Entrevista com o antropólogo Inácio Dias de Andrade | África, desenvolvimento e pandemia

Na presente data todos os 55 países e territórios africanos já registraram casos da Covid-19. Segundo o portal The Elephant, a África do Sul, até aqui, lidera o triste ranking no continente, com 101.590 casos confirmados. O Egito, em segundo, tem 56.809, seguido pela Nigéria, com 20.919 casos. Do extremo sul ao norte do continente são 315.380 casos confirmados e 8.339 mortes.

A implícita subnotificação, assim como no Brasil, não impede de atestarmos a acentuada curva ascendente dos casos oficiais apontando que o continente está longe de controlar a circulação do vírus. Os números dão indícios de que, após a desaceleração dos casos no continente americano, a África será o novo centro global da pandemia.

Casos de coronavírus confirmados no continente africano. Fonte: The Elephant.

Enquanto os países ricos preparam-se para a segunda onda de infecções, aqueles mais pobres mal chegaram a vislumbrar o que há para além do pico de casos. A dificuldade em transpor a montanha estatística que representa vidas perdidas e tantas histórias de luto e privação revela também o abismo econômico que separa os antigos impérios europeus das suas antigas colônias. Exceção feita aos EUA, ex colônia cujo poderio econômico tem sido incapaz de ocultar a falência do radicalismo neoliberal diante da mais grave crise de saúde pública dos últimos cem anos.

No Brasil, onde alguns celebravam há 2 meses, diante de 7.321 mortes, que o pico da Covid-19 havia passado para as classes altas e que o país ia bem no controle da pandemia, devemos celebrar o SUS, que somado aos esforços em favor do isolamento social, ainda que insuficientes, fez com que não tivéssemos dezenas de milhares de mortes a mais do que as 52.771 registradas até aqui.

Assim, ainda que os mecanismos biológicos de uma infecção viral sejam impessoais, é impossível dissociar a evolução de uma epidemia dos marcadores históricos, culturais, políticos e econômicos de uma determinada realidade social, seja nos EUA, em Portugal, no Brasil, em Moçambique ou no Sudão do Sul.

Para contextualizar alguns destes marcadores na África convidamos o antropólogo Inácio Dias de Andrade*, que nos explica os efeitos da influência recente do Brasil no continente, as relações entre colonialismo, imperialismo e visibilidade midiática e como estes condicionam o enfrentamento da pandemia da Covid-19.

 

Primeiramente, obrigado por nos conceder esta entrevista. Por favor, nos conte um pouco sobre a sua pesquisa de campo.

Obrigado pela oportunidade. Eu iniciei minha pesquisa em Moçambique durante meu doutorado em Antropologia Social pela Unicamp. Eu procurava entender como as políticas desenvolvimentistas no país, que contam com uma importante participação brasileira, afetaram negativamente as comunidades locais. Eu passei cerca de um ano na zona central de Moçambique fazendo trabalho de campo. Nos últimos anos, Moçambique, e particularmente Tete, província na qual desenvolvi minha pesquisa, tem recebido incríveis somas de dinheiro em investimento externo. Grande parte desse dinheiro vem de empresas brasileiras que, desde meados dos anos 2000, têm destinado bilhões de dólares para a extração de minérios e construção de infraestrutura no país.

Assim, um dos grandes debates atuais em Moçambique gira em torno da natureza e consequências do desenvolvimento no país e na África, de modo mais geral. Debate que não é conduzido apenas por especialistas, mas constitui parte integrante do dia a dia dos milhões de moçambicanos que testemunham a chegada de estrangeiros, dinheiros, empresas e mercadorias em um país que sofreu por 16 anos com uma guerra civil ininterrupta que matou mais de 1 milhão de pessoas e deslocou outros 5 milhões de refugiados em direção aos países vizinhos.

Em 2007, A Vale, multinacional brasileira, ganhou a concessão de exploração de grande parte das jazidas de Tete e anunciou um plano de investimentos de mais de 10 bilhões de dólares. Embora muitos moçambicanos tenham ficado entusiasmados com as possibilidades de modernização que se aventavam à época, podemos dizer que atualmente o tão esperado desenvolvimento parece um sonho cada vez mais distante.

 

Entre tantos investimentos em infraestrutura houve, por exemplo, alguma destinação de recursos para a construção e manutenção de escolas, saneamento básico e hospitais?

Até 2016, quando acompanhei mais de perto a situação, havia aportes pontuais para algumas organizações preexistentes, escolas ou igrejas, mas nada sistemático que pudesse constituir um programa de desenvolvimento local ou uma parceria de empresas com o governo moçambicano. A Vale possui um projeto de geração de renda direcionado para as pessoas que foram deslocadas do local da mina. Para iniciar a prospecção de carvão, a Vale desalojou cerca de 2 mil famílias de suas terras e construiu novas casas em outro local. No entanto, muitos problemas decorreram dessa ação.

Primeiramente, após um ano as casas, construídas sem fundação, começaram a apresentar rachaduras e muitos tiveram que abandoná-las. Em segundo lugar, após o desalojamento, surgiram denúncias de que a empresa não honrou o pagamento das indenizações em sua totalidade e manifestações que paralisaram a linha de produção foram organizadas. Finalmente, o novo local escolhido pela empresa fica a 40km das terras de origem da população deslocada.

Ao planejar a desocupação, a Vale identificou, erroneamente, que aquelas pessoas produziam prioritariamente para a sua subsistência e que poderiam facilmente cultivar seus alimentos em outros lugares. Porém, grande parte da renda daquelas famílias estava relacionada com o fato de eles morarem relativamente perto da cidade, onde podiam vender o excedente de sua produção e comprar produtos de primeira necessidade. O deslocamento forçado prejudicou os negócios da maioria das pessoas e o programa de geração de renda da Vale (de criação e venda de frangos) tem pouco impacto em uma população isolada e desmonetizada. Além do mais, os programas da empresa para introduzir técnicas modernas de cultivo e plantio em pouco diferem dos fracassados programas de desenvolvimento internacional que há mais de 30 anos insistem em técnicas comprovadamente equivocadas. Ademais, o novo local de moradia dessas populações é caracterizado por um solo pedregoso e escassez de fontes d’água. Muitas das pessoas com quem falei tem que andar diariamente mais de 7 km para conseguirem cultivar em solo fértil.

