Educação é cultura

Por Samuel Joaquim *

 

Ao longo dos anos, há uma frase recorrente nos cafés, padarias, bares e restaurantes, redes sociais – até nas próprias escolas: “o que falta no Brasil é educação”. Qualquer um de nós, em algum momento, já ouviu isso. Em geral, as pessoas estão se referindo à educação formal: ensino fundamental, médio e superior. Pois bem: falta? Falta. Mas é só esse o problema? É só isso que falta? Se olharmos para as classes mais abastadas do país, com boa formação e nos melhores empregos e cargos públicos, veremos lá a imagem de um país pronto para evoluir se “abrir a porteira” da educação de qualidade para todos? Ou veremos o retrato de um grupo que não enxerga na cultura e nas artes a mesma importância que conhecer matemática ou economia para promover uma sociedade evoluída com paz e igualdade?

Fazendo essa observação, possivelmente você verá uma elite que se enxerga como uma verdadeira casta superior, que não dá igual valor à vida de todos e faz questão de não perder seus privilégios, mesmo que isso signifique em última instância uma sociedade mais violenta. Mesmo que signifique não poder andar a pé tranquilamente pelos centros decadentes das cidades. E é importante salientar aqui: essa elite em geral teve toda educação formal a que se pode ter acesso. Então, só podemos concluir que falta algo a mais. A falta de empatia e do senso de coletividade não são supridas simplesmente numa disciplina de geografia em que se fala sobre estatísticas de pobreza e índices de desemprego.

Não que a “letra fria” da educação seja desimportante: um país não consegue se desenvolver sem o ensino tradicional. Bons profissionais de engenharia são fundamentais para alavancar a indústria. A saúde para todos não é possível sem médicos preparados. O Estado precisa de bons administradores e economistas. Quase nenhum cidadão consegue bons empregos sem uma formação técnica ou acadêmica, ficando a eles reservados os empregos de baixa especialização e, consequentemente, baixa remuneração. Além disso, obviamente não há como corrigir os erros do passado sem o conhecimento de história.

Mas a educação não termina ao fim da última aula do dia, do período letivo ou mesmo do curso de graduação. O conhecimento formal é parte integrante de algo maior, a cultura, e um grande erro que se comete é não enxergar educação e cultura como uma só coisa. Afinal, a cultura pode ser definida como a soma não só do conhecimento, mas também dos valores, sentimentos, artes, leis, costumes e hábitos das pessoas. O ser humano está constantemente aprendendo, somando e relacionando esses diferentes aspectos para viver sua vida. Assim, principalmente nessa época de quarentena e isolamento, precisamos nos apegar à cultura de forma mais ampla, não só como um passatempo, mas também como uma forma genuína de evolução, desenvolvimento da empatia e libertação. Para “aguentarmos o tranco” desses tempos difíceis – e, quem sabe, nos tornarmos uma sociedade mais igualitária.

 

A cultura e a arte como geradores de empatia

Gostaria de começar com um exemplo aparentemente banal, uma experiência própria: quando li o livro “Corações Sujos” de Fernando Morais, que fala sobre uma seita criada no Brasil pela comunidade japonesa após a Segunda Guerra que não admitia a derrota do Japão, descobri que a sede desse agrupamento ficava a poucas quadras de onde moro em São Paulo. Muitos consideram essa uma informação inútil isoladamente. Mas eu soube que, a menos de um quilômetro de casa, estava a sede de um agrupamento que assassinou dissidentes (alguns inclusive no próprio bairro). Soube que o horror, poucas décadas atrás, foi meu vizinho – mortes sem sentido ocorreram logo ali, atravessando algumas ruas, por pura ignorância. E com isso, me senti imbuído de um sentimento bem contundente: a ignorância precisa ser dizimada para que a relativa paz que hoje há no meu bairro possa ser conservada e ampliada. E, extrapolando, também a paz no Mundo.

Alguém poderia dizer que o livro é fruto de uma excelente pesquisa histórica feita pelo autor e que, portanto, poderia ser considerado até um instrumento de educação formal e utilizado tranquilamente em sala de aula como material de apoio ao ensino de história. Porém, a conclusão a que eu cheguei vem com uma carga de experiência pessoal única somada ao aspecto histórico, que me causou um impacto bastante diferente e próprio. Isso se deve à minha empatia, a minha capacidade de me colocar dentro dessa história para além da narração factual, já que eu constantemente passo pelo local citado no livro e que nunca me remeteria a um lugar onde se planejavam assassinatos, não fosse meu conhecimento adquirido. Uma coisa se casa à outra para melhorar minha percepção nessa micro-história.

Talvez um outro exemplo que permita enxergar melhor a função da cultura é citar uma obra de arte, digamos, não-factual. Um dos meus filmes favoritos é o filme “Laranja Mecânica”, dirigido pelo aclamado cineasta Stanley Kubrick. É um filme totalmente ficcional. Eu sei que nada do que se passa ali aconteceu realmente. Eu sei que as drogas da “ultraviolência” não existem (ao menos, não com aqueles nomes), que não existe Alex DeLarge, e que nunca existiu um medicamento capaz de inibir a maldade em um chefe de gangue e assassino cruel a ponto de ele se sentir enjoado sempre que pensar em cometer alguma atrocidade.

Porém, as cenas são retratadas de forma assustadoramente realística: eu sei que há o uso de drogas que podem exacerbar o comportamento violento na vida real. Eu sei que há a banalização da violência no dia-a-dia e que ela faz milhões de vítimas todo ano no mundo. E sei que há o sistema prisional atual como tentativa de educar os criminosos a rever suas ações que os levaram até ali. Além disso, a trajetória do personagem principal ao longo da história me permitiu tirar uma conclusão que provavelmente nenhum livro de história faria com tanto impacto: mesmo que houvesse uma “cura científica da maldade”, um sistema prisional comprovadamente capaz de “corrigir” a vida de crimes de alguém, uma sociedade com cultura punitivista não seria capaz de aceitar de volta esse paciente curado.

