Palestina, Israel, antissemitismo, neonazismo e Brasil

À luz dos fatos – Israel, antissemitismo e neonazismo

Um judeu não é, necessariamente, israelense. Um israelense não é, necessariamente, judeu. Um judeu não é, necessariamente, sionista. Um israelense não é, necessariamente, sionista. Um sionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, de direita ou esquerda. Um antissionista não é, necessariamente, um antissemita. Judeus, israelenses e árabes não são, necessariamente, religiosos. As combinações são múltiplas, porque, como disse Hannah Arendt, quem habita este planeta não é o Homem, mas os homens. A pluralidade é a lei da Terra. Àqueles que não toleram a pluralidade, os chamamos intolerantes. Quando os intolerantes desumanizam o outro em sua condição, os chamamos fascistas. Um intolerante não é, necessariamente, um antissemita. Nem um fascista é, necessariamente, antissemita.

Todavia, o fascismo e o antissemitismo são pressupostos do neonazismo. Um adendo fundamental: apesar do termo semita no imaginário popular referir-se somente aos judeus, ele é relativo ao grupo étnico e linguístico ao qual se atribui Sem como ancestral, um personagem do livro Gênesis, filho de Noé. Portanto, segundo o Antigo Testamento, os povos semitas são os hebreus, assírios, aramaicos, fenícios e árabes; e antissemita é aquele cujo ódio, étnico, direciona-se contra os membros ou os descendentes desses povos. Assim, sem contradição mítica, histórica e lógica alguma, mas sempre nutrido de ódio direcionado a um semita que ele desumaniza, um outro semita pode ser, também, um antissemita. Um antissemita é um neonazista quando inspira-se na ideologia e estética nazista, cultuando os seus símbolos e propagando o seu discurso, ainda que nas sombras dos porões e da deep-web. Quando ele externaliza o seu ódio no campo simbólico, sociocultural, organizando-se politicamente, vocalizando e expressando a sua ideologia e empenhando os seus esforços físicos e mentais em práticas e ações cujo objetivo final pressupõe, enquanto projeto político, exterminar a existência de um outro em razão da sua origem semita, mas não somente. Um neonazista, muito provavelmente, também defenderá o extermínio de outros grupos étnicos, identitários, políticos e/ou econômicos, como ciganos, pobres, gays, negros, trans, socialistas ou comunistas.

Criticar o Estado de Israel não é desejar a sua abolição. Defender a constituição do Estado da Palestina não é antissemitismo. Defender um único Estado, partilhado igualmente e sob as mesmas leis para árabes e judeus não é antissemitismo. Criticar o Estado de Israel não é antissemitismo, porque um Estado é uma organização político-administrativa governada por uma composição política, submetido a uma constituição, a leis, tratados, acordos e organismos internacionais que desautorizam expressamente quaisquer medidas que promovam o higienismo visando a uma supremacia étnica em seu território. São vários os casos, ao longo da história, dos grupos e movimentos que tentaram fazê-lo. O mais conhecido, em função do essencial trabalho de preservação da memória por parte das entidades judaicas, foi o nazismo, que, vale ressaltar na era da desinformação, foi um movimento ideológico e político de extrema direita.

Por fim, um Estado moderno não confunde-se totalmente e somente com um grupo étnico. Sigmund Freud, que sofreu muito com o antissemitismo europeu, um dos mais brilhantes teóricos da humanidade e que nos legou a psicanálise, talvez dissesse que seria prudente aquele que compreende toda e qualquer crítica a Israel enquanto uma manifestação antissemita, antes de externalizar a sua crítica ou ódio por aquele que ele supõe ser antissemita, investigar em si aquilo que, talvez, o seu próprio Eu invista no outro. A começar pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, que já afirmou que Hitler não tinha intenção de matar judeus e teria sido convencido por um ex-líder islâmico de Jerusalém a executá-los, relativizando o papel do nazismo no Holocausto e revelando, há anos, aquilo que se apresenta agora como um projeto antissemita e neonazista de extermínio do povo árabe palestino.

O governo de Israel tem ministros neonazistas. Isso realmente lembra a Alemanha em 1933.

Quem disse a frase acima ao jornal israelense Haaretz, há 1 ano, foi Daniel Blatman, historiador judeu e israelense que obteve um Ph.D., summa cum laude (a maior distinção em uma titulação acadêmica), enquanto foi, ao mesmo tempo, professor sênior de Judaísmo Contemporâneo pelo Instituto de Judaísmo Contemporâneo da Universidade Hebraica de Jerusalém e descrito como um acadêmico excepcional pelo Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos.

Manifestações – Brasil e Israel

No dia 18 de fevereiro de 2024, o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, após participar da reunião da cúpula da União Africana em Adis Abeba, Etiópia, e reiterar a repulsa dele e do Estado brasileiro aos atos de terrorismo do Hamas, bem como ao genocídio em curso na Faixa de Gaza, disse em uma entrevista:

O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico, aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus.

Lula respondeu a uma pergunta em uma entrevista, portanto, de improviso, demonstrando consternação diante de algo que é excepcional e estarrecedor, não convencional e horrível. Entretanto, apesar do improviso, não há qualquer equívoco fático nessa afirmação.

A fala gerou uma repercussão imediata na conjuntura interna. Sobretudo, por parte de uma ampla oposição orientada por extremistas de direita que pouco têm a dizer nos últimos meses, por estarem às voltas com inúmeras investigações sobre corrupção, omissão genocida na pandemia, crimes variados e a comprovada tentativa de Golpe de Estado. A indignação veio em uníssono por parte de algumas entidades judaicas que não representam a pluralidade da comunidade judaica brasileira e mundial, da imprensa, que aderiu imediata e acriticamente ao discurso, relembrando os seus tempos de Lava Jato, e por adeptos do bolsonarismo, enquanto expressão relevante do neofascismo brasileiro.

Jair Bolsonaro, interlocutor de neonazistas brasileiros e apoiado por eles, como demonstrou minha saudosa amiga Adriana Dias. O aliado dele, Roberto Jefferson que, além de receber a Polícia Federal a tiros, também abriu as portas do seu partido a neointegralistas. Bolsonaro que recebeu, com um largo sorriso no rosto, entusiasmados neonazistas alemães em seu gabinete, durante o exercício do seu cargo, enquanto chefe do Estado brasileiro. Aquele que adquiriu, por dezenas de milhões de reais, e utilizou um software israelense de espionagem e monitoramento de civis, desafetos, opositores e aliados.

