Maus: a rataria na trama golpista e a Noite dos Cristais

Quando peço a um paciente que disponha toda reflexão e me conte tudo o que lhe passa pela cabeça, atenho-me à premissa de que ele não pode abandonar as meta-representações relativas ao tratamento, e me considero fundamentado para inferir que isso que ele me conta, de aparência mais inofensiva e arbitrária que seja, tem relação com seu estado patológico. (Sigmund Freud em A interpretação dos sonhos)

A associação livre é uma técnica fundamental da psicanálise, desenvolvida por Sigmund Freud. Ela consiste em pedir ao paciente que diga tudo o que vier à mente, sem censura ou julgamento, independentemente do quão irrelevante, desconfortável ou incoerente possa parecer aquele conteúdo. O seu objetivo é permitir que conteúdos inconscientes do paciente, normalmente reprimidos, venham à tona. Devido a esse objetivo – e não a uma lógica de “agradar o cliente” – é que todos os psicanalistas sabem a importância terapêutica de tentarem fazer dos seus consultórios espaços onde os pacientes sintam-se confortáveis e seguros fisicamente, para falarem livremente do seu universo mais íntimo e, muitas vezes, secreto.

Na era das novas tecnologias, o que não faltam são diálogos íntimos que vêm à luz do debate público devido aos mais variados interesses. Muitas vezes descontextualizados, outras tantas, não. A grande audiência gerada por esse tipo de voyeurismo contemporâneo está no cerne do debate sobre a diluição da fronteira entre o público e o privado e sobre a monetização facilitada aos conteúdos pretensamente escandalosos, mas fabricados por aspirantes à fama.

Esse não é o caso de diálogos do universo da política anexados às investigações policiais e da justiça. Analisados em um determinado contexto de crimes, tais conteúdos podem revelar como um discurso público pode mascarar verdadeiras intenções e secretos fins políticos.

O que se segue, portanto, é um breve comentário sociopolítico que amplia o conceito de associação livre com a intenção de extrair algo além daquilo que é explícito. Para tanto, utilizo dois pequenos trechos de falas que circulavam em grupo de militares de alta patente que, de acordo com a investigação da Polícia Federal, preparavam uma trama golpista após o segundo turno das eleições presidenciais de 2022.

Ao assistirmos a reportagem do Fantástico que revelou alguns áudios dos diálogos do planejamento de um golpe de Estado – que envolveria os assassinatos do presidente da república e o seu vice, recém eleitos, um ministro do STF e, no mínimo, mais uma figura pública (ainda desconhecida) -, uma frase dita pelo general Mário Fernandes a um assessor de Jair Bolsonaro chama muito a atenção, e possivelmente revela muito mais do que o óbvio:

Qualquer solução, caveira, tu sabe que ela não vai acontecer sem quebrar ovos, sem quebrar cristais.

O vocativo “caveira”, revelador da estética da necropolítica em curso naquele momento, provavelmente refere-se ao título concedido ao interlocutor, indicando que ele concluiu o Curso de Operações Especiais conduzido pelas Polícias Militares ou Forças Armadas do Brasil. Isso não é propriamente uma novidade, dado o aparelhamento do Estado durante o governo Bolsonaro por militares e herdeiros institucionais do general Sylvio Frota. Já a expressão “sem quebrar ovos” é bastante popular no Brasil, derivada de “não se faz omeletes sem quebrar ovos”. No entanto, não podemos dizer o mesmo da expressão “sem quebrar cristais”, da qual não se encontra registro de dito de origem popular.

Em função de todo um contexto – não só da fala do general, mas da ascensão do neofascismo brasileiro na última década –  tal associação metafórica ‘fora de lugar’ talvez revele um profundo arranjo semântico entre “quebrar cristais” e os objetivos revelados pelas investigações sobre o grupo de onde foi extraído o diálogo e a fala do general. Um arranjo que remete qualquer estudioso ou observador atento a um episódio certamente bastante conhecido pelos militares brasileiros – talvez, admirado por alguns deles -, por todos os historiadores e judeus do mundo: A Noite dos Cristais (Kristallnacht).

