momento de necessário isolamento social, quando estados de negação da realidade tristemente confluem rumo à calamidade pública, muitos que não são teóricos da conspiração, nem necessitariam sair do isolamento – por sobrevivência ou devido à profissão – estão fazendo exatamente isto.

De fato, ficar sem abraçar quem amamos e sem sair de casa são duas privações que estimulam as fantasias e, assim, caso a negação não se coloque, o desejo de voltar à normalidade só tende a crescer e apertar o peito em ansiedade e saudade.

Porém, há um fator importante nisto tudo.

O fato de raramente podermos identificar, em meio a uma epidemia ou pandemia, quem foi o agente transmissor que infectou alguém, aparentemente tem feito muitos se desresponsabilizem por suas atitudes. Sobretudo, porque o coronavírus pode ser assintomático para 80% das pessoas. Como jamais saberemos com certeza quem contaminou quem, é impossível estabelecer legalmente um culpado.

Isto significa que, principalmente os jovens – mas não só – estão fortemente imantados pelas suas fantasias e desejos e tentados a saírem pelas ruas despreocupadamente. O equívoco não se dá, somente, ao subestimar as estatísticas que apontam que 20% podem ter sintomas e 5% correm o sério risco de morrer. Ele ocorre quando esta desresponsabilização, em sua jornada narcisista, expõe outras pessoas ao risco. Outras pessoas que não podem aderir ao isolamento, por necessidade.

Os que agem desta forma estão impondo o seu desejo e as suas fantasias às custas da vida dos outros.

Estas pessoas não estão em um estado de negação, mas podem estar se deixando levar, inconscientemente, pelo clima de alguns que estão. O que elas não vislumbram é que quando a pandemia passar, com boas chances de que sobrevivam, a culpa interior pode tornar-se a mais dolorosa das penas, que nenhum tribunal seria capaz de impor. Principalmente, caso percam alguém amado.

No luto, a negação quase sempre passa. Ele é elaborado em função do tempo e, também, de uma boa terapia. A vida segue.

Porém, quando a culpa envolve-se na história, o luto vira melancolia.

Notem: na vida conhecemos muitos perdoados e desculpados por erros graves, mas dificilmente encontramos um ex melancólico.

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Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, recomendo a leitura de dois textos de S. Freud: Introdução ao Narcisismo e Luto e melancolia.