Repercussão, portanto, para instrumentalizar os que restam bolsonaristas. Muitos dos quais usaram amplamente o símbolo máximo de Israel, a sua bandeira, em seus avatares durante as últimas duas campanhas presidenciais no Brasil, quando, também, bandeiras físicas de Israel disputavam espaços, em manifestações ilegais nas ruas do Brasil, com cartazes que pediam intervenção militar, fechamento do STF e o extermínio de opositores. Repercussão artificial, para mobilizar aqueles que ainda seguem o ex-presidente, que, mais do que um aliado, contou e conta com a ajuda de Benjamin Netanyahu. Instrumentalização daqueles que ainda são guiados por um grupo político com aspirações paramilitares, e que contam com um projeto político fascista e neonazista. Grupo que já havia agendado uma manifestação para o próximo domingo, 25 de fevereiro, para explicar aos seus adeptos aquilo que se recusam a explicar em entrevistas e depoimentos à justiça, apesar das delações já registradas e inúmeras provas colhidas. Posteriormente à reação da acuada extrema direita brasileira, a fala foi amplificada, hiperdimensionada e deturpada, numa resposta desmedida e jamais vista, pelo corpo diplomático do governo Netanyahu.

Ao contrário da mentira que a isolada diplomacia israelense difundiu de maneira tosca, rasa, grosseira e escatológica nas redes sociais virtuais, Lula não negou o Holocausto e não foi antissemita. Ele afirmou o horror que foi o Holocausto e a sua excepcionalidade na contemporaneidade. Além, ele traçou, sim, um paralelo histórico pertinente, com fins retóricos, entre a ação deliberada de Hitler e do partido nazista, ao arrepio da comunidade internacional, de exterminar judeus e a excepcionalidade da ação deliberada de Netanyahu e do seu grupo na Faixa de Gaza, ao arrepio de acordos atuais e aqueles jamais cumpridos, que remontam à origem da ONU e à origem do próprio Estado israelense.

A esta altura, há uma profusão de comprovações de crimes de guerra e acusações gravíssimas de genocídio, tantas quantas as provas dos crimes do bolsonarismo, que, entre outros, mataram centenas de milhares de pessoas durante a pandemia. Por isso, grande parte da comunidade internacional apoiou a fala de Lula e a imensa maioria das manifestações nas redes sociais virtuais, em inglês, exaltaram o presidente. As manifestações em português, nas primeiras horas, foram massivamente críticas a Lula e comprovadamente não foram orgânicas. Ou seja, foram orquestradas por opositores e impulsionadas por robôs, em um modus operandi idêntico ao que alçou o fascismo brasileiro ao poder, com a disseminação de distorções, mentiras e ódio. No segundo dia, a tendência inverteu-se completamente, fazendo com que a imprensa brasileira recuasse de toda a sua assertividade mecânica, acrítica e a serviço de um projeto político internacional fascista e neonazista.

A diplomacia brasileira entrou em ação, respondendo duramente ao disparate da atualmente ridicularizada diplomacia israelense. Diplomatas são os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra.

Manifestações – Estados Unidos e Israel

Ontem, 20 de fevereiro de 2024, no Conselho de Segurança da ONU, os EUA vetaram mais uma vez uma proposta de cessar-fogo imediato na Faixa de Gaza.

Estamos a poucos dias do início do Ramadã, prazo limite dado por Israel para a libertação dos reféns feitos pelo Hamas ou para o início de uma ofensiva terrestre, coordenada com os EUA e o Egito, em Rafah, sul de Gaza. Lá estão 1,5 milhão de sobreviventes palestinos deslocados e encurralados pelas fronteiras estabelecidas ilegalmente por Israel. A esta altura, o veto já não é revelador em sua recorrência cega, mas persiste estarrecedor diante da possibilidade concreta de que a intensificação do genocídio – que não é guerra, em função da avassaladora assimetria de forças – possa levar a uma escalada ainda mais catastrófica, arrastando o mundo para uma guerra que pode envolver países africanos, todo o oriente médio e as potências mundiais.

As palavras finais lidas pela embaixadora estadunidense Linda Thomas-Greenfield, de um discurso elaborado previamente, foram:

Dito isto, pretendemos fazê-lo da forma correta, para que possamos criar as condições adequadas para um futuro mais seguro e pacífico. E continuaremos a empenhar-nos ativamente no árduo trabalho de diplomacia direta no terreno até chegarmos a uma solução final.

Após um breve discurso, escrito por um grupo de diplomatas, com o efeito prático de vetar o cessar-fogo imediato e autorizar a continuação de um genocídio, uma limpeza étnica que já conta com 30 mil mortos, entre os quais 10 mil mulheres e crianças, a embaixadora dos EUA termina dizendo que o seu país está se empenhando ativamente no trabalho de encontrar uma ‘solução final’? Essa é a expressão mais conhecida da gramática do ódio nazista e que sintetiza o horror levado à cabo pela ascensão do partido nazista, descrito de forma primorosa pela filósofa Hanah Arendt.

No Brasil não houve repercussão até agora. Netanyahu e a diplomacia israelense também permanecem em silêncio.

Enquanto diplomatas continuam sendo os primeiros a perderem a credibilidade e a real função em regimes que desejam a guerra, centenas de milhares de feridos e quase 2 milhões de pessoas estão privadas de remédios, água, comida, hospitais, casas e energia elétrica. Condições que um experiente médico militar francês, que atuou em diversas guerras e retornou após três semanas em Gaza, descreveu ao jornal Le Figaro:

Normalmente, os civis podem fugir dos combates. Lá é impossível. A população não tem onde se proteger. Centenas de milhares de pessoas vagam pelas ruas em busca de água e comida. (…) Nunca vi nada comparado à Gaza. (…) Acho que (a situação) pode ser semelhante à do Gueto de Varsóvia.

O jornal completou, explicando que o Gueto de Varsóvia foi onde 380 mil judeus foram amontoados pelos nazistas desde 1940, em condições de vida desumanas.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais | O neofascismo brasileiro

O cenário

No último domingo, 8 de janeiro de 2023, uma semana após o mais emblemático rito de posse de um presidente da república na vida nacional, alguns milhares de terroristas invadiram o coração da República Federativa do Brasil, situado na Praça dos Três Poderes, em Brasília. Destruíram um patrimônio público de valor inestimável, obras de arte e mobílias históricas sem preço, porque únicas ou doadas por chefes de Estado desde o século XVII. Arrebentaram vidraças, portas, monitores, chão, tetos e paredes. Roubaram bens, HDs, documentos secretos.

Vilipendiaram o Palácio do Congresso Nacional, o Palácio do Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto numa ação orquestrada pelo ex-governo fascista brasileiro, findado, então, há oito dias. Desde o fim do ano passado, quando ainda usufruía do seu passaporte diplomático, o ex-presidente encontra-se refugiado na Flórida, Estados Unidos. Noticiaram que ele estaria pensando em retornar ao Brasil para evitar o vexame da extradição. A Itália, ao menor sinal do neofascista brasileiro, já se mobilizou para evitar recebê-lo.

Seguem alguns adendos às possíveis análises sobre os últimos eventos promovidos pela extrema direita brasileira, emulando ações de uma extrema direita internacional, reavivada como não víamos desde a derrota do nazifascismo na Segunda Guerra Mundial.