O intrigante do filme é justamente a sua capacidade de nos causar empatia para com o personagem principal. No começo, acompanhamos a sua vida como um cruel líder de gangue para, depois, sentir o seu sofrimento pós-tratamento quando todos os seus desafetos do passado passam a discriminá-lo, muitos deles com sede de vingança. E, de certa forma, sofremos com ele, a ponto de o realmente reconhecermos como um ser humano (tal como nós), e não um monstro. Porém, ao nos enxergarmos de volta como os “cidadãos de bem” da sociedade fictícia do filme (spoiler: não existe o conceito de cidadão de bem numa democracia!), isso nos faz refletir: “ei, eu realmente me enxergo nessa sociedade! Estamos no caminho certo? Violência para combater violência funciona como comportamento e política de Estado?”. Esse questionamento, mesmo trazido por uma obra completamente ficcional, nos trás um novo tipo de conhecimento, com especial impacto na nossa inteligência emocional. E, nesse momento, a arte se torna uma forma legítima de complemento à educação.

Também, como músico, eu não poderia deixar de falar sobre a igual importância de outras artes como (oh!) a música. Uma canção (ou seja, uma música cantada) pode ter igual efeito a uma poesia ou a um romance: entendemos os versos que estão sendo cantados, interpretamos o significado e podemos identificar ali a nós mesmos, nos questionar, pensar na mudança que queremos a partir de sentimentos que aquelas palavras nos causam.

Mas e as artes mais abstratas, a música instrumental ou pinturas, sem aparente semântica, sem uma história contada com palavras ou imagens que podemos reconhecer de forma lógica? São elas artes menos importantes? Não. O princípio é semelhante. É possível aprender com as artes abstratas.

Por exemplo: cores fortes na pintura causam um impacto e tons pastéis dão sensação de conforto. Na música, sons harmônicos e em volume normal nos causam uma sensação de paz. Sons altos e inarmônicos, um sentimento de inquietude e aflição. Acordes maiores soam alegres, acordes menores soam tristes. Uma justaposição ordenada de sons, timbres e harmonias diferentes podem fazer você se sentir alegre e com vontade de dançar ao som de Hamilton de Holanda tocando um choro do Pixinguinha ou você exercitar um pouco a sua melancolia (que é tão importante quanto exercitar a alegria) com a Sonata ao Luar de Beethoven.

Assim, a arte (incluindo a abstrata) consegue ajudar a aflorar seus sentidos e sentimentos, de uma forma muito particular. E lidar com esses sentimentos, extravasá-los, é uma forma de se conhecer melhor e de saber o que você é capaz de sentir e se preparar melhor para quando esses mesmos sentimentos pegarem você de surpresa em outros tempos (note aqui a curiosa tangência das artes com a psicanálise). E a arte feita com esse intuito, do autoconhecimento, não doutrina: ela liberta. E é bom sentir pelo menos algum grau de liberdade em dias tão claustrofóbicos.

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* Samuel Joaquim é desenvolvedor de software e músico. Da primeira profissão tira seu sustento, da segunda, sua razão de ser. Pianista desde pequeno, teve o privilégio de estudar piano popular nos anos 2000 com o seu ídolo, Hercules Gomes, quando ele ainda era uma promessa da música na cabeça do aluno – antes de ser uma realidade para o Mundo como hoje. Integra o grupo paulistano Esquina Imaginária, que presta homenagem (de sua forma particular) ao cultuado movimento belorizontino Clube da Esquina.

 

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso na quarentena

O intuito deste artigo é o de esclarecer alguns aspectos da ansiedade em relação ao panorama atual. A introdução ao tema pode ajudar a desmistificá-lo e, consequentemente, a operar no sentido inverso da própria ansiedade.

O esperado aumento dos relatos de pessoas que se sentem ansiosas durante a pandemia vem se confirmando. Algumas delas, que não se percebiam assim, passaram a sentir uma leve ansiedade, enquanto outras sentiram a ansiedade aumentar.

Enquanto passarmos pelo duro e necessário isolamento social esta resposta psíquica ao que temos vivido será profundamente natural, desde que se dê em uma intensidade leve ou moderada. A grande questão envolve a avaliação pessoal sobre o que se sente: uma ansiedade leve, moderada ou severa. Muitas dúvidas podem surgir.

Por isso, conversar a respeito delas com profissionais da área de saúde mental torna-se ainda mais importante agora, uma vez que alguns sintomas podem incluir, eventualmente, fadiga e sensação de falta de ar. Em tempos de coronavírus, a mera possibilidade da confusão entre estes sintomas e aqueles da Covid-19, por si só, já é problemática.

O diagnóstico psiquiátrico da ansiedade segue diversos critérios que a classificam em alguns tipos de transtornos de ansiedade que muitas vezes são comórbidos entre si. Ou seja, uma pessoa com um deles, na maioria das vezes, terá, pelo menos, mais um.

Excetuados alguns destes tipos, para que a ansiedade seja considerada um quadro clínico patológico, geralmente – mas não sempre -, é necessário que os sintomas sejam persistentes por um período mínimo de meses. Estes sintomas só podem ser avaliados por um psiquiatra ou um psicoterapeuta (psicanalistas e psicólogos).

Da mesma forma que o colesterol não é ruim, mas o seu nível elevado no sangue é preocupante e necessita de uma intervenção médica, a ansiedade não é necessariamente ruim, mas o seu nível elevado deve ser acompanhado por um especialista.

Entretanto, mesmo quadros que não são severos podem e merecem ser atenuados com uma boa terapia. A ansiedade se manifesta em todos nós e, na imensa maioria das vezes, ela não assume um caráter patológico. Antes, ela é uma resposta natural do psiquismo frente às alterações percebidas no mundo exterior, no ambiente em que vivemos.