Finalmente, os empregos prometidos pelos “novos tempos de desenvolvimento” nunca chegaram. Assim, apesar da extrema violência dos tempos coloniais, para muitos, o desenvolvimento proposto pelas empresas brasileiras não é qualitativamente melhor daquele colocado em prática pelo governo português. Diferentemente das antigas empresas coloniais que conjugavam a extração mineral com o assentamento de colonos, estimulando um mercado interno de serviços e empregos precários, a Vale possui uma linha de produção totalmente mecanizada que exige poucos funcionários especializados, contratados, em sua maioria, no Brasil. Assim, embora a chegada das empresas multinacionais tenha trazido movimento, dinheiro e produtos de consumo para os mercados de Tete, eles são totalmente inacessíveis para grande parte da população que só percebe o desenvolvimento por meio de sua face mais perversa: desemprego, desigualdade social, violência e restrição de direitos.

 

  • Cidade de Tete, capital da Província de Tete, Moçambique. (Arquivo pessoal/Inácio Dias de Andrade)

Poderíamos dizer que nestas últimas décadas está em curso no continente africano algo que se assemelha a um neocolonialismo, ainda que sejam Estados independentes?

Primeiramente, teríamos que definir o que foi o evento histórico denominado como colonialismo. Certamente, a relação de dominação e conquista que envolvia o deslocamento de colonos, administradores e militares europeus e garantia o gerenciamento e dominação, econômica e populacional, de territórios estrangeiros, negando-lhes qualquer tipo de autonomia ou soberania, não existe mais. Para muitos autores, seguindo a clássica análise de Lenin em o Imperialismo: a fase superior do capitalismo (1917), o colonialismo deriva de um arranjo específico do capitalismo que, à época, estava organizado em monopólios nacionais. Nesse sentido, durante uma crise de crescimento, a competição por novos mercados só poderia assumir a forma de uma competição militar entre estados sobre novos territórios, que deveriam ser dominados em benefício da exploração econômica exclusiva.

Nos encontramos em outra fase da economia capitalista. Embora a literatura sobre imperialismo ainda tenha muito a dizer sobre o tempo em que vivemos, a organização econômica atual não necessita de dominação direta, política e militar, sobre uma vasta região do mundo. Poderíamos, então, afirmar o fim do colonialismo de modo peremptório?

Infelizmente, o colonialismo não se caracteriza apenas como um empreendimento econômico, ele também produz uma cisão na constituição do pensamento moderno, no desenvolvimento e conformação das relações internacionais e institui diferentes sujeitos e comunidades políticas ao redor do mundo, repondo, de diferentes modos, uma desigualdade inicial categorizada por meio da ideia de raça. A eclosão de diferentes manifestações antirracistas pelo mundo são a prova de que a modernidade que conhecemos, a organização política e econômica de nossas sociedades e a desigualdade na cessão de direitos políticos e sociais estão intrinsecamente ligados a esse momento histórico da humanidade que deixa marcas e cicatrizes profundas em todos os estados nacionais.

Achille Mbembe, pensador camaronês, afirma que o colonialismo não foi apenas determinante na expansão e complexificação das formas de exploração, mercantilização e gerenciamento da vida humana naquilo que atualmente caracteriza o neoliberalismo, mas também é responsável pela hierarquização do globo em áreas desenvolvidas ou subdesenvolvidas, Primeiro e Terceiro Mundos, legitimando não só a desigualdade econômica e política mundial, como também justificando intervenções internacionais pontuais, sejam elas militares ou de cooperação.

A entrada do Brasil e de empresas brasileiras em África não pode ser dissociada desses fatores. Na realidade, o discurso oficial dizia que a relações entre o Brasil e os países africanos seria essencialmente diferente dos projetos de modernização colocado em prática por potências colonialistas. À época, para membros do governo Lula, o Brasil, por ser uma ex-colônia, teria necessariamente uma relação mais horizontal e democrática com países africanos. Infelizmente, não é isso que se viu naqueles tempos e o que caracteriza atualmente os empreendimentos brasileiros em África é uma mesma relação imoral de exploração e desinteresse por problemas locais. Embora seja complicado definir a relação entre Brasil e países africanos como uma relação colonial é evidente que ela se aproveita de desigualdades estruturais criadas pelo colonialismo e reproduz preconceitos, identidades e elementos criados no bojo da expansão colonial europeia.

 

Esta desigualdade, me parece, fica explícita também em um segundo lance de segregação, que se dá através dos meios de comunicação. Sempre tivemos pouquíssimas informações e análises sobre acontecimentos, positivos ou negativos, em países africanos. Para o jornalismo econômico, por mais que seja um vastíssimo continente, parece que a África nem existe. Depois da morte de Nelson Mandela as notícias sumiram de vez. Mesmo na internet, onde há um bombardeio de notícias e não há limite de tempo, como em um telejornal, dificilmente encontramos nos grandes portais informações, por exemplo, sobre os números e os impactos da pandemia na África. Como você enxerga os efeitos desta invisibilidade midiática?

Essa é uma pergunta interessante para a qual não sei se tenho uma resposta satisfatória.

Primeiramente, não acho que podemos separar o jornalismo (sua conformação institucional, econômica e política, sua prática diária e a formação dos profissionais que neles trabalham) dos interesses nacionais de cada país e do imaginário político da elite intelectual que ele majoritariamente representa.