As condições históricas – O público e o privado

Em face do intento fracassado, de ruptura de um regime democrático recém restaurado em sua aparente plenitude, só podemos nos fiar por aquilo que nos precede.

Poderíamos facilmente visualizar – portanto, reconhecer – aqueles fascistas, despidos no último domingo, destruindo qualquer patrimônio público país afora, desde sempre, dada a nossa história colonial. De um banco de praça a um extinto orelhão, de uma vaso chinês a um quadro do Di Cavalcanti, como foi feito há três dias. Mais, em sua pulsão destrutiva, aquela horda poderia ser representada por um canalha qualquer que administra um condomínio de apartamentos como se fosse o seu castelo particular, a despeito das assembleias de moradores, ou por um capitão das Forças Armadas, ou da PM do Distrito Federal, que age sob o uniforme conforme a sua ideologia contrária ao sentido das suas atribuições e obrigações enquanto servidor público.

Todavia, dificilmente poderíamos imaginá-los destruindo o próprio apartamento, queimando o próprio carro, arrebentando uma agência do Itaú, um prédio do Starbucks, do McDonald’s ou defecando no salão da Ibovespa, enquanto comparsas quebram monitores e roubam iPhones deixados nas fartas gavetas da Faria Lima.

Tais projeções são possíveis somente porque todos somos embebidos em uma cultura historicamente patrimonialista e, ao mesmo tempo, quase todos somos destituídos de qualquer patrimônio material vultoso. Exceção feita a pouquíssimos, muitos dos quais – herdeiros numa história de exploração, escravidão, desigualdades, opressões e repressões – são os mais interessados em dinamitar quaisquer laços e relações orientados pela noção de coisa pública.

Desafortunadamente para esses poucos, hoje todos somos plenos de direitos, ao menos no papel, e podemos reivindicar livremente traços da nossa identidade. Somos, também, todos donos de um patrimônio público, material e imaterial. Somos todos filhos e agentes de uma cultura histórica e nacional, composta por um mosaico de inúmeras culturas e patrimônios regionais no tempo e no espaço brasileiro. Entre disputas e consensos, nos reconhecemos, por fim, por uma bandeira, por uma língua e por alguns sentimentos e ritos partilhados por muitos de nós. Convivemos, dessa forma, em uma democracia, através das instituições – sempre em disputa política – mas legalmente amparados e regidos por um Estado Democrático de Direito, fundado com a promulgação da Constituição Federal de 1988, após décadas de uma sanguinária ditadura civil-empresarial-militar instalada pelos Estados Unidos em nosso território.

Acontece que, desde as Manifestações de 2013 que resultaram no golpe empresarial-parlamentar de 2016, vivemos em mais um estado de anomia que reflete a disputa geopolítica do nosso tempo. Nele, soergueram forças do submundo institucional nutridas pelos traumas nacionais jamais elaborados – como a anistia aos torturadores e a todos os que cometeram crimes de Estado há poucas décadas – e por velhos e conhecidos interesses do exterior. Como se, subvertendo a máxima marxista, houvesse a possibilidade de repetir não a tragédia, mas a própria farsa botada em marcha na América Latina durante os anos 1960, 1970 e 1980, que promoveu a interdição de governos eleitos democraticamente com golpes militares que violentaram suas soberanias, prenderam, torturaram e assassinaram mais de 50 mil cidadãos sul-americanos. Estima-se que os corpos de mais de 30 mil pessoas estão desaparecidos até hoje.

A gênese do neofascismo brasileiro

Da farsa da farsa renasceu a extrema direita no Brasil no século XXI, seguindo uma tendência mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008. Ano inicial daquele que viraria um fenômeno de massas nas democracias ocidentais, formado por milhões de pessoas mobilizadas pelas forças mais destrutivas que existem dentro de cada uma delas. Forças canalizadas e direcionadas contra a cultura, a sociedade, a civilização.

O que vimos no último domingo foi a expressão explícita do ódio. Todavia, reestruturado por uma nova linguagem da experiência subjetiva e afetiva daqueles que pretendiam provocar uma ruptura na unidade nacional com uma guerra civil, ainda que muitos nem tivessem essa instrumentalizada consciência. Presenciamos, infelizmente de maneira esperada, uma ação terrorista visando a, mais um, golpe de Estado. O modus operandi, emulado da extrema direita dos Estados Unidos, só atestou de onde vieram as ordens e as diretrizes: da matriz trumpista.

Do país onde a organização social orienta-se por uma cultura concentrada daquilo que Max Weber teorizou, em 1905, como uma simbiose entre a ética protestante e o capitalismo. Distintamente do contexto de vida do intelectual alemão, na configuração contemporânea, o capitalismo é muito mais voraz, globalizado e a sociedade estadunidense não sustenta a herança da social-democracia construída no período do pós-guerra na Europa ocidental. Algo que enraizou e dimensionou a esfera pública tão valorizada, até hoje, no continente.

Por isso, os atos terroristas em Brasília foram repudiados até por ícones ascendentes da extrema direita do outro lado do Atlântico. Porque aquilo que os neofascistas brasileiros odeiam e atacam é tudo – absolutamente tudo – o que é público, de todos nós, brasileiros. Isso é um contrassenso a um neofascista ou a um ultranacionalista europeu, que, em sua nefasta ideologia, direciona grande parte do seu ódio aos imigrantes – inclusive aos brasileiros.

Aqui, os neofascistas (incorporados neonazistas e integralistas) foram arregimentados por uma composição política Frankenstein, que elegeu o último governo federal num processo eleitoral sob intervenção objetiva dos Estados Unidos. Tal composição continha setores da mídia, dos militares, milicianos, fisiologistas, evangélicos fundamentalistas e ultraliberais. Expoentes máximos, cada qual em seu campo, do velho patrimonialismo e da sua defesa. Esse grupo que chegou ao centro do poder federal valendo-se de táticas novas, até então, de massivas mentiras espalhadas pelas redes sociais virtuais, assumiu para si somente uma missão: deter um projeto nacional popular de longo prazo e reverter todas as conquistas dos governos anteriores.

Não foi difícil, dado o nosso histórico violento e colonial, canalizar o ódio dos seus eleitores precisamente ao solo da coletividade e do pluralismo que constitui um país. Chão cada vez mais exíguo aos pés no mundo ultraliberal, terreno árido ao caminhar da justiça e das disputas políticas, dos corpos e das mentes, dos desejos e gestos de todos. Espaço público de solavancos e comunhão, onde se pode falar, mas onde também se faz necessário ouvir e respeitar todas as manifestações plurais e divergentes que compõem uma determinada sociedade.

Contrariamente são os espaços privados. Sejam aqueles herdados desde a época das capitanias hereditárias, sejam aqueles, ainda hoje, públicos e almejados num vir-a-ser particular. Porque os espaços que excluem são aqueles onde as dinâmicas sociopolíticas respondem e, na maior parte do tempo, submetem-se aos desejos de um ou poucos donos, atuais e futuros. Foi a partir desse terreno fertilizado sinteticamente – alavancado e associado, num primeiro momento, aos discursos de um liberalismo raso como um pires – que brotou novamente o fascismo brasileiro. Agora, ainda mais subserviente e inconsciente da sua função nos novos tempos, configurando todo um campo ideológico de indivíduos disciplinados para devorarem uns aos outros com um sorriso no rosto.