 

O que é a ansiedade?

Na psicanálise freudiana, a ansiedade recebe o nome de angústia. O termo original, Angst, comporta tanto a noção de ansiedade, quanto a de medo ou temor.

Em “As palavras de Freud”, o tradutor Paulo César de Souza aponta que a óbvia semelhança entre os termos Angst e angústia deve-se à sua origem comum no idioma indo-europeu, traçada a partir das derivações latina angustia (“aperto”) e indo-germânica angust (“estreiteza”, “aperto”).

Não é por coincidência que as descrições mais comuns da sensação de angústia contêm “um aperto no peito”. Há ainda o “frio no estômago” diante de algo iminente, como se o mesmo se contraísse ao perder calor.

Como suporte para conceituar a angústia, Freud também utilizou os termos Furcht (“medo”) e Schreck (“pavor”).

Esta breve explicação etimológica é necessária para que façamos uma distinção importante que nos ajuda a compreender a ansiedade, ou angústia, em relação aos objetos (para a psicanálise um objeto pode ser uma pessoa, ideia, pensamento, relação ou coisa material).

A angústia (Angst) é um sentimento causado pelo desprazer antecipado pelo psiquismo, que busca evitar o desprazer muito maior que seria gerado por um objeto.

Ela se origina no indivíduo devido à expectativa que ele cria a respeito da iminente presença de algo que despertaria um medo, justificável ou não. Esta é, propriamente na língua portuguesa, a concepção de angústia enquanto ansiedade.

Note a utilização do pronome indefinido “um” em “seria gerado por um objeto”. Esta indefinição remete ao objeto, real ou imaginado, porque muitas vezes ele não pode ser nomeado – ou, apontado conscientemente – pelo próprio indivíduo que sente a ameaça, a ansiedade. Como exemplos, assim ocorre no transtorno de Pânico e no transtorno de ansiedade generalizada.

Ilustração de Lucile W. Holling para o poema “Dandelion Bubbles”, em Around a toadstool table – A child´s book of verse, de Rowena B. Bennett, Chicago, 1930.

A expectativa gerada pela incerteza e pela indeterminação do objeto tensiona o aparelho psíquico (corpo e psiquismo) gerando um desprazer que o psiquismo entende ser um prenúncio daquele que será gerado pela presença, de fato, do objeto. Desse modo, posta a antecipação de um desprazer menor em relação ao que pode vir, o psiquismo tende a fugir daquela posição e buscar outra mais prazerosa.

O tensionamento do aparelho psíquico, percebido muitas vezes em regiões, músculos e nervos do corpo, tem por função mobilizar e preparar o indivíduo para empreender a fuga diante daquele objeto que pode – naquele instante não há dúvida de que irá – gerar ainda mais desprazer.

No senso comum, são conhecidas algumas fugas que surgem enquanto respostas à intensificação da ansiedade, logo, ao tensionamento. São aquelas associadas ao aumento do consumo de alimentos, especialmente doces, de bebidas alcoólicas e do tabagismo, por exemplo. Basicamente, porque são saídas imediatas e estão amplamente disponíveis na sociedade de consumo.

Repare que, em meio à pandemia em que estamos vivendo, têm sido recorrentes as notícias e artigos que abordam o aumento generalizado do consumo de álcool. Da mesma forma, os mais afortunados, com seus vastos estoques alimentícios, percebem o necessário cuidado extra para manterem o peso durante o isolamento social.

Na língua portuguesa, o medo (Angst ou Furcht) é a concepção de angústia que se refere ao sentimento que surge quando este objeto pode ser nomeado e definido pelo indivíduo. Portanto, quando ele está, ainda que indiretamente, presente na consciência. Como em uma determinada fobia. Por exemplo, o claustrofóbico sabe da sua aversão aos espaços fechados. Basta que ele visualize ou imagine uma situação em que ele se reconheça em contato direto com o objeto fóbico para que a angústia, ou ansiedade, tome conta.

Já o pavor (Schreck) não é uma concepção, ou sentido da angústia, mas a realização daquilo que ela apenas antecipa. Ele é a descarga abrupta do tensionamento que tomava o indivíduo. Ele surge quando a expectativa se realiza no contato direto com o objeto que causava a ansiedade e o medo.

Portanto, do ponto de vista freudiano, a ansiedade e o medo não são etapas sequenciais, mas traduções das manifestações da própria angústia, que é conhecida popularmente no Brasil, somente, como ansiedade.

 

O que muda com a pandemia?

Após esta breve apresentação, esperamos que tenha ficado evidente como uma situação de pandemia altera, basicamente, quase tudo o que diz respeito à ansiedade.

Ou seja, é natural que este momento de indefinição altere a intensidade, a modulação e o caráter dos nossos afetos em relação a quase todos os objetos, como: mãe, pai, namorada, cachorro, gato, amigos, emprego e os nossos próprios pensamentos.

É importante ressaltar que tais mudanças ocorrem no interior do psiquismo, porém, reverberaram pelo corpo. Além de nódulos e tensões musculares, a ansiedade pode levar a episódios de insônia, ou, através do consumo excessivo de café ou álcool, atrapalhar a recuperação ideal do corpo e do psiquismo durante o sono.

Ainda, sua tendência é a de aumentar a irritação e intensificar o cansaço. A fadiga pode fazer com que fiquemos o dia todo no sofá assistindo séries, procrastinando atividades necessárias, mas, ainda assim, sem alcançar a desejada sensação de relaxamento própria às atividades de lazer.

Por isso, as atividades físicas são ainda mais importantes durante este período. Preferencialmente, em casa, mas, se não for possível, pequenas caminhadas diárias certamente atenuarão a ansiedade. Antes, informe-se sobre as devidas recomendações, como a de ficar, no mínimo, a 4 metros de distância da pessoa que caminha na sua frente.