Em outras palavras, penso que a falta de interesse do jornalismo brasileiro pelo continente africano é resultado do processo de formação da identidade brasileira e de um projeto nacional focado nas representações sobre o que seria um país desenvolvido.

Ensaio do historiador e cientista político Achille Mbembe. Publicado no Brasil em 2018, pela editora n-1 edições.

Esse tipo de relação entre o jornalismo tradicional e os problemas nacionais não é exclusivo do Brasil e podemos pegar o exemplo contrário para iluminar o que quero dizer. Se no Brasil há um completo desinteresse pelo continente africano, nas antigas metrópoles europeias o problema se inverte. As mídias francesas, inglesas e portuguesas, por exemplo, produzem incessantemente matérias e reportagens sobre suas antigas colônias e alimentam suposições sobre um imaginado laço afetivo, econômico e político entre essas regiões do globo. O tom de grande parte das reportagens passa por uma ideia paternalista sobre a pobreza dos africanos, a fome que perpassa o continente e os inúmeros problemas estruturais que esses países ainda possuem. Essa narrativa acaba por repor antigos problemas sobre novas formas, reproduzindo percepções passadas sobre o primitivismo, atraso e tradicionalismo de populações africanas e contrastando com a riqueza, desenvolvimento e racionalismo europeus.

Entretanto, se grande parte da identidade europeia foi construída em sua oposição com áreas “atrasadas” do globo e atualmente é reforçada por meio da atualização dos termos dessa relação, no Brasil, a construção da nação soberana e de seu projeto para o futuro passa pelo esquecimento e negação de nosso passado colonial. Não foi à toa que uma das primeiras medidas pós-abolição (período em que o Brasil procurava outro modelo de desenvolvimento para substituir aquele baseado na escravidão) foi trazer imigrantes europeus. Pouco sabemos sobre a realidade de outros lugares do globo, mas somos cotidianamente informados sobre os acontecimentos nos Estados Unidos e na Europa. Nem mesmo quando o governo Lula abriu a porta dos mercados africanos para empresas brasileiras, a mídia deu a devida atenção para esses lugares ou para os problemas que o projeto desenvolvimentista brasileiro levou junto consigo. O projeto de país que até hoje seguimos é aquele que busca apagar nossas heranças coloniais e vemos isso refletido não apenas nos interesses de grandes jornais, mas também em outras esferas. Muitos projetos de pesquisa em universidades, acordos entre governos ou construções de políticas públicas buscam produzir analogias, comparações e resoluções a partir de relações com a Europa e os EUA.

De qualquer modo, devo dizer que esse cenário passou por alterações nos últimos anos, especialmente depois da lei 10.639/03 que institui a obrigatoriedade do Ensino de História da África nas escolas de todos país. Isso não só obrigou acadêmicos brasileiros a produzir conteúdo para tais disciplinas, como colocou um novo conjunto de problemas para a discussão na esfera pública brasileira. Nesse último aspecto também temos que salientar o papel do movimento negro que vem obrigando, cada vez mais, a discutirmos tais questões.

A pandemia do Covid-19 não pode ser dissociada dessas questões e a ausência de dados sobre o continente africano nos nossos jornais só expõe aquilo (e aqueles) que consideramos importante como sociedade.

 

Quais as informações e impressões que chegam até você a respeito da pandemia? A partir destes relatos, para além das questões associadas à infraestrutura, como você tem percebido os impactos deste evento global nas representações e nos tantos universos simbólicos locais?

Um dos grupos do qual faço parte – o Centro de Estudo em Migração Internacional (CEMI), coordenado pelo prof. Omar Ribeiro Thomaz da Unicamp – tem mobilizado uma rede de contatos em busca de relatos, narrativas e análises da pandemia em diferentes partes do mundo, tentando, justamente, descentralizar essa narrativa extremamente focalizada nos chamados países de primeiro mundo. O grupo, que conta com pesquisadores de diferentes instituições brasileiras e em diferentes níveis de formação, já produziu relatos de mais de 30 países e o que temos descoberto é a incrível variedade de experiências locais dessa pandemia, fazendo com que seja difícil falar em uma pandemia global, mas em diferentes eventos epidemiológicos que variam de acordo com as histórias, culturas e contextos econômicos e políticos das localidades afetadas.

Nesse sentido, o que os relatos nos mostram é a incrível capacidade de incorporação da pandemia como parte integrante do cenário político local. Assim, a “politização da pandemia” tão discutida no Brasil constitui-se mais como regra do que como exceção. Penso que uma importante contribuição desses relatos é mostrar como a pandemia têm desvelado uma crise global de representação política e de acirramento das desigualdades sociais que alimentam e são alimentadas por aquilo que podemos chamar de narrativas obscurantistas sobre a pandemia. No caso brasileiro, são as já conhecidas fake news.

Em muitos países com os quais estamos trabalhando, as pessoas vivem com a renda que conseguem diariamente e não existe a possibilidade de se garantir um estoque alimentar ou fazer um planejamento mensal.

No Sudão do Sul, por exemplo, país que passa por idas e vindas de uma guerra que já dura sete anos, é praticamente impossível se garantir o isolamento social. Além do mais, o país de 11 milhões de pessoas tem uma expectativa de vida de 57 anos e apenas 2% da população pode ser considerada como grupo de risco de mais de 65 anos. Se grande parte do debate do isolamento social gira em torno de uma estratégia internacional para evitar a saturação dos sistemas públicos e privados de saúde, como essa estratégia pode ser levada a cabo em um país como o Sudão do Sul, que não possui qualquer sistema de saúde que possa vir a ser saturado? Uma piada corrente entre os sudaneses é o fato de que o país possui apenas quatro ventiladores mecânicos e cinco vice-presidentes em exercício. Nesse caso, pode-se dizer que o isolamento social e suas consequências, fome, desemprego e recessão, pode ser mais danoso do que a própria doença. É o inverso do que o ocorre no Brasil, por exemplo, onde o SUS tem recebido e tratado a maior parte dos doentes.