A fabricação do neofascista

Num novo universo tecnológico, completamente alienado das dinâmicas que o enredam, o “patriota” foi programado por esse campo que lhe ofereceu não só o pertencimento, mas o ethos que lhe autorizou – finalmente – o gozo através do pathos do ódio. Por isso, o logos não foi necessário e, para quem olha de fora, não há lógica alguma em suas tentativas de elaborar argumentos. Porque ele foi condicionado numa crescente repetição esvaziada, mais e mais, o levando ao limite das palavras, das imagens, dos discursos, da comunicação e das “ideias” dele. De tal forma saturado, o “patriota” foi movido pela recompensa ofertada ao desejo de reconhecimento, esgarçando os próprios sentidos até a implodi-los no prazeroso vazio da própria consciência, libertando, por força bruta, o reprimido.

Nesse ponto, quando se sentiu “livre”, as estratégias e os métodos de repetição esvaziada da nova extrema direita internacional já haviam lhe ofertado a palha que reestruturou simbolicamente o seu reprimido de forma rudimentar e instrumental. Simplesmente lhe dando uma mínima sustentação simbólica que propiciou a vazão de aspirações psicóticas em ações de violência concreta, na destruição dos objetos apontados. Como numa autofagia purificadora, para os seus membros provarem quem é o mais obediente cão de guarda do poderoso e ínfimo universo onde desfilam os que lucram na combalida economia mundial após a quebra do sistema financeiro global, em 2008.

Por isso, Samuel Johnson, um conservador anglicano e monarquista atestou, com conhecimento de causa, no século XVIII: “o patriotismo é o último refúgio do canalha”. Sob o manto do nacionalismo, àqueles que o encampam com um vigor que aumenta conforme o número de câmeras ao redor, “por Deus e pela pátria”, mascara-se toda sorte de perversões que precisam ser satisfeitas e escondidas do restante da sociedade, nos termos do falso moralismo. Alguns exemplos são a decretação de sigilos centenários sobre documentos de interesse público, a não dissociação entre o bem público e o privado, a destruição da esfera pública, a privatização de setores estratégicos nacionais, a instauração do autoritarismo, a antipolítica (anauê, Sérgio Moro) e tantas outras modalidades que revelam a prevalência do gozo sádico, como a homenagem a milicianos, assassinos e torturadores.

Disse um ex-presidente neofascista brasileiro, ao vivo para o país, através da Rede Globo, em uma nada sutil cumplicidade atuante no golpe de 2016: “Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”.

Ustra, por “pedaladas fiscais”… . Ele se tornou presidente depois, e, como sabemos, de forma trágica não sofreu impeachment.

O discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais

O prazer na dor do outro é o ponto de encontro entre a Brasília destruída no último domingo e “o” mercado.

Entretanto, aos fascistas de hoje só cabe o papel de massa de manobra, de farsa da farsa. Eles só servem para “o” mercado tentar botar a faca no pescoço de um possível governo minimamente popular, mas não matá-lo. Como uma chantagem a um governo que pode restaurar uma linha democrática e inclusiva, que foi sufocada na trama geopolítica através do discurso da servidão inconsciente à tirania dos capitães e dos capitais, construído desde 2013 e eleito em 2018, no soar do apito do Juiz de Fora.

Na revolução da extrema direita do século XXI, os dispositivos contemporâneos e as novas tecnologias na sociedade da informação são fundamentais ao método da ruptura sociopolítica através da linguagem. Essencialmente, a partir de táticas e estratégias incubadas por anos na deep web, e que, botadas em marcha na última década, como numa revolução francesa às avessas, inverteram o sentido da comunicação pela implosão de significados amplamente consensuais na vida pública. Esse método visa à ressignificação de significantes estruturantes das ideias de nação, cultura e patrimônio público imaterial. Isso libertou, do ponto de vista da teoria freudiana das pulsões, os que se percebiam medíocres, incapazes e impotentes em sua cultura e ainda foram dragados pela devastação econômica pós 2008.

No contexto brasileiro, que adotou uma política econômica anticíclica de maneira bem sucedida para proteger sua economia naquele período, a crise precisou ser fabricada a partir de 2013, com uma desestabilização vinda de fora. Afinal, nenhum império deseja um postulante aos holofotes em seu “quintal”.

Em todos os regimes de inspiração fascista, ao longo da história recente, os ditadores precisaram forjar um sentido de emancipação e libertação ao seu secto – cujo ápice, aqui no Brasil, vimos no último domingo – enquanto aumentam seus patrimônios. Seja vendendo ou se apropriando da esfera coletiva, avançando suas posses, ainda mais, sobre o patrimônio público material. Sobre aquilo que na realidade física e comum ainda prepondera sobre as especulações e lastreia a economia global.

Porém, nessa falsa revolução francesa, onde quase tudo é uma fraude – exceção feita à vazão da pulsão de morte – o seu sentido social e político sempre foi o de um aprisionamento e não o de uma emancipação. Começando pelas intenções dos seus artífices e terminando com os girondinos, capatazes da velha oligarquia, gozando com uma mudança de regime que não veio e não virá, para depois serem presos.

Porque o que almejam é a libertação pela psicose, pela quebra de qualquer sentido de realidade comum, pelo misticismo que encontraria o seu destino final numa farsa da farsa de uma nova Idade Média. Só eles não sabem que isso não interessa aos seus tiranos, seja na Faria Lima ou em Wall Street.

No final das contas, são os tiranos a quem servem, e não eles, que controlam, não só as suas coleiras, mas as guilhotinas no regime do terror contemporâneo.

Copa do Mundo de 2022, expressão de um tempo na morte do pai

Para escrever sobre uma copa, antes, é necessário saber organizar uma cozinha. Se na primeira há a festa, o circo necessário, na segunda se faz o pão, vital.

Já passou do tempo em que todos deveriam poder desfrutar de um belo banquete (ouro em pó não mata a fome, só a carne), e, também, aprenderem a limpar a própria louça. Isso serve, inclusive, aos pretensos emissários de Deus, Alá, Nhamandu, Olorum, Jeová, YHWH, GADU, do ateísmo, do identitarismo e do proto niilismo de consumo nas redes sociais virtuais. Seja em Doha, Buenos Aires, Paris ou Brasília.

Uma Copa do Mundo só ocorre a cada quatro anos. De tal forma que, se tivermos uma boa sorte e hábitos saudáveis, teremos a oportunidade de assistir conscientemente, e somente talvez, umas vinte Copas ao longo da vida. Dependendo da sua origem e idade, caro leitor, isso pode ser um dado insignificante. Se você tiver nascido no Brasil, em algum momento você realizará a importância dessa conta, ainda que para tentar desprezá-la. Como muitos tentam fazer com o Natal no mundo ocidental, ao longo da vida compreendemos que existem rituais muito grandes para serem ignorados somente pelo nosso imperativo desejo.