Algumas vezes sentimos uma ansiedade que não sabemos de onde vem, noutras conseguimos defini-la com uma certa clareza. Um exemplo é aquela que atualmente toma algumas pessoas, em relação às incertezas no mercado de trabalho.

Conversar francamente a respeito destas mudanças, dos desejos, das expectativas e medos envolvidos é fundamental para diminuir a tensão, a ansiedade, a angústia. Seja com a família, os amigos ou com um psicoterapeuta.

O corpo, o cérebro e o psiquismo possuem uma ampla e maravilhosa plasticidade. Quando o mundo exterior passa por uma grande transformação, eles sempre são capazes de se readaptar.

Vivemos um momento doloroso, fundamentalmente para parentes e amigos das vítimas, mas que também é uma possibilidade de readaptação não apenas para indivíduos, mas para a humanidade.

Isto significa que, preservada e tratada a saúde imediata do maior número possível de pessoas no mundo todo, com as devidas cobranças, ações e precauções coletivas recomendadas diante da Covid-19, tais mudanças externas podem ser catalisadoras de transformações interiores e, consequentemente, de concepções e ideais partilhados que movem grandes questões sociais.

Tudo bem ficar (um pouco) ansioso durante a quarentena. Ao indivíduo, na maioria das vezes, a ansiedade é apenas a precursora de um momento ou um período mais prazeroso e melhor.

Algumas vezes não desejamos as mudanças e podemos ficar bem e confortáveis com a sensação de que está tudo igual. Em outras tantas, as desejamos, mas não sabemos como concretizá-las. Por fim, existem momentos como esse, quando as mudanças chegam sem perguntar e o que nos resta é, simplesmente, construir um destino para elas.

O resto é desejo.

Complexo de Getúlio

Por Hugo Ciavatta*

 

Freud que me perdoe, faltou-lhe entender que nós, brasileiros, padecemos de Complexo de Getúlio. É nossa alegoria, nossa metáfora, nosso recurso para tentar explicar nossa condição republicana tão corriqueira. Situação, aliás, que hoje beira o não verbalizável, aquilo sobre o qual procuramos palavras mas só temos vontade de gritar, que está às voltas quase como inacessível. Getúlio, como um mito, está em tantos lugares que é como se não estivesse em lugar algum. Nosso complexo é quem nos faz sofrer, dia após dia, pelo Brasil, de Atalaia do Norte a Touros, de Pacaraima a Bajé, sentimos cada movimento em nossos corações.

Piegas né, é verdade, porém é preciso dizer que “nós”, bem, nós não é assim um grande nós. Somos apenas aqueles que acreditam em aquecimento global, que não fazemos de nossas crenças religiosas um desejo de generalização ao país, impondo-as aos outros, que defendemos os direitos humanos, que acreditamos mesmo em democracia, em direito de defesa … Oops … É, pelo andar da carruagem do nosso tempo, talvez esse nós corresponda a um total enorme de 1,3% dos brasileiros.

Quando se trata de mito e psicanálise, cabe lembrar de Lévi-Strauss direcionando-se ao subtítulo de Totem e Tabu, de Freud, sobre as correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos. O belga mais francês da Antropologia diz que nas páginas de A oleira ciumenta se dedicou a mostrar, por sua vez, a correspondência entre a vida psíquica dos selvagens e a dos psicanalistas. Não era, pois, muito sutil o Claude, não é?

Tudo isso para dizer que nosso mito de vida republicana, nosso Complexo de Getúlio insiste em querer Salvar o Brasil. Quase sempre, historicamente, isso significa salvá-lo dos comunistas. Os da foice e do martelo, nossa, devem ser um montante de 0,4% no país. Puxa, que perigo! E nós, os 1%, queremos é salvar o Brasil das mãos de certos patriotas. Entre neuróticos e psicanalistas, todavia, é selvageria para todo lado.

O suicídio de Getúlio Vargas em 1954 tem organizado nossa vida política como um mito, como a mitologia ameríndia organiza a vida dos povos indígenas das Américas. Isto é, na leitura de Lévi-Strauss, os mitos, enquanto narrativas, personagens e suas situações, propõem regras de ação para uma sociedade. Os mitos são a imaginação coletiva das práticas sociais dos sujeitos, mas nem por isso lhes são anteriores e imutáveis. Mitos são transformações históricas, mitos também são modificados por suas sociedades. A república brasileira é anterior ao acontecimento político em torno de Getúlio Vargas, depois dele, muito aconteceu ao Brasil. Há, no entanto, conexões em meio a isso que dizem muito sobre nós. Nós?

Em 1930, Getúlio juntou seus chegados e pôs de lado a elite cafeicultora de São Paulo e Minas, a que se revezava na presidência. Vargas colocou em prática o que também se tornou um rito, uma marca para sinalizar uma pretensa mudança na república tupiniquim: juntar uns parças e botar para correr quem está no poder. Foi assim com a trupe dos militares Deodoro e Floriano em relação à família dos Bragança e Bourbon, no ato propriamente de fundação dessa república, pondo fim ao período imperial.

Gegê não ficou satisfeito com a correria de 1930 e aprontou um imbróglio com a constituinte de 1934 para permanecer poder. Acostumou-se na fantasia presidencial e, além disso, em 1937, bolou um esquema, atribuiu aos comunistas um arranjo golpista e deu, ele mesmo, um golpe, outro golpe. Nascia o Estado Novo sob pretexto do Plano Cohen, que hoje poderia ser considerado uma grande Fake News – fico imaginando quem seria Luciano Hang à época.