Curva de casos confirmados da Covid-19 na África. Fonte: The Elephant. (Clique para ampliar)

Também temos recebido relatos de localidades nas quais a própria população tem criado métodos para assegurar o controle da doença, sem ajuda do Estado ou de agências internacionais. No norte de Moçambique por exemplo, o isolamento social foi a solução adotada após antigas lideranças das aldeias e algumas pessoas influentes, curandeiros e conhecedores de raízes curativas, decidirem cercar as aldeias através de um rito de proteção do território, muito utilizado para feitiços ou dos maus olhares dos inimigos da própria comunidade ou do território ao redor.

Essa pluralidade de situações tem escancarado desigualdades sociais, políticas e econômicas.

No Malawi, por exemplo, a pandemia chega em um momento de grande turbulência política. A eleição presidencial de 2019 foi recentemente anulada pela suprema corte após vários meses de protestos que bloquearam as vias das maiores cidades, paralisando grande parte da economia do país. A Suprema Corte decidiu repetir a eleição agora em junho e o isolamento proposto pelo presidente Peter Mutharika, vencedor das contestadas eleições e que continua até agora no cargo, foi percebida como uma nova tentativa de sabotar os protestos e cancelar o novo pleito. A desconfiança generalizada sobre a elite política, somada ao imenso impacto econômico da epidemia que se desdobra com especial dramaticidade entre os mais pobres, junto com o ineficiente sistema de monitoramento e testagem desses países faz com que percepções sobre a desigualdade social, política e econômica abram espaço para diferentes narrativas conspiratórias sobre a pandemia. No Malawi, a aparente ausência de casos reforça a percepção de que a pandemia é inventada por uma elite política sedenta por poder. Em outros países essas teorias conspiratórias buscam explicar por que determinados grupos sociais são mais ou menos afetados pela COVID-19 e se espalham facilmente pelos grupos de Whatsapp.

No Brasil, embora algum desses fatores também estejam presentes, a produção, articulação e disseminação dessas teorias é capitaneada por um grupo político articulado que busca um projeto de poder antidemocrático. Eles se aproveitam dessa situação extraordinária e dessa base social suscetível à disseminação dessas notícias para desacreditar organismos internacionais, metodologias científicas e profissionais de saúde de modo a manter-se no poder.

 

*Inácio Dias de Andrade é antropólogo formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente é pós-doutorando do Departamento de Antropologia Social da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pesquisador do CANIBAL: Grupo de Antropologia do Caribe Global, coordenado pelo Prof. João Felipe Gonçalves da USP, e pesquisador-colaborador do Centro de Estudo de Migrações Internacionais (CEMI) da UNICAMP, coordenado pelos professores Omar Ribeiro Thomaz e Bela Feldman-Bianco da Unicamp. Inácio Dias de Andrade tem atuado principalmente com os seguintes temas: Moçambique, África Austral, Desenvolvimento, Modernidade, Relações Raciais, Estudos de populações africanas, Antropologia Urbana, Antropologia da Política, Movimentos Sociais, Urbanização, Arquitetura e Fluxos e Políticas Globais.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso na quarentena

O intuito deste artigo é o de esclarecer alguns aspectos da ansiedade em relação ao panorama atual. A introdução ao tema pode ajudar a desmistificá-lo e, consequentemente, a operar no sentido inverso da própria ansiedade.

O esperado aumento dos relatos de pessoas que se sentem ansiosas durante a pandemia vem se confirmando. Algumas delas, que não se percebiam assim, passaram a sentir uma leve ansiedade, enquanto outras sentiram a ansiedade aumentar.

Enquanto passarmos pelo duro e necessário isolamento social esta resposta psíquica ao que temos vivido será profundamente natural, desde que se dê em uma intensidade leve ou moderada. A grande questão envolve a avaliação pessoal sobre o que se sente: uma ansiedade leve, moderada ou severa. Muitas dúvidas podem surgir.

Por isso, conversar a respeito delas com profissionais da área de saúde mental torna-se ainda mais importante agora, uma vez que alguns sintomas podem incluir, eventualmente, fadiga e sensação de falta de ar. Em tempos de coronavírus, a mera possibilidade da confusão entre estes sintomas e aqueles da Covid-19, por si só, já é problemática.

O diagnóstico psiquiátrico da ansiedade segue diversos critérios que a classificam em alguns tipos de transtornos de ansiedade que muitas vezes são comórbidos entre si. Ou seja, uma pessoa com um deles, na maioria das vezes, terá, pelo menos, mais um.

Excetuados alguns destes tipos, para que a ansiedade seja considerada um quadro clínico patológico, geralmente – mas não sempre -, é necessário que os sintomas sejam persistentes por um período mínimo de meses. Estes sintomas só podem ser avaliados por um psiquiatra ou um psicoterapeuta (psicanalistas e psicólogos).

Da mesma forma que o colesterol não é ruim, mas o seu nível elevado no sangue é preocupante e necessita de uma intervenção médica, a ansiedade não é necessariamente ruim, mas o seu nível elevado deve ser acompanhado por um especialista.

Entretanto, mesmo quadros que não são severos podem e merecem ser atenuados com uma boa terapia. A ansiedade se manifesta em todos nós e, na imensa maioria das vezes, ela não assume um caráter patológico. Antes, ela é uma resposta natural do psiquismo frente às alterações percebidas no mundo exterior, no ambiente em que vivemos.

 

O que é a ansiedade?

Na psicanálise freudiana, a ansiedade recebe o nome de angústia. O termo original, Angst, comporta tanto a noção de ansiedade, quanto a de medo ou temor.

Em “As palavras de Freud”, o tradutor Paulo César de Souza aponta que a óbvia semelhança entre os termos Angst e angústia deve-se à sua origem comum no idioma indo-europeu, traçada a partir das derivações latina angustia (“aperto”) e indo-germânica angust (“estreiteza”, “aperto”).