Evidentemente, os fatos históricos são bastante distintos e incomparáveis. O Brasil atual não é a Alemanha nazista.

No entanto, se precisamos rememorar e estudar a histórica aproximação entre o fascismo e o nazismo, o mesmo se aplica em relação ao neofascismo e o neonazismo na contemporaneidade.

A Noite dos Cristais e os cristais brasileiros

A Noite dos Cristais, ocorrida entre 9 e 10 de novembro de 1938, marcou um ponto de inflexão na perseguição aos judeus na Alemanha nazista. Essa onda de violência, que se estendeu pela Alemanha, Áustria e regiões da Tchecoslováquia ocupadas, resultou no saque e na destruição de sinagogas, lojas, residências judaicas e na profanação de cemitérios judaicos, além da morte de 91 judeus e a prisão de aproximadamente 30 mil homens judeus, que foram enviados a campos de concentração. O nome se deve aos cacos de vidro que cobriram as ruas após o massacre.

Sinagoga em chamas após a Noite dos Cristais. Berlim, 1938.

O pretexto para essa onda de violência foi o assassinato do diplomata alemão Ernst vom Rath, em Paris, por Herschel Grynszpan, um jovem judeu polonês de 17 anos, cuja família havia sido recentemente deportada, entre tantos outros, da Alemanha para a Polônia. A Polônia se recusou a receber os deportados, que passaram a viver em um campo de refugiados próximo à cidade de Zbaszyn, na região fronteiriça entre os dois países.

Em meio ao desespero, Grynszpan, que havia fugido da Alemanha e residia ilegalmente em Paris, dirigiu-se à embaixada alemã na cidade. Lá, aparentemente movido pela intenção de vingar as condições adversas enfrentadas por sua família, disparou contra o funcionário diplomático que o atendia. Vom Rath, o diplomata atingido, morreu em 9 de novembro de 1938, dois dias após o ataque. Coincidentemente, essa data marcava o “aniversário” do Putsch da Cervejaria (Beer Hall Putsch), a tentativa de golpe para derrubar o governo do Estado da Baviera, organizada por Adolf Hitler e o Partido Nazista, nos dias 8 e 9 de novembro de 1923. Aquela tentativa fracassou, mas tornou-se um marco significativo no calendário nazista.

O regime nazista utilizou esse incidente como justificativa para incitar ataques coordenados contra a comunidade judaica, apresentando-os como manifestações espontâneas da população. Forjar uma imagem de “espontaneidade das massas” é uma estratégia para buscar legitimar e expandir os objetivos de ruptura de pactos civilizatórios por parte de uma minoria violenta. Assim também tem sido feito no contexto político brasileiro contemporâneo, com o seu ápice, até aqui, nos quatro anos do mandato de Jair Bolsonaro, quando foram explicitadas inúmeras vezes as intenções golpistas, os ataques às instituições, a incitação ao ódio, à violência armada e a desumanização de opositores políticos, minorias e grupos identitários.

Durante a Noite dos Cristais, as forças policiais e os bombeiros receberam ordens explícitas para não interferirem nos crimes e incêndios que consumiam as sinagogas e estabelecimentos judaicos, exceto para evitar que as chamas se espalhassem para propriedades “arianas”.

Prédio do STF depredado após atos golpistas do dia 8 de janeiro. Crédito: Fellipe Sampaio/SCO/STF.

No Brasil atual, lembremos que a Polícia Federal concluiu que houve falhas e indícios de atuação criminosa da cúpula da segurança pública do Distrito Federal nos ataques de 8 de janeiro. Em relatório enviado ao Supremo Tribunal Federal, a PF apontou que houve “falhas evidentes” do ex-secretário Anderson Torres e cita o governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB).

Trecho do relatório da PF: Conclui-se que as falhas da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal (SSP/DF) no enfrentamento das manifestações de 08/01/2023 são evidentes, especialmente pela ausência inesperada de seu principal líder, ANDERSON GUSTAVO TORRES, em um momento de extrema relevância aliado a falta de ações coordenadas e a difusão restrita de informações cruciais contidas no Relatório de Inteligência no 06/2023 foram fatores decisivos que contribuíram diretamente para a ineficiência da resposta das forças de segurança.