Depois de finalmente largar o osso em 1945, Vargas voltaria à presidência nos anos 1950, desta vez eleito. Perto do fim do mandato, entretanto, um de seus seguranças foi acusado de atentar contra a vida do jornalista Carlos Lacerda, seu opositor ferrenho. Associou-se o segurança a mando do presidente, associou-se corrupção comprando a tentativa de assassinato de Lacerda. À luz de 1937, alguém poderia ter lhe dito: “é, parece que o jogo virou, não é mesmo, Getúlio?!”. Não havia delação premiada, nem um juiz-herói – o anacronismo aqui é sarcasmo –, de todo modo, Vargas se viu acuado e, por fim, tomou a decisão de Salvar o Brasil metendo uma bala no peito.

Nós, aquela porcentagem ridícula, por exemplo, assistimos à votação do impeachment, em 2016, ainda que sem apoiar os governos de Lula e Dilma Rousseff, e a cada “pelo conjunto da obra” de um deputado procurávamos um revólver para dar fim à agonia, sozinhos, diante da TV. Ninguém se pergunta, os patriotas de ocasião, se as tais pedaladas fiscais seguiram acontecendo de lá para cá, e se elas implicam a situação econômica do país antes dessa pandemia.

Em sua carta de despedida, o então presidente Vargas diz “sair da vida para entrar para a história”. Uai, e da história alguém está fora, Getúlio? Da história oficial, vá lá, a maioria, esquecidos, silenciados, ocultados. No entanto, assim como de seus respectivos corpos ninguém escapa, como quem habita o tempo estamos todos sempre na história. Vargas “saiu da vida para tornar-se mito”. Getúlio, desde o início de sua trajetória pública, seguiu o rito, entendeu o enredo brasileiro, as possibilidades que o roteiro lhe dava de se fazer política desde a fundação dessa república, e, muito antes de virar modinha, fez de si mesmo um mito.

Quem sabe Lévi-Strauss analisando as narrativas do Estado brasileiro dissesse que há pequenas inversões estruturais desdobrando-se em novas estórias. Ao cientista social contemporâneo, ainda, praticamente se apresenta a citação a respeito da repetição histórica, trocando farsa por tragédia no teatro-Brasil. Não. Nós, brasileiros – aquele 1% –, que gostamos de sofrer pelo Brasil, vimos em 1964 outros chegados traidores marcharem aqui e acolá. É, quase como Deodoro e Floriano, quase como Getúlio Vargas duas vezes. Sob pretexto da ameaça comunista, claro, como um filme repetido de 1937, militares apearam João Goulart do poder. Era o centrão de momento fazendo papel de grande inimigo da nação.

Centrão que nos últimos anos atende como demônio mor da pátria amada: Lula – buuuú. Ainda no início do processo que lhe deixou atrás das grades por meses, em 2016, Luiz Inácio declarou, “não tenho a vocação do Getúlio para me dar um tiro”. Tenho para mim que Lula não faltou à aula sobre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. O ex-presidente quis dizer: “que Hegel e Marx me perdoem, se farsa, se tragédia, eu não vou me suicidar”. Ali, nós, os 1%, deveríamos ter sacado: fodeu. Tradução, Luiz Inácio disse: “eu não vou salvar o Brasil”.

Hoje, aqueles que se declaram os principais opositores de Lula, por outro lado, justamente para salvar o Brasil, colocam-se, eles mesmos, seus corpos, como a república. É metonímia, emerge discursivamente o absurdo de tomar a parte pelo todo. Nosso eterno retorno, claro, é o eterno retorno do mesmo: toda a nação são os opositores de Lula, seus corpos individuais são a república. É de deixar O Leviatã constrangido. Não são aquele 1% – ah, o diabo da ironia –, mas querem fazer acreditar que sofrem pelo Brasil.

O juiz-herói abdicou da magistratura para “trabalhar pelo Brasil”, foi o que se leu e se ouviu insistentemente. Virar ministro, mais, foi colocar sua vida em risco pelo Brasil, lê-se, ouve-se, vez sim, vez também. Tradução, por enquanto, o máximo que ele encena é querer livrar o Brasil de atitudes como a que ele mesmo parece ter tomado para que ele próprio estivesse no poder. O ex-capitão agora presidente, também, só repete que sobreviveu a uma tentativa de assassinato para lutar pelo Brasil. É sua missão, sua caminhada extenuante, porém, incansável – uma pena, retirar-se seria uma alegria inenarrável.

Como advertia – sim, ele de novo – Lévi-Strauss a respeito dos mitos, sociedades não são indivíduos, elas não procuram suas narrativas com quem consulta um catálogo, um manual de como proceder. Faltou combinar isso com os brasileiros: nós, brasileiros cômicos, e também os patriotas de ocasião, todos nas franjas da linguagem republicana provinda de Getúlio Vargas. Mas é aí que nos distanciamos, não nos comunicamos porque não é possível salvar o Brasil por caminhos tão divergentes.

Disparou o número de mortes de lideranças indígenas nos últimos anos. O desmatamento na Amazônia brasileira bate recordes atrás de recordes comparativos nesse mesmo período. Houve estiagem em algumas regiões do país, noutras, chuvas excessivas. Falta água em áreas conhecidas mundialmente por suas cataratas. O desemprego crescia mesmo diante das tão urgentes reformas das leis trabalhistas, e da previdência. Quem se importa? Mais um “e daí?” dos patriotas que fazem apenas de seus ícones o Brasil; nós, brasileiros risíveis, por outro lado, imaginamos a nossa própria morte a continuar vivendo nessa desgraça exponencial.

Portanto, chegou a hora de deixarmos o sofrimento, vamos nos entregar ao medo. Já vimos militares darem golpes à direita, já assistimos ao centrão dominar a política brasileira por décadas… falta uma guinada tout court à esquerda, uma de fazer inveja aos sovietes, aos guerrilheiros, uma reviravolta tonitruante! – sempre quis usar essa palavra. Vamos, comunistas, juntem seus camaradas! Somos quase nada percentualmente, mas estamos com vocês! Tomemos o poder, marchemos – de máscaras e álcool gel, evidentemente –, acabemos com essa aflição!