Não é por coincidência que as descrições mais comuns da sensação de angústia contêm “um aperto no peito”. Há ainda o “frio no estômago” diante de algo iminente, como se o mesmo se contraísse ao perder calor.

Como suporte para conceituar a angústia, Freud também utilizou os termos Furcht (“medo”) e Schreck (“pavor”).

Esta breve explicação etimológica é necessária para que façamos uma distinção importante que nos ajuda a compreender a ansiedade, ou angústia, em relação aos objetos (para a psicanálise um objeto pode ser uma pessoa, ideia, pensamento, relação ou coisa material).

A angústia (Angst) é um sentimento causado pelo desprazer antecipado pelo psiquismo, que busca evitar o desprazer muito maior que seria gerado por um objeto.

Ela se origina no indivíduo devido à expectativa que ele cria a respeito da iminente presença de algo que despertaria um medo, justificável ou não. Esta é, propriamente na língua portuguesa, a concepção de angústia enquanto ansiedade.

Note a utilização do pronome indefinido “um” em “seria gerado por um objeto”. Esta indefinição remete ao objeto, real ou imaginado, porque muitas vezes ele não pode ser nomeado – ou, apontado conscientemente – pelo próprio indivíduo que sente a ameaça, a ansiedade. Como exemplos, assim ocorre no transtorno de Pânico e no transtorno de ansiedade generalizada.

Ilustração de Lucile W. Holling para o poema “Dandelion Bubbles”, em Around a toadstool table – A child´s book of verse, de Rowena B. Bennett, Chicago, 1930.

A expectativa gerada pela incerteza e pela indeterminação do objeto tensiona o aparelho psíquico (corpo e psiquismo) gerando um desprazer que o psiquismo entende ser um prenúncio daquele que será gerado pela presença, de fato, do objeto. Desse modo, posta a antecipação de um desprazer menor em relação ao que pode vir, o psiquismo tende a fugir daquela posição e buscar outra mais prazerosa.

O tensionamento do aparelho psíquico, percebido muitas vezes em regiões, músculos e nervos do corpo, tem por função mobilizar e preparar o indivíduo para empreender a fuga diante daquele objeto que pode – naquele instante não há dúvida de que irá – gerar ainda mais desprazer.

No senso comum, são conhecidas algumas fugas que surgem enquanto respostas à intensificação da ansiedade, logo, ao tensionamento. São aquelas associadas ao aumento do consumo de alimentos, especialmente doces, de bebidas alcoólicas e do tabagismo, por exemplo. Basicamente, porque são saídas imediatas e estão amplamente disponíveis na sociedade de consumo.

Repare que, em meio à pandemia em que estamos vivendo, têm sido recorrentes as notícias e artigos que abordam o aumento generalizado do consumo de álcool. Da mesma forma, os mais afortunados, com seus vastos estoques alimentícios, percebem o necessário cuidado extra para manterem o peso durante o isolamento social.

Na língua portuguesa, o medo (Angst ou Furcht) é a concepção de angústia que se refere ao sentimento que surge quando este objeto pode ser nomeado e definido pelo indivíduo. Portanto, quando ele está, ainda que indiretamente, presente na consciência. Como em uma determinada fobia. Por exemplo, o claustrofóbico sabe da sua aversão aos espaços fechados. Basta que ele visualize ou imagine uma situação em que ele se reconheça em contato direto com o objeto fóbico para que a angústia, ou ansiedade, tome conta.

Já o pavor (Schreck) não é uma concepção, ou sentido da angústia, mas a realização daquilo que ela apenas antecipa. Ele é a descarga abrupta do tensionamento que tomava o indivíduo. Ele surge quando a expectativa se realiza no contato direto com o objeto que causava a ansiedade e o medo.

Portanto, do ponto de vista freudiano, a ansiedade e o medo não são etapas sequenciais, mas traduções das manifestações da própria angústia, que é conhecida popularmente no Brasil, somente, como ansiedade.

 

O que muda com a pandemia?

Após esta breve apresentação, esperamos que tenha ficado evidente como uma situação de pandemia altera, basicamente, quase tudo o que diz respeito à ansiedade.

Ou seja, é natural que este momento de indefinição altere a intensidade, a modulação e o caráter dos nossos afetos em relação a quase todos os objetos, como: mãe, pai, namorada, cachorro, gato, amigos, emprego e os nossos próprios pensamentos.

É importante ressaltar que tais mudanças ocorrem no interior do psiquismo, porém, reverberaram pelo corpo. Além de nódulos e tensões musculares, a ansiedade pode levar a episódios de insônia, ou, através do consumo excessivo de café ou álcool, atrapalhar a recuperação ideal do corpo e do psiquismo durante o sono.

Ainda, sua tendência é a de aumentar a irritação e intensificar o cansaço. A fadiga pode fazer com que fiquemos o dia todo no sofá assistindo séries, procrastinando atividades necessárias, mas, ainda assim, sem alcançar a desejada sensação de relaxamento própria às atividades de lazer.

Por isso, as atividades físicas são ainda mais importantes durante este período. Preferencialmente, em casa, mas, se não for possível, pequenas caminhadas diárias certamente atenuarão a ansiedade. Antes, informe-se sobre as devidas recomendações, como a de ficar, no mínimo, a 4 metros de distância da pessoa que caminha na sua frente.

Algumas vezes sentimos uma ansiedade que não sabemos de onde vem, noutras conseguimos defini-la com uma certa clareza. Um exemplo é aquela que atualmente toma algumas pessoas, em relação às incertezas no mercado de trabalho.

Conversar francamente a respeito destas mudanças, dos desejos, das expectativas e medos envolvidos é fundamental para diminuir a tensão, a ansiedade, a angústia. Seja com a família, os amigos ou com um psicoterapeuta.