Sinto informá-lo, mas nossa cultura nos constitui à revelia. Entretanto, tenho o prazer de noticiá-lo, também, que ela é viva e está sempre em transformação: o limite da mudança é o seu.

Longe de ser o país do futebol, nos termos da adoração irracional própria ao esporte, a Copa do Mundo para o brasileiro é um componente cultural fundamental de uma fantasia coletiva de nação que se conformou no pós Segunda Guerra Mundial quando éramos uma sociedade predominantemente rural. Os títulos de 1958, 1962 e 1970 dizem muito de um tempo, uma conjuntura, um contexto e uma história que hoje se perde em um revisionismo do espetáculo que entorpece análises, discursos e catalisa afetos. Em 1950 a população rural brasileira era de 33.161.506 hab. e correspondia a 63,84% da população total. Vinte anos depois os habitantes das zonas rurais eram 41.037.586, porém, correspondiam a 44% da população total. Como remeter uma experiência de Brasil contemporânea, seja ela qual for, àquela da metade do século passado?

Tomados pelos impactos de uma revolução tecnológica, nascidos sob tais condições, jovens reproduzem, nos mais diversos campos – e o esporte é um deles – um revisionismo que almeja a uma falsa purificação dos presentes, que escrutinam o passado com uma lupa chamada Google. Acontece que no detalhe do aumento, se perde a noção de um contexto, uma ideia de todo, de um sentimento comum a muitos. Entre cancelamentos e julgamentos com regras anacrônicas, como se fosse possível dar cartão vermelho hoje em um jogo de 1958, quando as regras eram outras, e nem cartão havia. A noção de controle pela calculabilidade de tudo e pelo individualismo segregacionista nas telas dá a tônica do jogo no início desse milênio. Na contemporaneidade, enquanto a reificação e o fetichismo da mercadoria imperam sobre o manto da falsa liberdade que o consumismo oferta àqueles que podem, efemérides dessa natureza, uma Copa do Mundo no tempo e no espaço, nos colocam frente à inevitabilidade da morte de forma desconcertante.

Será no dia 18 de dezembro de 2022 que a expressão do novo tomará o corpo e a alma, a churrasqueira e a pia, a copa e a cozinha, o pão e o circo de um mundo que se apresenta enquanto século XXI, no terceiro milênio do calendário gregoriano.

Porque em campo, para além das sagradas escrituras das hashtags, sob os olhares vivos de bilhões de seres humanos, desfilarão mais de duas dezenas de homens encarnados, naquele instante, enquanto artífices de um espetáculo que extrapola a razão, entre pertencimento e desenraizamento no globalismo, nos afetos de uma irrefreável estética globalizada.

Argentina x França. Uma nova tricampeã mundial de futebol nascerá no próximo domingo.

No jogo mais importante, visto e desejado, do esporte mais popular do planeta, as duas horas que separarão o pontapé inicial da entrega da taça da Copa do Mundo de 2022 correrão enquanto síntese de uma revolução sociocultural global em curso nas duas últimas décadas. Muitas camadas simbólicas, caras ao passado, ao presente e ao futuro da humanidade, serão adensadas nesse curto espaço de tempo, após a morte de 6 mil trabalhadores nas obras que ergueram um panteão provisório para as “divindades” que ora habitam as milionárias arquibancadas da FIFA no Catar, e, consequentemente, o Instagram.

Já na arena do coliseu moderno, o choque de culturas se revelará onde, para ser herói, é preciso esforço, suor, risco, trabalho e tragédia.

Poderia Lionel Andrés Messi Cuccittini, nascido na periferia de Rosário – que travou o mais longevo duelo de gênios de origem pobre do milênio, com Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, nascido em Funchal, na Ilha da Madeira -, em sua despedida, ser alçado, de fato e de direito, à dupla de ataque de todos os tempos com Edson Arantes do Nascimento, o Pelé?

Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa se Diego Armando Maradona Franco estivesse vivo, como nas últimas quatro Copas que ele disputou sob sua sombra? Como seria possível ascender ao céu em vida e diante dos fiéis sob a sombra de Dios?

Num truque do destino, Maradona, após ser técnico de Messi na Copa de 2010, morreu em 25 de novembro de 2020, causando uma forte comoção mundial. Ídolo e fã declarados, um do outro, passado e presente. Pai e filho.

Poderia Messi, em seu último tango, dançar leve e genial se não tivesse rompido a resistência dos próprios torcedores argentinos, quando venceu o seu primeiro título pela seleção argentina em 2021, aos 34 anos? Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa do Mundo, se o único título pelo seu país não tivesse vindo após 28 anos de jejum da albiceleste, contra o Brasil, no Maracanã?

Rivalidade entre irmãos na morte do pai.

Brasil, cinco vezes vencedor da Copa, três delas com Pelé – hospitalizado nesse instante, refém de uma metástase – o maior jogador de futebol da história. Ou seria, somente, do século XX? Alguns amigos portenhos diriam que o maior de todos ainda é Maradona. Mas por quem são esses hoje, às vésperas da final, na copa, na Argentina de Messi?

Ou seria a final da Copa “de Maradona” do Messi? Será, simplesmente, a Copa de Messi?

Poderia o jovem francês Kylian Sanmi Mbappé Lottin, filho de uma argelina e de um camaronês, fã de Cristiano Ronaldo, levantar a sua segunda taça do mundo, aos 23 anos? Justamente na mesma competição em que houve a melancólica despedida do ídolo português, no banco de reservas, sem jamais ter vencido o título máximo pelo seu país? Será, justamente, na morte do pai Cristiano que Mbappé saltará duas gerações e herdará o trono no novo século? Justamente com dois anos a mais que Pelé, quando este ganhou o seu bicampeonato no Chile, em 1962? Na cor da pele e na força ancestral da África que luta e sobrevive na periferia de Paris, de uma seleção marroquina histórica que retomou, nesse torneio, a península Ibérica?

O que diria Pelé aos racistas que, no século XXI, ainda abundam na Argentina, na França e no Brasil? Mas ele já disse com a bola nos pés, em 1.283 gols em 1.363 partidas, em um tempo sem fala a um descendente de escravizados, nascido em 23 de outubro de 1940, em Três Corações, Minas Gerais. Um tempo também, insuportavelmente mais machista, patriarcal.

Se mesmo o rei deve reverenciar a Marta, e vice-versa, qual jovem militante antirracista de Instagram ousará dar aulas a Pelé? Ou, qual feminista ou LBGTQIA+ de TikTok dará aulas à rainha Marta? E mesmo a realeza das Copas e seleções deve aprender com as cozinhas. Afinal, o que seriam de atacantes e meias sem zagueiros e goleiros no futebol e na vida?