Tenhamos em mente, não esqueçamos a getulística, o nosso Complexo de Getúlio disseminado, e que há uma criatura que, possivelmente viva, é entendida como mito – muito longe de qualquer concepção ameríndia. Mas nem Vargas nem ex-capitão, tampouco juiz-herói! Vamos salvar o Brasil de 2020 de sua própria obsessão histórica! Em meio a uma pandemia global, vai pairar a dúvida se até mesmo um tal golpe comunista não é suicídio coletivo, porém, talvez, seja apenas mais um “e daí?”, quem se importa? Ou finalmente um golpe comunista, ou um suicídio coletivo! Pelo menos realizaremos o desejo de certos patriotas.

 

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* Hugo Ciavatta é antropólogo e, obviamente, sem-graça.

 

Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, o autor recomenda a leitura da “Abertura” de O Cru e O Cozido, “A estrutura dos mitos”, em Antropologia Estrutural e “Da Possibilidade Mítica à Existência Social”, em O Olhar Distanciado, todos de Claude Lévi-Strauss.

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.

A importância da psicanálise durante a pandemia

A sociedade global, em compasso de espera, não parou, mas quase. Se tantos não puderam adotar o isolamento social como medida protetiva durante a pandemia – e ainda tiveram suas atividades diárias intensificadas por trabalharem em setores essenciais, como os da saúde, transporte, segurança pública e limpeza urbana -, bilhões de pessoas aportaram em uma quarentena caseira.

Em comum, as rotinas alteradas e, com elas, os relacionamentos, pensamentos e sentimentos remoídos diariamente pela avalanche de notícias que compartilha democraticamente sofrimento, desespero, impotência, tristeza e dor. Somente no Brasil são milhares de mortos e dezenas de milhares de pessoas enfrentando o luto enquanto estão imperativamente distanciadas de amigos e parentes.

É praticamente impossível ficar indiferente a esta situação, ainda que se assuma um perigoso estado de negação diante da realidade. Isso porque, neste contexto frágil e trágico, mesmo os mais afortunados e saudáveis adotaram o teletrabalho ou home office, como preferir.

Trabalhadores formais que não gozam desta possibilidade receberam férias compulsórias, na expectativa de que, em um futuro breve, não venham a engrossar a longa fila de desempregados que dá a volta em nosso país. Já os informais, improvisando estratégias em seus pequenos negócios, através da internet, encontraram uma dimensão ainda mais dramática da palavra sobrevivência.

Quase todos, com ou sem carteira trabalhista assinada, se virando como podem, trabalhando e vivendo sozinhos ou com a família e filhos dentro de casa, 24 horas por dia, 7 dias por semana. São casamentos de trinta anos, ou mais, redescobertos de maneira intensa. Relacionamentos recentes, forjados e atravessados por telas e redes sociais, nos quais tantos se deparam pela primeira vez com o poder do olhar, do silêncio e de um tempo a dois que parecia ter sido suprimido pelo século XXI.

Tudo isso imposto contrariamente aos desejos, sem culpados ou responsáveis, às custas da liberdade de ir e vir.

Estamos vivendo o indesejável. Porém, mesmo nele, os desejos não cessam. Então, para onde eles vão?

Male and Female Bathers with Umbrella. Alfred Grévin (França, s. XIX)

Até aqui vivenciamos um breve período, de meses, que já alterou alguns pressupostos sociais, políticos e econômicos, nas mais diversas sociedades e culturas inseridas no mundo globalizado. Transformações que dificilmente se encerrarão com o fim do isolamento social ou com a descoberta da tão sonhada vacina.

Talvez, e muito provavelmente, aquilo que estamos presenciando seja apenas o preâmbulo de um novo volume na obra da humanidade. Assim, para além de “fé na ciência” não se mostrar uma contradição em termos, diante das incertezas geradas por tamanhas mudanças comprimidas em um espaço de tempo tão curto, emerge em sua plenitude aquela que, até recentemente, era esquecida no trato diário ou resumida às frases de efeito nas redes sociais. A mãe de todas as ciências: a filosofia.

Note-se que esse ressurgimento não é a mera consequência do movimento que inclui os filósofos e pensadores pop que habitam as timelines, mas a própria causa do seu surgimento, que já vinha em curso com as novas questões colocadas pelo mundo contemporâneo. Nesse instante de pandemia tal demanda assume a almejada proposta da filosofia – para além do discurso e da retórica reproduzida por ouvintes, leitores e seguidores -, quando ela se desdobra em prática.

Quando o horizonte se aproxima demais e os olhos da alma só alcançam os arredores imediatos é porque já perdemos uma certa pureza e algumas certezas que nos estruturam e acalmam. São em momentos como esse, quando não podemos fugir das dúvidas, que a reflexão se revela como mais uma necessidade posta à sobrevivência.

A questão é que pensar, refletir ou filosofar, definitivamente não são tarefas simples, muito menos tranquilas. Elas geram desconforto, inquietude, angústia e podem chegar a doer no corpo. Sobretudo, agora, quando os corpos enclausurados encontraram uma parada inédita na história.

Como o corpo e a mente são faces da mesma moeda, na cotação da vida, muitos têm tido pela primeira vez a percepção de que mergulhos interiores podem ser tão arriscados quanto aqueles no mundo exterior. Nesse sentido, todas as psicoterapias são recursos preciosos, que nos ajudam a suportar o sofrimento na necessária travessia que se apresenta.

A psicanálise é uma das diversas psicoterapias.

Criada por Sigmund Freud, o seu diferencial em relação às demais é que ela refunda a noção de consciência da filosofia.

Antes, a mente era compreendida como aquilo que conhecemos racionalmente: a consciência era o estado do saber. Já as paixões, sentimentos e afetos, dependendo da tradição filosófica, partiam de forças vitais, deuses e até mesmo da própria consciência. O inconsciente era somente um estado de alienação, de não saber, do desconhecido que não habitava o psiquismo.