O corpo, o cérebro e o psiquismo possuem uma ampla e maravilhosa plasticidade. Quando o mundo exterior passa por uma grande transformação, eles sempre são capazes de se readaptar.

Vivemos um momento doloroso, fundamentalmente para parentes e amigos das vítimas, mas que também é uma possibilidade de readaptação não apenas para indivíduos, mas para a humanidade.

Isto significa que, preservada e tratada a saúde imediata do maior número possível de pessoas no mundo todo, com as devidas cobranças, ações e precauções coletivas recomendadas diante da Covid-19, tais mudanças externas podem ser catalisadoras de transformações interiores e, consequentemente, de concepções e ideais partilhados que movem grandes questões sociais.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso durante a quarentena. Ao indivíduo, na maioria das vezes, a ansiedade é apenas a precursora de um momento ou um período mais prazeroso e melhor.

Algumas vezes não desejamos as mudanças e podemos ficar bem e confortáveis com a sensação de que está tudo igual. Em outras tantas, as desejamos, mas não sabemos como concretizá-las. Por fim, existem momentos como esse, quando as mudanças chegam sem perguntar e o que nos resta é, simplesmente, construir um destino para elas.

O resto é desejo.

A importância da psicanálise durante a pandemia

A sociedade global, em compasso de espera, não parou, mas quase. Se tantos não puderam adotar o isolamento social como medida protetiva durante a pandemia – e ainda tiveram suas atividades diárias intensificadas por trabalharem em setores essenciais, como os da saúde, transporte, segurança pública e limpeza urbana -, bilhões de pessoas aportaram em uma quarentena caseira.

Em comum, as rotinas alteradas e, com elas, os relacionamentos, pensamentos e sentimentos remoídos diariamente pela avalanche de notícias que compartilha democraticamente sofrimento, desespero, impotência, tristeza e dor. Somente no Brasil são milhares de mortos e dezenas de milhares de pessoas enfrentando o luto enquanto estão imperativamente distanciadas de amigos e parentes.

É praticamente impossível ficar indiferente a esta situação, ainda que se assuma um perigoso estado de negação diante da realidade. Isso porque, neste contexto frágil e trágico, mesmo os mais afortunados e saudáveis adotaram o teletrabalho ou home office, como preferir.

Trabalhadores formais que não gozam desta possibilidade receberam férias compulsórias, na expectativa de que, em um futuro breve, não venham a engrossar a longa fila de desempregados que dá a volta em nosso país. Já os informais, improvisando estratégias em seus pequenos negócios, através da internet, encontraram uma dimensão ainda mais dramática da palavra sobrevivência.

Quase todos, com ou sem carteira trabalhista assinada, se virando como podem, trabalhando e vivendo sozinhos ou com a família e filhos dentro de casa, 24 horas por dia, 7 dias por semana. São casamentos de trinta anos, ou mais, redescobertos de maneira intensa. Relacionamentos recentes, forjados e atravessados por telas e redes sociais, nos quais tantos se deparam pela primeira vez com o poder do olhar, do silêncio e de um tempo a dois que parecia ter sido suprimido pelo século XXI.

Tudo isso imposto contrariamente aos desejos, sem culpados ou responsáveis, às custas da liberdade de ir e vir.

Estamos vivendo o indesejável. Porém, mesmo nele, os desejos não cessam. Então, para onde eles vão?

Male and Female Bathers with Umbrella. Alfred Grévin (França, s. XIX)

Até aqui vivenciamos um breve período, de meses, que já alterou alguns pressupostos sociais, políticos e econômicos, nas mais diversas sociedades e culturas inseridas no mundo globalizado. Transformações que dificilmente se encerrarão com o fim do isolamento social ou com a descoberta da tão sonhada vacina.

Talvez, e muito provavelmente, aquilo que estamos presenciando seja apenas o preâmbulo de um novo volume na obra da humanidade. Assim, para além de “fé na ciência” não se mostrar uma contradição em termos, diante das incertezas geradas por tamanhas mudanças comprimidas em um espaço de tempo tão curto, emerge em sua plenitude aquela que, até recentemente, era esquecida no trato diário ou resumida às frases de efeito nas redes sociais. A mãe de todas as ciências: a filosofia.

Note-se que esse ressurgimento não é a mera consequência do movimento que inclui os filósofos e pensadores pop que habitam as timelines, mas a própria causa do seu surgimento, que já vinha em curso com as novas questões colocadas pelo mundo contemporâneo. Nesse instante de pandemia tal demanda assume a almejada proposta da filosofia – para além do discurso e da retórica reproduzida por ouvintes, leitores e seguidores -, quando ela se desdobra em prática.

Quando o horizonte se aproxima demais e os olhos da alma só alcançam os arredores imediatos é porque já perdemos uma certa pureza e algumas certezas que nos estruturam e acalmam. São em momentos como esse, quando não podemos fugir das dúvidas, que a reflexão se revela como mais uma necessidade posta à sobrevivência.

A questão é que pensar, refletir ou filosofar, definitivamente não são tarefas simples, muito menos tranquilas. Elas geram desconforto, inquietude, angústia e podem chegar a doer no corpo. Sobretudo, agora, quando os corpos enclausurados encontraram uma parada inédita na história.

Como o corpo e a mente são faces da mesma moeda, na cotação da vida, muitos têm tido pela primeira vez a percepção de que mergulhos interiores podem ser tão arriscados quanto aqueles no mundo exterior. Nesse sentido, todas as psicoterapias são recursos preciosos, que nos ajudam a suportar o sofrimento na necessária travessia que se apresenta.

A psicanálise é uma das diversas psicoterapias.

Criada por Sigmund Freud, o seu diferencial em relação às demais é que ela refunda a noção de consciência da filosofia.