O que ocorreria na copa se não houvesse louça limpa para desfilarem bifes salpicados de ouro em pó na mesa daqueles que representam milhões de miseráveis com fome?

Educação é cultura

Por Samuel Joaquim *

 

Ao longo dos anos, há uma frase recorrente nos cafés, padarias, bares e restaurantes, redes sociais – até nas próprias escolas: “o que falta no Brasil é educação”. Qualquer um de nós, em algum momento, já ouviu isso. Em geral, as pessoas estão se referindo à educação formal: ensino fundamental, médio e superior. Pois bem: falta? Falta. Mas é só esse o problema? É só isso que falta? Se olharmos para as classes mais abastadas do país, com boa formação e nos melhores empregos e cargos públicos, veremos lá a imagem de um país pronto para evoluir se “abrir a porteira” da educação de qualidade para todos? Ou veremos o retrato de um grupo que não enxerga na cultura e nas artes a mesma importância que conhecer matemática ou economia para promover uma sociedade evoluída com paz e igualdade?

Fazendo essa observação, possivelmente você verá uma elite que se enxerga como uma verdadeira casta superior, que não dá igual valor à vida de todos e faz questão de não perder seus privilégios, mesmo que isso signifique em última instância uma sociedade mais violenta. Mesmo que signifique não poder andar a pé tranquilamente pelos centros decadentes das cidades. E é importante salientar aqui: essa elite em geral teve toda educação formal a que se pode ter acesso. Então, só podemos concluir que falta algo a mais. A falta de empatia e do senso de coletividade não são supridas simplesmente numa disciplina de geografia em que se fala sobre estatísticas de pobreza e índices de desemprego.

Não que a “letra fria” da educação seja desimportante: um país não consegue se desenvolver sem o ensino tradicional. Bons profissionais de engenharia são fundamentais para alavancar a indústria. A saúde para todos não é possível sem médicos preparados. O Estado precisa de bons administradores e economistas. Quase nenhum cidadão consegue bons empregos sem uma formação técnica ou acadêmica, ficando a eles reservados os empregos de baixa especialização e, consequentemente, baixa remuneração. Além disso, obviamente não há como corrigir os erros do passado sem o conhecimento de história.

Mas a educação não termina ao fim da última aula do dia, do período letivo ou mesmo do curso de graduação. O conhecimento formal é parte integrante de algo maior, a cultura, e um grande erro que se comete é não enxergar educação e cultura como uma só coisa. Afinal, a cultura pode ser definida como a soma não só do conhecimento, mas também dos valores, sentimentos, artes, leis, costumes e hábitos das pessoas. O ser humano está constantemente aprendendo, somando e relacionando esses diferentes aspectos para viver sua vida. Assim, principalmente nessa época de quarentena e isolamento, precisamos nos apegar à cultura de forma mais ampla, não só como um passatempo, mas também como uma forma genuína de evolução, desenvolvimento da empatia e libertação. Para “aguentarmos o tranco” desses tempos difíceis – e, quem sabe, nos tornarmos uma sociedade mais igualitária.

 

A cultura e a arte como geradores de empatia

Gostaria de começar com um exemplo aparentemente banal, uma experiência própria: quando li o livro “Corações Sujos” de Fernando Morais, que fala sobre uma seita criada no Brasil pela comunidade japonesa após a Segunda Guerra que não admitia a derrota do Japão, descobri que a sede desse agrupamento ficava a poucas quadras de onde moro em São Paulo. Muitos consideram essa uma informação inútil isoladamente. Mas eu soube que, a menos de um quilômetro de casa, estava a sede de um agrupamento que assassinou dissidentes (alguns inclusive no próprio bairro). Soube que o horror, poucas décadas atrás, foi meu vizinho – mortes sem sentido ocorreram logo ali, atravessando algumas ruas, por pura ignorância. E com isso, me senti imbuído de um sentimento bem contundente: a ignorância precisa ser dizimada para que a relativa paz que hoje há no meu bairro possa ser conservada e ampliada. E, extrapolando, também a paz no Mundo.

Alguém poderia dizer que o livro é fruto de uma excelente pesquisa histórica feita pelo autor e que, portanto, poderia ser considerado até um instrumento de educação formal e utilizado tranquilamente em sala de aula como material de apoio ao ensino de história. Porém, a conclusão a que eu cheguei vem com uma carga de experiência pessoal única somada ao aspecto histórico, que me causou um impacto bastante diferente e próprio. Isso se deve à minha empatia, a minha capacidade de me colocar dentro dessa história para além da narração factual, já que eu constantemente passo pelo local citado no livro e que nunca me remeteria a um lugar onde se planejavam assassinatos, não fosse meu conhecimento adquirido. Uma coisa se casa à outra para melhorar minha percepção nessa micro-história.

Talvez um outro exemplo que permita enxergar melhor a função da cultura é citar uma obra de arte, digamos, não-factual. Um dos meus filmes favoritos é o filme “Laranja Mecânica”, dirigido pelo aclamado cineasta Stanley Kubrick. É um filme totalmente ficcional. Eu sei que nada do que se passa ali aconteceu realmente. Eu sei que as drogas da “ultraviolência” não existem (ao menos, não com aqueles nomes), que não existe Alex DeLarge, e que nunca existiu um medicamento capaz de inibir a maldade em um chefe de gangue e assassino cruel a ponto de ele se sentir enjoado sempre que pensar em cometer alguma atrocidade.

Porém, as cenas são retratadas de forma assustadoramente realística: eu sei que há o uso de drogas que podem exacerbar o comportamento violento na vida real. Eu sei que há a banalização da violência no dia-a-dia e que ela faz milhões de vítimas todo ano no mundo. E sei que há o sistema prisional atual como tentativa de educar os criminosos a rever suas ações que os levaram até ali. Além disso, a trajetória do personagem principal ao longo da história me permitiu tirar uma conclusão que provavelmente nenhum livro de história faria com tanto impacto: mesmo que houvesse uma “cura científica da maldade”, um sistema prisional comprovadamente capaz de “corrigir” a vida de crimes de alguém, uma sociedade com cultura punitivista não seria capaz de aceitar de volta esse paciente curado.

O intrigante do filme é justamente a sua capacidade de nos causar empatia para com o personagem principal. No começo, acompanhamos a sua vida como um cruel líder de gangue para, depois, sentir o seu sofrimento pós-tratamento quando todos os seus desafetos do passado passam a discriminá-lo, muitos deles com sede de vingança. E, de certa forma, sofremos com ele, a ponto de o realmente reconhecermos como um ser humano (tal como nós), e não um monstro. Porém, ao nos enxergarmos de volta como os “cidadãos de bem” da sociedade fictícia do filme (spoiler: não existe o conceito de cidadão de bem numa democracia!), isso nos faz refletir: “ei, eu realmente me enxergo nessa sociedade! Estamos no caminho certo? Violência para combater violência funciona como comportamento e política de Estado?”. Esse questionamento, mesmo trazido por uma obra completamente ficcional, nos trás um novo tipo de conhecimento, com especial impacto na nossa inteligência emocional. E, nesse momento, a arte se torna uma forma legítima de complemento à educação.