Relembre-se, ainda, o monitoramento ilegal de pessoas, opositores, autoridades e aliados, por parte da ABIN paralela no governo Bolsonaro. O gesto supremacista feito por Filipe Martins, um dos 37 indiciados na última semana – junto ao general Mário Fernandes – e uma das figuras mais próximas do ex-presidente e seu assessor especial para assuntos internacionais. Registre-se, antes, a conhecida interlocução de Bolsonaro com grupos neonazistas. Mais, o fato de que ele recebeu aos risos e oficialmente, no Palácio do Planalto, a deputada Beatrix von Storch, neta de um ministro de Adolf Hitler e membro do partido Alternativa para a Alemanha, sigla neonazista alemã. Além do fato de que após a ascensão do bolsonarismo, o número de células neonazistas no país cresceu de 75 para 530. Por fim, o deplorável episódio no qual o secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, em rede nacional fez um discurso esteticamente semelhante e com trechos idênticos a um discurso do ministro de Propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels, antissemita radical e um dos idealizadores do nazismo.

Como notamos, a aproximação do neofascismo com os ideais neonazistas não é um mero acaso.

Maus: a rataria bolsonarista

Maus é uma aclamada graphic novel que combina memórias do Holocausto com uma narrativa autobiográfica. Dividida em dois volumes – Maus: A Survivor’s Tale – My Father Bleeds History (1986) e Maus: And Here My Troubles Began (1991) –, a obra apresenta a história de Vladek Spiegelman, judeu polonês sobrevivente do Holocausto, contada por seu filho, o sueco Art Spiegelman.

O título Maus é a palavra alemã para “rato”, foneticamente semelhante ao inglês mouse. Ele carrega um significado simbólico central para a obra de Art Spiegelman, pois reflete a metáfora visual e narrativa utilizada ao longo da graphic novel. Na história, os judeus são representados como ratos, enquanto os nazistas são retratados como gatos. Essa escolha remete diretamente à propaganda nazista que desumanizava os judeus, comparando-os a pragas.

Essa poderosa imagem dialoga com a propaganda antissemita usada pelos nazistas, que retratavam os judeus como seres inferiores e ameaçadores à “pureza” racial ariana. Spiegelman utiliza essa representação para desconstruir o discurso nazista e evidenciar o horror, a violência e a irracionalidade do preconceito e do antissemitismo.

Enquanto isso, nos poucos áudios revelados, até aqui, dos indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa, ouvimos um oficial dizer:

O presidente tem que fazer uma reunião com o petit comité. Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião. Tem que ser a rataria. Tem que debater o que vai ser feito.

Abaixo da ética e sem sutileza alguma, o discurso moral do grupo que pretendia promover o fechamento de um regime ditatorial no Brasil revela, na intimidade segura, a imoralidade das suas intenções políticas, própria dos canalhas. No jargão militar, “rataria” refere-se àqueles que agem escondidos, sem se importarem com a legalidade, com a linha de comando e a institucionalidade das próprias FFAA.

Em português, o adjetivo ‘maus’ qualifica aqueles que se distinguem pelo caráter ruim, moralmente condenável, aqueles dados a fazer maldades, que contradizem a justiça, o dever, os que são contrários à lógica, às regras; os impróprios, os incorretos.

A despeito de quaisquer possíveis análises dos seus inconscientes, tais diálogos íntimos e, por isso, mais reveladores, comprovam o que já se sabe há anos: a rataria bolsonarista tem plena consciência do que é, disse e fez.

Que lhes reste a justiça, sem anistia. Terrorismo de Estado, nunca mais!