Antes, a mente era compreendida como aquilo que conhecemos racionalmente: a consciência era o estado do saber. Já as paixões, sentimentos e afetos, dependendo da tradição filosófica, partiam de forças vitais, deuses e até mesmo da própria consciência. O inconsciente era somente um estado de alienação, de não saber, do desconhecido que não habitava o psiquismo.

Freud alterou radicalmente estas noções ao afirmar que o Inconsciente, na verdade, é muito mais poderoso do que imaginavam os filósofos. Muito antes de ser um estado de não consciência sobre algo externo, ele é um espaço, e também uma dinâmica, no interior do psiquismo. Não um espaço e dinâmica quaisquer, mas a imensa parte daquilo que compõe o que chamamos de psique, que relaciona-se permanentemente com o corpo físico.

No Inconsciente residem os traumas, reminiscências e vivências antigas que compõem um tipo de conhecimento, advindo da nossa relação com o mundo, que foi reprimido. Dele também partem os desejos e as paixões. Ou seja, possuímos uma imensa força, um tipo de saber que não sabemos e que nos habita, nos molda e direciona nossas respostas, afetos, sentimentos e reações diante dos acontecimentos, na maioria das vezes, incontroláveis da nossa vida social, familiar e profissional.

Contando com dois instrumentos simples, a fala e a escuta, a psicanálise é uma prática consolidada, há mais de um século, como a cura pela palavra. Cura terapêutica, enquanto alívio do sofrimento, dos seus sintomas e da redescoberta de si. Um espaço de enfrentamentos e suporte da angústia, inerente à própria condição humana, do qual ninguém deve ser ou estar privado, fundamentalmente em tempos como o que vivemos.

Corona, conspiração, culpa e negação

Nos últimos anos, as redes sociais virtuais no Brasil, sobretudo o WhatsApp, ajudaram a constituir um pequeno legado: o movimento antivacina, o terraplanismo e outras tantas fake news diárias, antigamente conhecidas como mentiras.

Apesar deste alto custo ao conhecimento humano, existe um legado muito positivo no uso das mídias e comunicadores instantâneos. Por exemplo, o fato de que elas ajudam a aplacar alguns efeitos psíquicos do isolamento social. Porém, este artigo é sobre o legado anterior.

Há uma estrutura narrativa que tem funcionado de forma muito eficiente nestes novos tempos de instantaneidade, ao explorar certas demandas narcísicas das pessoas e se utilizar de recursos apelativos que escondem suas falsas premissas.

Podemos dizer que as teorias da conspiração formam o eixo social que coloca o carro da negação em movimento. A partir de qualquer uma delas tudo passa a ser descrito e articulado com uma incrível desenvoltura criativa. Elas demonstram um esforço de detalhamento obsessivo por parte dos seus criadores que, sem dúvida, seria condizente com o espírito transbordante de fantasias que rege, por exemplo, os grandes artistas.

Entretanto, esperávamos que duas questões fizessem com que o carro da negação não tivesse força para passar da primeira esquina.

 

  • A marcha da conspiração

Diferentemente do sentido proposto por qualquer obra de arte – seja ela um filme, série, música ou pintura – que pressupõe a comunicação, ainda que pela ruptura – as teorias da conspiração estimulam algo nada artístico: a anulação do outro. Para um teórico da conspiração não há escuta, logo, não há a fala do outro.

O problema é maior, porque, como a própria expressão sugere, há algo em comum a todas as múltiplas teorias: o caráter único da conspiração. Por isso, não as chamamos de teorias das conspirações, no plural.

Isso indica o porquê de tantas narrativas – ainda que extremamente diversas, como as fantasias são subjetivas – cativarem um público semelhante. Aos seus adeptos, elas satisfazem uma enorme demanda por reconhecimento. Para um teórico como esse só há uma grande, desconhecida e articulada conspiração, que somente uma articulada, enorme e conhecida pessoa descobriu em sua totalidade: ele.

No cerne das suas proposições há um explícito narcisismo infantil: ou você o aceita, ama incondicionalmente e o parabeniza pelas “descobertas” ou você passa a ser desprezível e merecedor da indiferença ou da raiva, uma vez que torna-se uma representação da própria conspiração.

Isto, por si só, é uma questão muito importante, porque afeta a vida social tanto do teórico da conspiração, quanto daqueles que o amam. Pessoas sofrem com isto, de parte a parte, e, certamente, a psicanálise e as diversas psicoterapias têm muito a contribuir nestes casos.

Entretanto, nestes novos tempos, um passo dado expandiu a dimensão daqueles que são afetados.

Diferentemente dos grande artistas, que produziram obras sublimes apreciadas pela sociedade – porque sublimaram suas fantasias – o outro grupo, heterogêneo, cresceu e se organizou com as mídias sociais. Dele, estimulados por um duelo interno de fantasias, seus membros resolveram partir juntos para a ação social.

O que há em comum nessas diversas fantasias em ação, além da autofagia, é a abolição da condição do outro enquanto sujeito, uma vez que somente aquele que detém a “ciência” da conspiração em curso sabe “a verdade”. Desta forma, o outro – que não aceita a (sua) verdade – torna-se um empecilho ao que – o conspiracionista acredita – é o seu dever de agir.

Algo que já era grave e perigoso em um contexto sociopolítico aparentemente normal, neste momento, ajuda a promover a calamidade pública.

Homens jogando boliche com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

Homens jogando bocha com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

  • O ponto morto da negação

A segunda questão que poderia fazer o carro da negação estacionar chama-se: realidade. Porém, é exatamente ela o alvo.

Obviamente, o impacto econômico provocado pela pandemia afetou ainda mais a combalida economia brasileira, impondo a muitos a necessidade de se exporem ao vírus, paradoxalmente, para conseguirem sobreviver. A partir de algumas perspectivas teóricas poderíamos pensar sobre alguns dos tantos sentidos do que seja a realidade, só que o que nos cabe discutir não espera.