Também, como músico, eu não poderia deixar de falar sobre a igual importância de outras artes como (oh!) a música. Uma canção (ou seja, uma música cantada) pode ter igual efeito a uma poesia ou a um romance: entendemos os versos que estão sendo cantados, interpretamos o significado e podemos identificar ali a nós mesmos, nos questionar, pensar na mudança que queremos a partir de sentimentos que aquelas palavras nos causam.

Mas e as artes mais abstratas, a música instrumental ou pinturas, sem aparente semântica, sem uma história contada com palavras ou imagens que podemos reconhecer de forma lógica? São elas artes menos importantes? Não. O princípio é semelhante. É possível aprender com as artes abstratas.

Por exemplo: cores fortes na pintura causam um impacto e tons pastéis dão sensação de conforto. Na música, sons harmônicos e em volume normal nos causam uma sensação de paz. Sons altos e inarmônicos, um sentimento de inquietude e aflição. Acordes maiores soam alegres, acordes menores soam tristes. Uma justaposição ordenada de sons, timbres e harmonias diferentes podem fazer você se sentir alegre e com vontade de dançar ao som de Hamilton de Holanda tocando um choro do Pixinguinha ou você exercitar um pouco a sua melancolia (que é tão importante quanto exercitar a alegria) com a Sonata ao Luar de Beethoven.

Assim, a arte (incluindo a abstrata) consegue ajudar a aflorar seus sentidos e sentimentos, de uma forma muito particular. E lidar com esses sentimentos, extravasá-los, é uma forma de se conhecer melhor e de saber o que você é capaz de sentir e se preparar melhor para quando esses mesmos sentimentos pegarem você de surpresa em outros tempos (note aqui a curiosa tangência das artes com a psicanálise). E a arte feita com esse intuito, do autoconhecimento, não doutrina: ela liberta. E é bom sentir pelo menos algum grau de liberdade em dias tão claustrofóbicos.

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* Samuel Joaquim é desenvolvedor de software e músico. Da primeira profissão tira seu sustento, da segunda, sua razão de ser. Pianista desde pequeno, teve o privilégio de estudar piano popular nos anos 2000 com o seu ídolo, Hercules Gomes, quando ele ainda era uma promessa da música na cabeça do aluno – antes de ser uma realidade para o Mundo como hoje. Integra o grupo paulistano Esquina Imaginária, que presta homenagem (de sua forma particular) ao cultuado movimento belorizontino Clube da Esquina.

 

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.

Complexo de Getúlio

Por Hugo Ciavatta*

 

Freud que me perdoe, faltou-lhe entender que nós, brasileiros, padecemos de Complexo de Getúlio. É nossa alegoria, nossa metáfora, nosso recurso para tentar explicar nossa condição republicana tão corriqueira. Situação, aliás, que hoje beira o não verbalizável, aquilo sobre o qual procuramos palavras mas só temos vontade de gritar, que está às voltas quase como inacessível. Getúlio, como um mito, está em tantos lugares que é como se não estivesse em lugar algum. Nosso complexo é quem nos faz sofrer, dia após dia, pelo Brasil, de Atalaia do Norte a Touros, de Pacaraima a Bajé, sentimos cada movimento em nossos corações.

Piegas né, é verdade, porém é preciso dizer que “nós”, bem, nós não é assim um grande nós. Somos apenas aqueles que acreditam em aquecimento global, que não fazemos de nossas crenças religiosas um desejo de generalização ao país, impondo-as aos outros, que defendemos os direitos humanos, que acreditamos mesmo em democracia, em direito de defesa … Oops … É, pelo andar da carruagem do nosso tempo, talvez esse nós corresponda a um total enorme de 1,3% dos brasileiros.

Quando se trata de mito e psicanálise, cabe lembrar de Lévi-Strauss direcionando-se ao subtítulo de Totem e Tabu, de Freud, sobre as correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos neuróticos. O belga mais francês da Antropologia diz que nas páginas de A oleira ciumenta se dedicou a mostrar, por sua vez, a correspondência entre a vida psíquica dos selvagens e a dos psicanalistas. Não era, pois, muito sutil o Claude, não é?

Tudo isso para dizer que nosso mito de vida republicana, nosso Complexo de Getúlio insiste em querer Salvar o Brasil. Quase sempre, historicamente, isso significa salvá-lo dos comunistas. Os da foice e do martelo, nossa, devem ser um montante de 0,4% no país. Puxa, que perigo! E nós, os 1%, queremos é salvar o Brasil das mãos de certos patriotas. Entre neuróticos e psicanalistas, todavia, é selvageria para todo lado.

O suicídio de Getúlio Vargas em 1954 tem organizado nossa vida política como um mito, como a mitologia ameríndia organiza a vida dos povos indígenas das Américas. Isto é, na leitura de Lévi-Strauss, os mitos, enquanto narrativas, personagens e suas situações, propõem regras de ação para uma sociedade. Os mitos são a imaginação coletiva das práticas sociais dos sujeitos, mas nem por isso lhes são anteriores e imutáveis. Mitos são transformações históricas, mitos também são modificados por suas sociedades. A república brasileira é anterior ao acontecimento político em torno de Getúlio Vargas, depois dele, muito aconteceu ao Brasil. Há, no entanto, conexões em meio a isso que dizem muito sobre nós. Nós?

Em 1930, Getúlio juntou seus chegados e pôs de lado a elite cafeicultora de São Paulo e Minas, a que se revezava na presidência. Vargas colocou em prática o que também se tornou um rito, uma marca para sinalizar uma pretensa mudança na república tupiniquim: juntar uns parças e botar para correr quem está no poder. Foi assim com a trupe dos militares Deodoro e Floriano em relação à família dos Bragança e Bourbon, no ato propriamente de fundação dessa república, pondo fim ao período imperial.

Gegê não ficou satisfeito com a correria de 1930 e aprontou um imbróglio com a constituinte de 1934 para permanecer poder. Acostumou-se na fantasia presidencial e, além disso, em 1937, bolou um esquema, atribuiu aos comunistas um arranjo golpista e deu, ele mesmo, um golpe, outro golpe. Nascia o Estado Novo sob pretexto do Plano Cohen, que hoje poderia ser considerado uma grande Fake News – fico imaginando quem seria Luciano Hang à época.

Depois de finalmente largar o osso em 1945, Vargas voltaria à presidência nos anos 1950, desta vez eleito. Perto do fim do mandato, entretanto, um de seus seguranças foi acusado de atentar contra a vida do jornalista Carlos Lacerda, seu opositor ferrenho. Associou-se o segurança a mando do presidente, associou-se corrupção comprando a tentativa de assassinato de Lacerda. À luz de 1937, alguém poderia ter lhe dito: “é, parece que o jogo virou, não é mesmo, Getúlio?!”. Não havia delação premiada, nem um juiz-herói – o anacronismo aqui é sarcasmo –, de todo modo, Vargas se viu acuado e, por fim, tomou a decisão de Salvar o Brasil metendo uma bala no peito.