 


Saiba mais sobre a Noite dos Cristais no Holocaust Encyclopedia: https://encyclopedia.ushmm.org/content/pt-br/article/kristallnacht

 

 

Palestina, Israel, antissemitismo, neonazismo e Brasil

À luz dos fatos – Israel, antissemitismo e neonazismo

Um judeu não é, necessariamente, israelense. Um israelense não é, necessariamente, judeu. Um judeu não é, necessariamente, sionista. Um israelense não é, necessariamente, sionista. Um sionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, um antissemita. Judeus, israelenses e árabes não são, necessariamente, religiosos. As combinações são múltiplas, porque, como disse Hannah Arendt, quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra. Àqueles que não toleram a pluralidade, os chamamos intolerantes. Quando os intolerantes desumanizam o outro em sua condição, os chamamos fascistas. Um intolerante não é, necessariamente, um antissemita. Nem um fascista é, necessariamente, antissemita.

Todavia, o fascismo e o antissemitismo são pressupostos do neonazismo. Um adendo fundamental: apesar do termo semita no imaginário popular referir-se somente aos judeus, ele é relativo ao grupo étnico e linguístico ao qual se atribui Sem como ancestral, um personagem do livro Gênesis, filho de Noé. Portanto, segundo o Antigo Testamento, os povos semitas são os hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes; e antissemita é aquele cujo ódio, étnico, direciona-se contra os membros ou os descendentes desses povos. Assim, sem contradição mítica, histórica e lógica alguma, mas sempre nutrido de ódio direcionado a um semita que ele desumaniza, um outro semita pode ser, também, um antissemita. Um antissemita é um neonazista quando inspira-se na ideologia e estética nazista, cultuando os seus símbolos e propagando o seu discurso, ainda que nas sombras dos porões e da deep-web. Quando ele externaliza o seu ódio no campo simbólico, sociocultural, organizando-se politicamente, vocalizando e expressando a sua ideologia e empenhando os seus esforços físicos e mentais em práticas e ações cujo objetivo final pressupõe, enquanto projeto político, exterminar a existência de um outro em razão da sua origem semita, mas não somente. Um neonazista, muito provavelmente, também defenderá o extermínio de outros grupos étnicos, identitários, políticos e/ou econômicos, como ciganos, pobres, gays, negros, trans, socialistas ou comunistas.

Criticar o Estado de Israel não é desejar a sua abolição. Defender a constituição do Estado da Palestina não é antissemitismo. Defender um único Estado, partilhado igualmente e sob as mesmas leis para árabes e judeus não é antissemitismo. Criticar o Estado de Israel não é antissemitismo, porque um Estado é uma organização político-administrativa governada por uma composição política, submetido a uma constituição, a leis, tratados, acordos e organismos internacionais que desautorizam expressamente quaisquer medidas que promovam o higienismo visando a uma supremacia étnica em seu território. São vários os casos, ao longo da história, dos grupos e movimentos que tentaram fazê-lo. O mais conhecido, em função do essencial trabalho de preservação da memória por parte das entidades judaicas, foi o nazismo, que, vale ressaltar na era da desinformação, foi um movimento ideológico e político de extrema direita.

Por fim, um Estado moderno não confunde-se totalmente e somente com um grupo étnico. Sigmund Freud, que sofreu muito com o antissemitismo europeu, um dos mais brilhantes teóricos da humanidade e que nos legou a psicanálise, talvez dissesse que seria prudente aquele que compreende toda e qualquer crítica a Israel enquanto uma manifestação antissemita, antes de externalizar a sua crítica ou ódio por aquele que ele supõe ser antissemita, investigar em si aquilo que, talvez, o seu próprio Eu invista no outro. A começar pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que já afirmou que Hitler não tinha intenção de matar judeus e teria sido convencido por um ex-líder islâmico de Jerusalém a executá-los, relativizando o papel do nazismo no Holocausto e revelando, há anos, aquilo que se apresenta agora como um projeto antissemita e neonazista de extermínio do povo árabe palestino.

O governo de Israel tem ministros neonazistas. Isso realmente lembra a Alemanha em 1933.