Freud alterou radicalmente estas noções ao afirmar que o Inconsciente, na verdade, é muito mais poderoso do que imaginavam os filósofos. Muito antes de ser um estado de não consciência sobre algo externo, ele é um espaço, e também uma dinâmica, no interior do psiquismo. Não um espaço e dinâmica quaisquer, mas a imensa parte daquilo que compõe o que chamamos de psique, que relaciona-se permanentemente com o corpo físico.

No Inconsciente residem os traumas, reminiscências e vivências antigas que compõem um tipo de conhecimento, advindo da nossa relação com o mundo, que foi reprimido. Dele também partem os desejos e as paixões. Ou seja, possuímos uma imensa força, um tipo de saber que não sabemos e que nos habita, nos molda e direciona nossas respostas, afetos, sentimentos e reações diante dos acontecimentos, na maioria das vezes, incontroláveis da nossa vida social, familiar e profissional.

Contando com dois instrumentos simples, a fala e a escuta, a psicanálise é uma prática consolidada, há mais de um século, como a cura pela palavra. Cura terapêutica, enquanto alívio do sofrimento, dos seus sintomas e da redescoberta de si. Um espaço de enfrentamentos e suporte da angústia, inerente à própria condição humana, do qual ninguém deve ser ou estar privado, fundamentalmente em tempos como o que vivemos.

Corona, conspiração, culpa e negação

Nos últimos anos, as redes sociais virtuais no Brasil, sobretudo o WhatsApp, ajudaram a constituir um pequeno legado: o movimento antivacina, o terraplanismo e outras tantas fake news diárias, antigamente conhecidas como mentiras.

Apesar deste alto custo ao conhecimento humano, existe um legado muito positivo no uso das mídias e comunicadores instantâneos. Por exemplo, o fato de que elas ajudam a aplacar alguns efeitos psíquicos do isolamento social. Porém, este artigo é sobre o legado anterior.

Há uma estrutura narrativa que tem funcionado de forma muito eficiente nestes novos tempos de instantaneidade, ao explorar certas demandas narcísicas das pessoas e se utilizar de recursos apelativos que escondem suas falsas premissas.

Podemos dizer que as teorias da conspiração formam o eixo social que coloca o carro da negação em movimento. A partir de qualquer uma delas tudo passa a ser descrito e articulado com uma incrível desenvoltura criativa. Elas demonstram um esforço de detalhamento obsessivo por parte dos seus criadores que, sem dúvida, seria condizente com o espírito transbordante de fantasias que rege, por exemplo, os grandes artistas.

Entretanto, esperávamos que duas questões fizessem com que o carro da negação não tivesse força para passar da primeira esquina.

 

  • A marcha da conspiração

Diferentemente do sentido proposto por qualquer obra de arte – seja ela um filme, série, música ou pintura – que pressupõe a comunicação, ainda que pela ruptura – as teorias da conspiração estimulam algo nada artístico: a anulação do outro. Para um teórico da conspiração não há escuta, logo, não há a fala do outro.

O problema é maior, porque, como a própria expressão sugere, há algo em comum a todas as múltiplas teorias: o caráter único da conspiração. Por isso, não as chamamos de teorias das conspirações, no plural.

Isso indica o porquê de tantas narrativas – ainda que extremamente diversas, como as fantasias são subjetivas – cativarem um público semelhante. Aos seus adeptos, elas satisfazem uma enorme demanda por reconhecimento. Para um teórico como esse só há uma grande, desconhecida e articulada conspiração, que somente uma articulada, enorme e conhecida pessoa descobriu em sua totalidade: ele.

No cerne das suas proposições há um explícito narcisismo infantil: ou você o aceita, ama incondicionalmente e o parabeniza pelas “descobertas” ou você passa a ser desprezível e merecedor da indiferença ou da raiva, uma vez que torna-se uma representação da própria conspiração.

Isto, por si só, é uma questão muito importante, porque afeta a vida social tanto do teórico da conspiração, quanto daqueles que o amam. Pessoas sofrem com isto, de parte a parte, e, certamente, a psicanálise e as diversas psicoterapias têm muito a contribuir nestes casos.

Entretanto, nestes novos tempos, um passo dado expandiu a dimensão daqueles que são afetados.

Diferentemente dos grande artistas, que produziram obras sublimes apreciadas pela sociedade – porque sublimaram suas fantasias – o outro grupo, heterogêneo, cresceu e se organizou com as mídias sociais. Dele, estimulados por um duelo interno de fantasias, seus membros resolveram partir juntos para a ação social.

O que há em comum nessas diversas fantasias em ação, além da autofagia, é a abolição da condição do outro enquanto sujeito, uma vez que somente aquele que detém a “ciência” da conspiração em curso sabe “a verdade”. Desta forma, o outro – que não aceita a (sua) verdade – torna-se um empecilho ao que – o conspiracionista acredita – é o seu dever de agir.

Algo que já era grave e perigoso em um contexto sociopolítico aparentemente normal, neste momento, ajuda a promover a calamidade pública.

Homens jogando boliche com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

Homens jogando bocha com bombas. Pintura em tábua de madeira. Banksy.

  • O ponto morto da negação

A segunda questão que poderia fazer o carro da negação estacionar chama-se: realidade. Porém, é exatamente ela o alvo.

Obviamente, o impacto econômico provocado pela pandemia afetou ainda mais a combalida economia brasileira, impondo a muitos a necessidade de se exporem ao vírus, paradoxalmente, para conseguirem sobreviver. A partir de algumas perspectivas teóricas poderíamos pensar sobre alguns dos tantos sentidos do que seja a realidade, só que o que nos cabe discutir não espera.