Nós, aquela porcentagem ridícula, por exemplo, assistimos à votação do impeachment, em 2016, ainda que sem apoiar os governos de Lula e Dilma Rousseff, e a cada “pelo conjunto da obra” de um deputado procurávamos um revólver para dar fim à agonia, sozinhos, diante da TV. Ninguém se pergunta, os patriotas de ocasião, se as tais pedaladas fiscais seguiram acontecendo de lá para cá, e se elas implicam a situação econômica do país antes dessa pandemia.

Em sua carta de despedida, o então presidente Vargas diz “sair da vida para entrar para a história”. Uai, e da história alguém está fora, Getúlio? Da história oficial, vá lá, a maioria, esquecidos, silenciados, ocultados. No entanto, assim como de seus respectivos corpos ninguém escapa, como quem habita o tempo estamos todos sempre na história. Vargas “saiu da vida para tornar-se mito”. Getúlio, desde o início de sua trajetória pública, seguiu o rito, entendeu o enredo brasileiro, as possibilidades que o roteiro lhe dava de se fazer política desde a fundação dessa república, e, muito antes de virar modinha, fez de si mesmo um mito.

Quem sabe Lévi-Strauss analisando as narrativas do Estado brasileiro dissesse que há pequenas inversões estruturais desdobrando-se em novas estórias. Ao cientista social contemporâneo, ainda, praticamente se apresenta a citação a respeito da repetição histórica, trocando farsa por tragédia no teatro-Brasil. Não. Nós, brasileiros – aquele 1% –, que gostamos de sofrer pelo Brasil, vimos em 1964 outros chegados traidores marcharem aqui e acolá. É, quase como Deodoro e Floriano, quase como Getúlio Vargas duas vezes. Sob pretexto da ameaça comunista, claro, como um filme repetido de 1937, militares apearam João Goulart do poder. Era o centrão de momento fazendo papel de grande inimigo da nação.

Centrão que nos últimos anos atende como demônio mor da pátria amada: Lula – buuuú. Ainda no início do processo que lhe deixou atrás das grades por meses, em 2016, Luiz Inácio declarou, “não tenho a vocação do Getúlio para me dar um tiro”. Tenho para mim que Lula não faltou à aula sobre O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. O ex-presidente quis dizer: “que Hegel e Marx me perdoem, se farsa, se tragédia, eu não vou me suicidar”. Ali, nós, os 1%, deveríamos ter sacado: fodeu. Tradução, Luiz Inácio disse: “eu não vou salvar o Brasil”.

Hoje, aqueles que se declaram os principais opositores de Lula, por outro lado, justamente para salvar o Brasil, colocam-se, eles mesmos, seus corpos, como a república. É metonímia, emerge discursivamente o absurdo de tomar a parte pelo todo. Nosso eterno retorno, claro, é o eterno retorno do mesmo: toda a nação são os opositores de Lula, seus corpos individuais são a república. É de deixar O Leviatã constrangido. Não são aquele 1% – ah, o diabo da ironia –, mas querem fazer acreditar que sofrem pelo Brasil.

O juiz-herói abdicou da magistratura para “trabalhar pelo Brasil”, foi o que se leu e se ouviu insistentemente. Virar ministro, mais, foi colocar sua vida em risco pelo Brasil, lê-se, ouve-se, vez sim, vez também. Tradução, por enquanto, o máximo que ele encena é querer livrar o Brasil de atitudes como a que ele mesmo parece ter tomado para que ele próprio estivesse no poder. O ex-capitão agora presidente, também, só repete que sobreviveu a uma tentativa de assassinato para lutar pelo Brasil. É sua missão, sua caminhada extenuante, porém, incansável – uma pena, retirar-se seria uma alegria inenarrável.

Como advertia – sim, ele de novo – Lévi-Strauss a respeito dos mitos, sociedades não são indivíduos, elas não procuram suas narrativas com quem consulta um catálogo, um manual de como proceder. Faltou combinar isso com os brasileiros: nós, brasileiros cômicos, e também os patriotas de ocasião, todos nas franjas da linguagem republicana provinda de Getúlio Vargas. Mas é aí que nos distanciamos, não nos comunicamos porque não é possível salvar o Brasil por caminhos tão divergentes.

Disparou o número de mortes de lideranças indígenas nos últimos anos. O desmatamento na Amazônia brasileira bate recordes atrás de recordes comparativos nesse mesmo período. Houve estiagem em algumas regiões do país, noutras, chuvas excessivas. Falta água em áreas conhecidas mundialmente por suas cataratas. O desemprego crescia mesmo diante das tão urgentes reformas das leis trabalhistas, e da previdência. Quem se importa? Mais um “e daí?” dos patriotas que fazem apenas de seus ícones o Brasil; nós, brasileiros risíveis, por outro lado, imaginamos a nossa própria morte a continuar vivendo nessa desgraça exponencial.

Portanto, chegou a hora de deixarmos o sofrimento, vamos nos entregar ao medo. Já vimos militares darem golpes à direita, já assistimos ao centrão dominar a política brasileira por décadas… falta uma guinada tout court à esquerda, uma de fazer inveja aos sovietes, aos guerrilheiros, uma reviravolta tonitruante! – sempre quis usar essa palavra. Vamos, comunistas, juntem seus camaradas! Somos quase nada percentualmente, mas estamos com vocês! Tomemos o poder, marchemos – de máscaras e álcool gel, evidentemente –, acabemos com essa aflição!

Tenhamos em mente, não esqueçamos a getulística, o nosso Complexo de Getúlio disseminado, e que há uma criatura que, possivelmente viva, é entendida como mito – muito longe de qualquer concepção ameríndia. Mas nem Vargas nem ex-capitão, tampouco juiz-herói! Vamos salvar o Brasil de 2020 de sua própria obsessão histórica! Em meio a uma pandemia global, vai pairar a dúvida se até mesmo um tal golpe comunista não é suicídio coletivo, porém, talvez, seja apenas mais um “e daí?”, quem se importa? Ou finalmente um golpe comunista, ou um suicídio coletivo! Pelo menos realizaremos o desejo de certos patriotas.

 

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* Hugo Ciavatta é antropólogo e, obviamente, sem-graça.

 

Caso você queira se aprofundar um pouco mais nas temáticas abordadas neste artigo, o autor recomenda a leitura da “Abertura” de O Cru e O Cozido, “A estrutura dos mitos”, em Antropologia Estrutural e “Da Possibilidade Mítica à Existência Social”, em O Olhar Distanciado, todos de Claude Lévi-Strauss.

O Café com Pepino não endossa, necessariamente, todas as ideias e/ou práticas expressas no presente artigo.