Violência e Psicanálise: I – A agressividade


A partir do presente artigo, iniciaremos uma sequência de publicações sob a rubrica Violência e Psicanálise.

Esta série de artigos pretende traçar, ainda que de maneira rudimentar, um breve panorama psicanalítico que articula as noções associadas à violência, com a intenção de propor reflexões sobre algumas das questões contemporâneas ligadas às identidades culturais, ao ódio e ao revisionismo histórico.

O título escolhido é uma evidente homenagem ao psicanalista Jurandir Freire Costa, autor de Violência e psicanálise, livro publicado em 1984.

O nosso propósito e a pertinência da nossa homenagem refletem, apenas, a grandeza do seu pensamento.

A agressividade

Violência e Psicanálise, de Jurandir Freire Costa. RJ: Graal, 2ª ed., 1986.

Não é simples abordar a problemática da agressividade. Atualmente, parece haver, no senso comum, duas percepções distintas. A primeira é a de que ela é uma característica grupal ou um traço de personalidade indesejável e perigoso, que origina ações coletivas ou individuais danosas à sociedade. A outra, cuja ocorrência indica a incorporação do termo pela educação bancária, é a percepção de agressividade enquanto ousadia, arrojo, coragem.

À primeira vista, está em curso uma ressignificação do termo no sentido de restabelecê-lo, ao menos na língua portuguesa, sobre as bases de uma conotação francamente positiva. A agressividade, cada vez mais, parece ser uma qualidade celebrada socialmente e desejável no indivíduo, sobretudo no mundo financeiro e dos negócios.

Ainda, vincula-se a sua compreensão o tradicional, e sempre atual, tensionamento, no campo da epistemologia, entre natureza e cultura. Se, por um lado, podemos colher uma significação que relaciona a agressividade aos instintos, enquanto tendência inata, por outro, não podemos desprezar a sua construção sociocultural, atuada e reproduzida em ritos, simbolismos, fatos históricos, narrativas e discursos.

Na chave deste tensionamento, não podemos deixar de mencionar que, em 1859, Darwin iniciou uma revolução científica com a publicação de A origem das espécies, cujo impacto estabeleceu um novo paradigma a quase todos os campos do conhecimento; e que, em 1867, Marx publicou o primeiro tomo de O capital, lançando as bases de uma nova economia política que alteraria o curso da história.

Apesar de “agressividade” não ser propriamente um conceito – ou, mesmo, merecer uma elaboração teórica específica – para os dois autores, não seria equivocado inferir que a sua concepção é mais que um pano de fundo para ambos.

Completando a trinca de peso que definiu o pensamento moderno da segunda metade do século XIX até os dias de hoje, Freud certamente foi influenciado pelos impactos darwinista e marxista em diversos níveis da sua trajetória pessoal.

Entretanto, no campo teórico, se o Id, o conceito de pulsão (Trieb), o uso eventual de “instinto” (Instinkt) e a ideia de uma economia libidinal podem ser aludidos aos seus contemporâneos mais velhos, o austríaco foi o que melhor encaminhou, entre tantas outras, a problemática da agressividade em sua obra.

 

Fronteiras freudianas no encontro entre natureza e cultura

De certa forma, o grande legado freudiano foi o de situar a sua teorização no encontro entre natureza e cultura. Talvez por isso, a partir da sua experiência clínica, ele reconheceu a necessidade de reinterpretar certos debates filosóficos e delinear algumas fronteiras com a criação da psicanálise.

A primeira delas, entre o mundo interior e o mundo exterior, cliva as ocorrências internas ao aparelho psíquico e aquelas externas, promovidas pelos objetos no mundo exterior. O estudo e a prática psicanalítica, portanto, restringem-se às primeiras, ainda que em relação permanente com as outras.

A segunda fronteira segmenta, para fins didáticos, o aparelho psíquico. Este é composto por uma porção somática (corpo) e outra puramente mental (psiquismo). Apesar de ser impossível dissociá-las, o vetor inicial dos estudos psicanalíticos tinha um sentido evidente, de fora para dentro. Desta forma, mesmo sem desprezar o somático, que posteriormente seria o norte de todo um campo interdisciplinar de análise (psicossomática), o foco inicial era o psiquismo.

As demais fronteiras, portanto, residem no interior do psiquismo e constituem as três instâncias psíquicas (Id, Eu e Supereu) que, de maneira bastante simplificada, são qualificadas por uma outra fronteira que separa os estados consciente e inconsciente.

Sob a influência cartesiana do positivismo, Freud fez um movimento hercúleo para conceituar o Inconsciente partindo das noções da neurofisiologia. O tamanho exato dos seus esforços iniciais revelou-se com a contestável publicação do Projeto para uma psicologia científica em 1950, após a sua morte. O texto, escrito em 1895 – mesmo ano da publicação dos Estudos sobre a histeria -, é um embrião cujas bases estritamente científicas levaram à construção da sua psicologia, sobretudo do essencial capítulo VII, de A interpretação dos sonhos.

Em suma, esta gênese implicou na teorização de como estímulos físicos, de origem somática ou no mundo exterior, germinam e relacionam-se com as representações, os pensamentos e os sentimentos.

Assim, é compreensível que, no princípio, a comunidade psicanalítica se ocupasse exclusivamente das formações simbólicas e não dos atos, como aponta Joel Birman. Na metodologia analítica, interpretativa, a investigação do Inconsciente tinha por objeto clínico e teórico a problemática da palavra, do discurso suscitado, suas lacunas e trocas reveladas através da associação de pensamentos e ideias.

Por isso, a agressividade era compreendida como uma formação simbólica, um sintoma e não um ato. Ao menos, nos primórdios da psicanálise.

 


Obras mencionadas:

COSTA, Jurandir F. Violência e psicanálise. 2ª ed., RJ: Graal, 1986.

BIRMAN, Joel. Arquivo da agressividade em psicanálise in Natureza Humana, ano 8, vol. 2, pp. 357-379, jul. – dez. 2006.

BREUER, Joseph; FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria. Obras completas, vol. 2. Tradução de Laura Barreto. 1ª ed., SP: Companhia das Letras, 2016.

DARWIN, Charles. A origem das espécies. Tradução de Carlos Duarte e Anna Duarte. 1ª ed., SP: Martin Claret, 2014.

FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica (1950 [1895]) in Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição Standard brasileira; com comentários e notas de J. Strachey, com colaboração de Anna Freud, assistido por Alix S. e Alan T., 24 vs. Vol. I, Publicações Pré-psicanalíticas e Esboços Inéditos (1886-1889). Tradução de Jayme Salomão. RJ: Imago, 1996.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderle. 2ªed, SP: Boitempo, 2017.


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