Quem disse a frase acima ao jornal israelense Haaretz, há 1 ano, foi Daniel Blatman, historiador judeu e israelense que obteve um Ph.D., summa cum laude (a maior distinção em uma titulação acadêmica), enquanto foi, ao mesmo tempo, professor sênior de Judaísmo Contemporâneo pelo Instituto de Judaísmo Contemporâneo da Universidade Hebraica de Jerusalém e descrito como um acadêmico excepcional pelo Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Manifestações – Brasil e Israel

No dia 18 de fevereiro de 2024, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, após participar da reunião da cúpula da União Africana em Adis Abeba, Etiópia, e reiterar a repulsa dele e do Estado brasileiro aos atos de terrorismo do Hamas, bem como ao genocídio em curso na Faixa de Gaza, disse em uma entrevista:

O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.

Lula respondeu a uma pergunta em uma entrevista, portanto, de improviso, demonstrando consternação diante de algo que é excepcional e estarrecedor, não convencional e horrível. Entretanto, apesar do improviso, não há qualquer equívoco fático nessa afirmação.

A fala gerou uma repercussão imediata na conjuntura interna. Sobretudo, por parte de uma ampla oposição orientada por extremistas de direita que pouco têm a dizer nos últimos meses, por estarem às voltas com inúmeras investigações sobre corrupção, omissão genocida na pandemia, crimes variados e a comprovada tentativa de Golpe de Estado. A indignação veio em uníssono por parte de algumas entidades judaicas que não representam a pluralidade da comunidade judaica brasileira e mundial, da imprensa, que aderiu imediata e acriticamente ao discurso, relembrando os seus tempos de Lava Jato, e por adeptos do bolsonarismo, enquanto expressão relevante do neofascismo brasileiro.

Jair Bolsonaro, interlocutor de neonazistas brasileiros e apoiado por eles, como demonstrou minha saudosa amiga Adriana Dias. O aliado dele, Roberto Jefferson que, além de receber a Polícia Federal a tiros, também abriu as portas do seu partido a neointegralistas. Bolsonaro que recebeu, com um largo sorriso no rosto, entusiasmados neonazistas alemães em seu gabinete, durante o exercício do seu cargo, enquanto chefe do Estado brasileiro. Aquele que adquiriu, por dezenas de milhões de reais, e utilizou um software israelense de espionagem e monitoramento de civis, desafetos, opositores e aliados.

Repercussão, portanto, para instrumentalizar os que restam bolsonaristas. Muitos dos quais usaram amplamente o símbolo máximo de Israel, a sua bandeira, em seus avatares durante as últimas duas campanhas presidenciais no Brasil, quando, também, bandeiras físicas de Israel disputavam espaços, em manifestações ilegais nas ruas do Brasil, com cartazes que pediam intervenção militar, fechamento do STF e o extermínio de opositores. Repercussão artificial, para mobilizar aqueles que ainda seguem o ex-presidente, que, mais do que um aliado, contou e conta com a ajuda de Benjamin Netanyahu. Instrumentalização daqueles que ainda são guiados por um grupo político com aspirações paramilitares, e que contam com um projeto político fascista e neonazista. Grupo que já havia agendado uma manifestação para o próximo domingo, 25 de fevereiro, para explicar aos seus adeptos aquilo que se recusam a explicar em entrevistas e depoimentos à justiça, apesar das delações já registradas e inúmeras provas colhidas. Posteriormente à reação da acuada extrema direita brasileira, a fala foi amplificada, hiperdimensionada e deturpada, numa resposta desmedida e jamais vista, pelo corpo diplomático do governo Netanyahu.

Ao contrário da mentira que a isolada diplomacia israelense difundiu de maneira tosca, rasa, grosseira e escatológica nas redes sociais virtuais, Lula não negou o Holocausto e não foi antissemita. Ele afirmou o horror que foi o Holocausto e a sua excepcionalidade na contemporaneidade. Além, ele traçou, sim, um paralelo histórico pertinente, com fins retóricos, entre a ação deliberada de Hitler e do partido nazista, ao arrepio da comunidade internacional, de exterminar judeus e a excepcionalidade da ação deliberada de Netanyahu e do seu grupo na Faixa de Gaza, ao arrepio de acordos atuais e aqueles jamais cumpridos, que remontam à origem da ONU e à origem do próprio Estado israelense.