Há algo posto em dados, nomeado nas notícias, de jornais e conhecidos, que está começando a ser compreendido pela ciência de fato. Esse algo chama-se pandemia provocada pela Covid-19 e as suas consequências devastadoras, como as milhões de pessoas que perderam parentes, amigos, e estão vivenciando o pior dos lutos: aquele em que não se pode despedir do morto.

A questão que nos interessa, aqui, portanto, circunscreve-se àqueles que poderiam sobreviver economicamente no isolamento social.

Há poucos anos poderíamos afirmar, sem medo de errar: a realidade se impõe a todos. Agora, a questão, de vida ou de morte, é : quando?

Quem já vivenciou a perda de alguém amado pode saber o que é o estado de negação, a primeira das cinco etapas do conhecido modelo do luto, criado pela psiquiatra suíça Elisabeth Kübler-Ross. Segundo este modelo, para alguns que enfrentam o luto, a negação é a primeira reação, inconsciente, diante da perda de um objeto fundamental (para a psicanálise, um objeto pode ser tanto uma pessoa, quanto uma ideia, um pensamento, uma relação ou uma coisa física).

Esta reação ocorre porque o objeto perdido estruturava narcisicamente o psiquismo, naquele lugar que nos faz ser e saber quem somos. Assim, a negação é a tentativa do Inconsciente de reagir ao desmoronamento do Eu. Ou seja, quando a dor é tamanha e o medo de viver sem aquele objeto é tão grande, a realidade torna-se insuportável. Portanto, em um primeiro momento, o psiquismo a nega, porque precisa sobreviver.

Uma boa parte do clima conspiracionista que avança pelas correntes do WhatsApp – para além das mentiras de poucos, por má-fé – também desponta como uma negação da realidade. Cada qual com suas questões na vida encontrou, através dessas fantasiosas narrativas, um meio para organizar os seus sentimentos.

Botar em marcha o carro da negação, portanto, é a ação que promove, não a obra de arte enquanto fruto da sublimação das fantasias, mas o avanço destas sobre a realidade social. Por isso, a consequência da ação não será, jamais, a criação que partilha sentidos, mas a sobreposição ou a imposição deles.

Esta imposição permite, àquele que impõe, extravasar os seus fracassos e perdas. O expurgo dos afetos de pequenos lutos diários, que antes não encontravam o devido escape, encontram uma prazerosa sensação, progressiva e libertadora, para a qual pouco importa a realidade.

Assim, tragicamente, neste momento, vemos algumas dimensões da experiência unirem-se na negação. De um lado, parentes de pessoas mortas pela pandemia, e, do outro, movimentos antivacina e demais negacionistas.

Esse carro acelerado nos leva a um último aspecto importante.

 

  • A culpa após a pandemia

A culpa é um sentimento que acumula-se em doses homeopáticas. Todos a sentimos ao menos uma vez na vida. Ela é traiçoeira, porque assemelha-se à fatura do cartão de crédito quando chega. Enquanto compramos tudo está uma maravilha, mas lá no fundo desconfiamos que não deveríamos fazer aquilo.

Um sentimento que pode ser antecipado pelo psiquismo, diferentemente daqueles suscitados por grandes eventos traumáticos que escapam ao nosso controle. Afinal, ao menos no caso das compras, sabemos que a fatura chegará.

Em outras alçadas da vida não muda muito, quase sempre é assim.

Entretanto, continuamos insistindo nos erros (mas também acertos), porque esta condição desejante, agitada em fantasias, não cessa jamais. Também, porque temos a certeza de que satisfazer um desejo sempre é profundamente prazeroso e sabemos bem que há algumas culpas e outras culpas.

Neste momento de necessário isolamento social, quando estados de negação da realidade tristemente confluem rumo à calamidade pública, muitos que não são teóricos da conspiração, nem necessitariam sair do isolamento – por sobrevivência ou devido à profissão – estão fazendo exatamente isto.

De fato, ficar sem abraçar quem amamos e sem sair de casa são duas privações que estimulam as fantasias e, assim, caso a negação não se coloque, o desejo de voltar à normalidade só tende a crescer e apertar o peito em ansiedade e saudade.

Porém, há um fator importante nisto tudo.

O fato de raramente podermos identificar, em meio a uma epidemia ou pandemia, quem foi o agente transmissor que infectou alguém, aparentemente tem feito muitos se desresponsabilizem por suas atitudes. Sobretudo, porque o coronavírus pode ser assintomático para 80% das pessoas. Como jamais saberemos com certeza quem contaminou quem, é impossível estabelecer legalmente um culpado.

Isto significa que, principalmente os jovens – mas não só – estão fortemente imantados pelas suas fantasias e desejos e tentados a saírem pelas ruas despreocupadamente. O equívoco não se dá, somente, ao subestimar as estatísticas que apontam que 20% podem ter sintomas e 5% correm o sério risco de morrer. Ele ocorre quando esta desresponsabilização, em sua jornada narcisista, expõe outras pessoas ao risco. Outras pessoas que não podem aderir ao isolamento, por necessidade.

Os que agem desta forma estão impondo o seu desejo e as suas fantasias às custas da vida dos outros.

Estas pessoas não estão em um estado de negação, mas podem estar se deixando levar, inconscientemente, pelo clima de alguns que estão. O que elas não vislumbram é que quando a pandemia passar, com boas chances de que sobrevivam, a culpa interior pode tornar-se a mais dolorosa das penas, que nenhum tribunal seria capaz de impor. Principalmente, caso percam alguém amado.

No luto, a negação quase sempre passa. Ele é elaborado em função do tempo e, também, de uma boa terapia. A vida segue.

Porém, quando a culpa envolve-se na história, o luto vira melancolia.

Notem: na vida conhecemos muitos perdoados e desculpados por erros graves, mas dificilmente encontramos um ex melancólico.

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Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, recomendo a leitura de dois textos de S. Freud: Introdução ao Narcisismo e Luto e melancolia.