Há algo posto em dados, nomeado nas notícias, de jornais e conhecidos, que está começando a ser compreendido pela ciência de fato. Esse algo chama-se pandemia provocada pela Covid-19 e as suas consequências devastadoras, como as milhões de pessoas que perderam parentes, amigos, e estão vivenciando o pior dos lutos: aquele em que não se pode despedir do morto.

A questão que nos interessa, aqui, portanto, circunscreve-se àqueles que poderiam sobreviver economicamente no isolamento social.

Há poucos anos poderíamos afirmar, sem medo de errar: a realidade se impõe a todos. Agora, a questão, de vida ou de morte, é : quando?

Quem já vivenciou a perda de alguém amado pode saber o que é o estado de negação, a primeira das cinco etapas do conhecido modelo do luto, criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. Segundo este modelo, para alguns que enfrentam o luto, a negação é a primeira reação, inconsciente, diante da perda de um objeto fundamental (para a psicanálise, um objeto pode ser tanto uma pessoa, quanto uma ideia, um pensamento, uma relação ou uma coisa física).

Esta reação ocorre porque o objeto perdido estruturava narcisicamente o psiquismo, naquele lugar que nos faz ser e saber quem somos. Assim, a negação é a tentativa do Inconsciente de reagir ao desmoronamento do Eu. Ou seja, quando a dor é tamanha e o medo de viver sem aquele objeto é tão grande, a realidade torna-se insuportável. Portanto, em um primeiro momento, o psiquismo a nega, porque precisa sobreviver.

Uma boa parte do clima conspiracionista que avança pelas correntes do WhatsApp – para além das mentiras de poucos, por má-fé – também desponta como uma negação da realidade. Cada qual com suas questões na vida encontrou, através dessas fantasiosas narrativas, um meio para organizar os seus sentimentos.

Botar em marcha o carro da negação, portanto, é a ação que promove, não a obra de arte enquanto fruto da sublimação das fantasias, mas o avanço destas sobre a realidade social. Por isso, a consequência da ação não será, jamais, a criação que partilha sentidos, mas a sobreposição ou a imposição deles.

Esta imposição permite, àquele que impõe, extravasar os seus fracassos e perdas. O expurgo dos afetos de pequenos lutos diários, que antes não encontravam o devido escape, encontram uma prazerosa sensação, progressiva e libertadora, para a qual pouco importa a realidade.

Assim, tragicamente, neste momento, vemos algumas dimensões da experiência unirem-se na negação. De um lado, parentes de pessoas mortas pela pandemia, e, do outro, movimentos antivacina e demais negacionistas.

Esse carro acelerado nos leva a um último aspecto importante.

 

  • A culpa após a pandemia

A culpa é um sentimento que acumula-se em doses homeopáticas. Todos a sentimos ao menos uma vez na vida. Ela é traiçoeira, porque assemelha-se à fatura do cartão de crédito quando chega. Enquanto compramos tudo está uma maravilha, mas lá no fundo desconfiamos que não deveríamos fazer aquilo.

Um sentimento que pode ser antecipado pelo psiquismo, diferentemente daqueles suscitados por grandes eventos traumáticos que escapam ao nosso controle. Afinal, ao menos no caso das compras, sabemos que a fatura chegará.

Em outras alçadas da vida não muda muito, quase sempre é assim.

Entretanto, continuamos insistindo nos erros (mas também acertos), porque esta condição desejante, agitada em fantasias, não cessa jamais. Também, porque temos a certeza de que satisfazer um desejo sempre é profundamente prazeroso e sabemos bem que há algumas culpas e outras culpas.

Neste momento de necessário isolamento social, quando estados de negação da realidade tristemente confluem rumo à calamidade pública, muitos que não são teóricos da conspiração, nem necessitariam sair do isolamento – por sobrevivência ou devido à profissão – estão fazendo exatamente isto.

De fato, ficar sem abraçar quem amamos e sem sair de casa são duas privações que estimulam as fantasias e, assim, caso a negação não se coloque, o desejo de voltar à normalidade só tende a crescer e apertar o peito em ansiedade e saudade.

Porém, há um fator importante nisto tudo.

O fato de raramente podermos identificar, em meio a uma epidemia ou pandemia, quem foi o agente transmissor que infectou alguém, aparentemente tem feito muitos se desresponsabilizem por suas atitudes. Sobretudo, porque o coronavírus pode ser assintomático para 80% das pessoas. Como jamais saberemos com certeza quem contaminou quem, é impossível estabelecer legalmente um culpado.

Isto significa que, principalmente os jovens – mas não só – estão fortemente imantados pelas suas fantasias e desejos e tentados a saírem pelas ruas despreocupadamente. O equívoco não se dá, somente, ao subestimar as estatísticas que apontam que 20% podem ter sintomas e 5% correm o sério risco de morrer. Ele ocorre quando esta desresponsabilização, em sua jornada narcisista, expõe outras pessoas ao risco. Outras pessoas que não podem aderir ao isolamento, por necessidade.

Os que agem desta forma estão impondo o seu desejo e as suas fantasias às custas da vida dos outros.

Estas pessoas não estão em um estado de negação, mas podem estar se deixando levar, inconscientemente, pelo clima de alguns que estão. O que elas não vislumbram é que quando a pandemia passar, com boas chances de que sobrevivam, a culpa interior pode tornar-se a mais dolorosa das penas, que nenhum tribunal seria capaz de impor. Principalmente, caso percam alguém amado.

No luto, a negação quase sempre passa. Ele é elaborado em função do tempo e, também, de uma boa terapia. A vida segue.

Porém, quando a culpa envolve-se na história, o luto vira melancolia.

Notem: na vida conhecemos muitos perdoados e desculpados por erros graves, mas dificilmente encontramos um ex melancólico.

————————————————————-

Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, recomendo a leitura de dois textos de S. Freud: Introdução ao Narcisismo e Luto e melancolia.