A esta altura, há uma profusão de comprovações de crimes de guerra e acusações gravíssimas de genocídio, tantas quantas as provas dos crimes do bolsonarismo, que, entre outros, mataram centenas de milhares de pessoas durante a pandemia. Por isso, grande parte da comunidade internacional apoiou a fala de Lula e a imensa maioria das manifestações nas redes sociais virtuais, em inglês, exaltaram o presidente. As manifestações em português, nas primeiras horas, foram massivamente críticas a Lula e comprovadamente não foram orgânicas. Ou seja, foram orquestradas por opositores e impulsionadas por robôs, em um modus operandi idêntico ao que alçou o fascismo brasileiro ao poder, com a disseminação de distorções, mentiras e ódio. No segundo dia, a tendência inverteu-se completamente, fazendo com que a imprensa brasileira recuasse de toda a sua assertividade mecânica, acrítica e a serviço de um projeto político internacional fascista e neonazista.

A diplomacia brasileira entrou em ação, respondendo duramente ao disparate da atualmente ridicularizada diplomacia israelense. Diplomatas são os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra.

Manifestações – Estados Unidos e Israel

Ontem, 20 de fevereiro de 2024, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA vetaram mais uma vez uma proposta de cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.

Estamos a poucos dias do início do Ramadã, prazo limite dado por Israel para a libertação dos reféns feitos pelo Hamas ou para o início de uma ofensiva terrestre, coordenada com os EUA e o Egito, em Rafah, sul de Gaza. Lá estão 1,5 milhão de sobreviventes palestinos deslocados e encurralados pelas fronteiras estabelecidas ilegalmente por Israel. A esta altura, o veto já não é revelador em sua recorrência cega, mas persiste estarrecedor diante da possibilidade concreta de que a intensificação do genocídio – que não é guerra, em função da avassaladora assimetria de forças – possa levar a uma escalada ainda mais catastrófica, arrastando o mundo para uma guerra que pode envolver países africanos, todo o oriente médio e as potências mundiais.

As palavras finais lidas pela embaixadora estadunidense Linda Thomas-Greenfield, de um discurso elaborado previamente, foram:

Dito isto, pretendemos fazê-lo da forma correta, para que possamos criar as condições adequadas para um futuro mais seguro e pacífico. E continuaremos a empenhar-nos ativamente no árduo trabalho de diplomacia direta no terreno até chegarmos a uma solução final.

Após um breve discurso, escrito por um grupo de diplomatas, com o efeito prático de vetar o cessar-fogo imediato e autorizar a continuação de um genocídio, uma limpeza étnica que já conta com 30 mil mortos, entre os quais 10 mil mulheres e crianças, a embaixadora dos EUA termina dizendo que o seu país está se empenhando ativamente no trabalho de encontrar uma ‘solução final’? Essa é a expressão mais conhecida da gramática do ódio nazista e que sintetiza o horror levado à cabo pela ascensão do partido nazista, descrito de forma primorosa pela filósofa Hanah Arendt.

No Brasil não houve repercussão até agora. Netanyahu e a diplomacia israelense também permanecem em silêncio.

Enquanto diplomatas continuam sendo os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra, centenas de milhares de feridos e quase 2 milhões de pessoas estão privadas de remédios, água, comida, hospitais, casas e energia elétrica. Condições que um experiente médico militar francês, que atuou em diversas guerras e retornou após três semanas em Gaza, descreveu ao jornal Le Figaro:

Normalmente, os civis podem fugir dos combates. Lá é impossível. A população não tem onde se proteger. Centenas de milhares de pessoas vagam pelas ruas em busca de água e comida. (…) Nunca vi nada comparado à Gaza. (…) Acho que (a situação) pode ser semelhante à do Gueto de Varsóvia.

O jornal completou, explicando que o Gueto de Varsóvia foi onde 380 mil judeus foram amontoados pelos nazistas desde 1940, em condições de vida desumanas.