Copa do Mundo de 2022, expressão de um tempo na morte do pai


Para escrever sobre uma copa, antes, é necessário saber organizar uma cozinha. Se na primeira há a festa, o circo necessário, na segunda se faz o pão, vital.

Já passou do tempo em que todos deveriam poder desfrutar de um belo banquete (ouro em pó não mata a fome, só a carne), e, também, aprenderem a limpar a própria louça. Isso serve, inclusive, aos pretensos emissários de Deus, Alá, Nhamandu, Olorum, Jeová, YHWH, GADU, do ateísmo, do identitarismo e do proto niilismo de consumo nas redes sociais virtuais. Seja em Doha, Buenos Aires, Paris ou Brasília.

Uma Copa do Mundo só ocorre a cada quatro anos. De tal forma que, se tivermos uma boa sorte e hábitos saudáveis, teremos a oportunidade de assistir conscientemente, e somente talvez, umas vinte Copas ao longo da vida. Dependendo da sua origem e idade, caro leitor, isso pode ser um dado insignificante. Se você tiver nascido no Brasil, em algum momento você realizará a importância dessa conta, ainda que para tentar desprezá-la. Como muitos tentam fazer com o Natal no mundo ocidental, ao longo da vida compreendemos que existem rituais muito grandes para serem ignorados somente pelo nosso imperativo desejo.

Sinto informá-lo, mas nossa cultura nos constitui à revelia. Entretanto, tenho o prazer de noticiá-lo, também, que ela é viva e está sempre em transformação: o limite da mudança é o seu.

Longe de ser o país do futebol, nos termos da adoração irracional própria ao esporte, a Copa do Mundo para o brasileiro é um componente cultural fundamental de uma fantasia coletiva de nação que se conformou no pós Segunda Guerra Mundial quando éramos uma sociedade predominantemente rural. Os títulos de 1958, 1962 e 1970 dizem muito de um tempo, uma conjuntura, um contexto e uma história que hoje se perde em um revisionismo do espetáculo que entorpece análises, discursos e catalisa afetos. Em 1950 a população rural brasileira era de 33.161.506 hab. e correspondia a 63,84% da população total. Vinte anos depois os habitantes das zonas rurais eram 41.037.586, porém, correspondiam a 44% da população total. Como remeter uma experiência de Brasil contemporânea, seja ela qual for, àquela da metade do século passado?

Tomados pelos impactos de uma revolução tecnológica, nascidos sob tais condições, jovens reproduzem, nos mais diversos campos – e o esporte é um deles – um revisionismo que almeja a uma falsa purificação dos presentes, que escrutinam o passado com uma lupa chamada Google. Acontece que no detalhe do aumento, se perde a noção de um contexto, uma ideia de todo, de um sentimento comum a muitos. Entre cancelamentos e julgamentos com regras anacrônicas, como se fosse possível dar cartão vermelho hoje em um jogo de 1958, quando as regras eram outras, e nem cartão havia. A noção de controle pela calculabilidade de tudo e pelo individualismo segregacionista nas telas dá a tônica do jogo no início desse milênio. Na contemporaneidade, enquanto a reificação e o fetichismo da mercadoria imperam sobre o manto da falsa liberdade que o consumismo oferta àqueles que podem, efemérides dessa natureza, uma Copa do Mundo no tempo e no espaço, nos colocam frente à inevitabilidade da morte de forma desconcertante.

Será no dia 18 de dezembro de 2022 que a expressão do novo tomará o corpo e a alma, a churrasqueira e a pia, a copa e a cozinha, o pão e o circo de um mundo que se apresenta enquanto século XXI, no terceiro milênio do calendário gregoriano.

Porque em campo, para além das sagradas escrituras das hashtags, sob os olhares vivos de bilhões de seres humanos, desfilarão mais de duas dezenas de homens encarnados, naquele instante, enquanto artífices de um espetáculo que extrapola a razão, entre pertencimento e desenraizamento no globalismo, nos afetos de uma irrefreável estética globalizada.

Argentina x França. Uma nova tricampeã mundial de futebol nascerá no próximo domingo.

No jogo mais importante, visto e desejado, do esporte mais popular do planeta, as duas horas que separarão o pontapé inicial da entrega da taça da Copa do Mundo de 2022 correrão enquanto síntese de uma revolução sociocultural global em curso nas duas últimas décadas. Muitas camadas simbólicas, caras ao passado, ao presente e ao futuro da humanidade, serão adensadas nesse curto espaço de tempo, após a morte de 6 mil trabalhadores nas obras que ergueram um panteão provisório para as “divindades” que ora habitam as milionárias arquibancadas da FIFA no Catar, e, consequentemente, o Instagram.

Já na arena do coliseu moderno, o choque de culturas se revelará onde, para ser herói, é preciso esforço, suor, risco, trabalho e tragédia.

Poderia Lionel Andrés Messi Cuccittini, nascido na periferia de Rosário – que travou o mais longevo duelo de gênios de origem pobre do milênio, com Cristiano Ronaldo dos Santos Aveiro, nascido em Funchal, na Ilha da Madeira -, em sua despedida, ser alçado, de fato e de direito, à dupla de ataque de todos os tempos com Edson Arantes do Nascimento, o Pelé?

Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa se Diego Armando Maradona Franco estivesse vivo, como nas últimas quatro Copas que ele disputou sob sua sombra? Como seria possível ascender ao céu em vida e diante dos fiéis sob a sombra de Dios?

Num truque do destino, Maradona, após ser técnico de Messi na Copa de 2010, morreu em 25 de novembro de 2020, causando uma forte comoção mundial. Ídolo e fã declarados, um do outro, passado e presente. Pai e filho.

Poderia Messi, em seu último tango, dançar leve e genial se não tivesse rompido a resistência dos próprios torcedores argentinos, quando venceu o seu primeiro título pela seleção argentina em 2021, aos 34 anos? Poderia Messi fazer o que tem feito nessa Copa do Mundo, se o único título pelo seu país não tivesse vindo após 28 anos de jejum da albiceleste, contra o Brasil, no Maracanã?

Rivalidade entre irmãos na morte do pai.

Brasil, cinco vezes vencedor da Copa, três delas com Pelé – hospitalizado nesse instante, refém de uma metástase – o maior jogador de futebol da história. Ou seria, somente, do século XX? Alguns amigos portenhos diriam que o maior de todos ainda é Maradona. Mas por quem são esses hoje, às vésperas da final, na copa, na Argentina de Messi?

Ou seria a final da Copa “de Maradona” do Messi? Será, simplesmente, a Copa de Messi?

Poderia o jovem francês Kylian Sanmi Mbappé Lottin, filho de uma argelina e de um camaronês, fã de Cristiano Ronaldo, levantar a sua segunda taça do mundo, aos 23 anos? Justamente na mesma competição em que houve a melancólica despedida do ídolo português, no banco de reservas, sem jamais ter vencido o título máximo pelo seu país? Será, justamente, na morte do pai Cristiano que Mbappé saltará duas gerações e herdará o trono no novo século? Justamente com dois anos a mais que Pelé, quando este ganhou o seu bicampeonato no Chile, em 1962? Na cor da pele e na força ancestral da África que luta e sobrevive na periferia de Paris, de uma seleção marroquina histórica que retomou, nesse torneio, a península Ibérica?

O que diria Pelé aos racistas que, no século XXI, ainda abundam na Argentina, na França e no Brasil? Mas ele já disse com a bola nos pés, em 1.283 gols em 1.363 partidas, em um tempo sem fala a um descendente de escravizados, nascido em 23 de outubro de 1940, em Três Corações, Minas Gerais. Um tempo também, insuportavelmente mais machista, patriarcal.

Se mesmo o rei deve reverenciar a Marta, e vice-versa, qual jovem militante antirracista de Instagram ousará dar aulas a Pelé? Ou, qual feminista ou LBGTQIA+ de TikTok dará aulas à rainha Marta? E mesmo a realeza das Copas e seleções deve aprender com as cozinhas. Afinal, o que seriam de atacantes e meias sem zagueiros e goleiros no futebol e na vida?

O que ocorreria na copa se não houvesse louça limpa para desfilarem bifes salpicados de ouro em pó na mesa daqueles que representam milhões de miseráveis com fome?


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